Monday, March 19, 2018

REMINISCÊNCIAS (por Germano Quaresma)



Nunca escondi minha humilde origem do jardim Casqueiro, e mesmo guardo qualquer orgulho das referências literárias que trouxe de lá. Pra além dos comuns que, com seu falar próprio, me ajudaram a formar essa linguagem que venho paulatinamente impondo à Literatura contemporânea, mais me valeu foi o que aprendi dos tipos folclóricos do bairro.

Havia diversos: a Velha do Papo, o bêbado Corta-Essa, Bidu, João Vê-Direito-Essasparte, Kirias, Reginaldo Bichinha, Mica Doido. Cada um dessa fauna trazia uma peculiaridade, um mote, um aforismo que me marcou de forma definitiva e, se colho hoje os louros da glória, não é senão por uma apropriação cultural indevida.

Com Pardal foi diferente. Nunca repeti sua fala, e me hão de entender. Pardal, mais velho que eu, estacionou na idade mental de um ano e o único que falava era:

"Piu Piu Piu. Eu eu eu..."

Quem tenha conhecido o velho jardim Casqueiro há de lembrar dessa figura querida. Passava o dia na Padaria Brasil, os bêbados cuidavam daquela criança grande, o dono da padaria o alimentava. Pardal sentava e ficava recitando, bem alto, os dois únicos versos que seu singelo ano de cultura ensinara:

"Piu Piu Piu
Eu eu eu
Ueu eu eu eu
Piu Piu Piu...."

Às vezes se masturbava na calçada. Perto do clímax a declamação se tornava mais plangente:

"Ueeeee ueeeeeu eeuuuu
U Piu Piu Piiiiiu!"

Não, eu jamais utilizei o bordão do Pardal em qualquer dos personagens dos muitos livros com que logrei eternizar o Jardim Casqueiro, esta Macondo lusófona, na calçada da literatura universal. Mas sou obrigado a declarar de público a referência que esta figura representa. Dos poetas contemporâneos Pardal, com seu "piupiupiu eueueueueueueu" é o que foi mais longe. Os demais ainda não alcançaram as sutilezas do "Piu". Nem eu, confesso.

Triste geração de poetas que só falam eueueueueueueu.



Germano Quaresma, ou Manuel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de "Brincadeira Surrealista".
É autor dos romances
"A Jaca do Cemitério É Mais Doce" (2017),
"Dec(ad)ência" (2016), "O Evangelista" (2015)
e "Companhia Brasileira de Alquimia" (2013),
além dos livros de poemas
"6 Sonetos D’amor em Branco e Preto" (2016)
e "A Comédia de Alissia Bloom" (2014)

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