Ainda
temos poesia de invenção, literatura de resistência, criação além de gêneros
feita para remexer o lance de dados mallarmaico da linguagem. Leio e releio
mais um livro dum poeta que precisa ser conhecido: Tarcísio Lara Puaiti, que
nos oferece agora “Bagaceira”, reunião de poemas, poesia em prosa, “proesia”
pela prestigiada 7 Letras Editora. Sem preocupação com pontuação, fluxo livre
da inspiração balizada pela intelecção,
jorro carregado de plasticidade , imagética tutelada pela poemática em
versos de acúmulos e ajuntamento. Poema longo ou epigramas sobrepostos? Importa
a intersecção de perceptos, o nexo causal transverso entre algaritmos da
imaginação passados pelo crivo da alta significação.
Tarcísio
refaz a tradição de Whitman com o pensamento de Pound. Cacos depurados da
memória, vestígios do dia reflexivos, um
tsunami de evocações intertextuais de artes, caleidoscópico inventário de
coisas, fatos, textos lidos e vivenciados. O título faz juz ao dístico de
Pound: “Poetas são antenas da raça”; - nessa trama lúdica de esponja e garimpo,
Tarcísio nos revela miríades de seu universo cósmico-quântico. Sempre defino
literatura como curtição da linguagem: curtição aqui em sua escala polissêmica:
curtir por amar, devorar, re-significar, lapidar, afiar na consecução dum
produto semiótico e artístico amplo em sua contenção do mundo. Chistes, oximoros,
ecos de Jarry e Georges Perét? Vida mil modos de usar: um rol de sutilezas,
insights poderosos, epifanias tranZmodernas: o cult e o trash, eruditismos embalados em prosaico papel
jornal. Ritmo tonitroante, sinapses feéricas, imagética estilhaçada, implosão
do discurso: é o transe espelhar nosso caótico cotidiano. Poemas como se
pintados por Francis Bacon tropical ou fotografado por Diane Arbus. Átimos
existenciais, flashs do instante que passa, o devir etílico/gastronômico/epidérmico:
sentimentalidades em estratos, etimologia da fugacidade, um orgasmo semiológico
, morfemas compostos a deriva com propósito intrínseco. Na desordem aparente existe uma ordem
imanente: leia “Bagaceira” com perícia
de ornitólogo. Os poemas tem aí declives, há uma geologia nessas amarrações
significadas por contigüidade encantada e osmose desdobrada. Onomatopéias
hightechs, neologismos hipsters, neo-idioletos urbanóides, - exercício de
interpretação da miríade de simbolismos grávidos por exegese. Me vem à mente “Exercícios
de Estilo” de Raymond Queneau, - mas Tarcísio é profundamente brasileiro,
gongórico para o tecnicismo do grupo do Oulipo....
O
pitoresco na trajetória do autor é que esse experimentalista radical é
teledramaturgo e uma das funções do meu pequeno ensaio é desconstruir essas
dicotomias entre o erudito e o comercial. Wallace Stevens era banqueiro, T.S.
Eliot executivo, Faulkner não escreveu para cinema? Os beatniks não foram tão
televisivos? Gosto de quem destoa. Mas o que importa é a poética desse jovem
gaucho nascido na mesma terra de Caio Fernando Abreu. Pela mesma 7 Letras
lancei 5 livros na virada do século, sei da seriedade dessa casa editorial pelo
empenho e densidade dos seus escritores. Exploro alguns trechos selecionados do
livro, começando por um lindo verso drummondiano enriquecido por uma aliteração
forte:
´quase
num só momento quase
dois
olhares acesos quase
orvalhos
quase mangueiras do
jardim
quase por fim quase
riso
quase poemas iguais
quase
meu anjinho quase
canto
quase aroma quase
nuvens
quase teu rosto quase
amor
´
[logo
o poeta dá margem a um desbragado coloquialismo inventivo]
´pergunta
você namorou com
caras
maus resposta só um
pouquinho
não vendemos
cerveja
fiado por favor não
exista´
[num
arroubo quase dadaísta lança mão de um enredo quase David Lynch cantado por
Pitty]
´conserta-se
disco voador
horário
comercial uma
sequência
de eventos
aleatórios
passivo dotado com
cafuçu
arranca-rabo salve a
cabocla
jurema que nos deu a
proteção
dorotéia desconfia
que
homem misterioso seja
filho
da condessa os dois
aboiavam
no silêncio da noite
agora
dormem´
[leitor
de James Joyce e Guimarães Rosa,
Tarcísio não mimetiza, transpõe e atualiza a transliteração: até
digitalizando o discurso encerra sem findar com essa pérola]
´#SomosTodosSertão´
´
Recomedo. Conheçam e leiam “Bagaceira”,
desse nome que vai dar ainda mais o que falar como poeta: Tarcísio Lara Puiati.
BAGACEIRA
Tarcísio Lara Puiati
Editora 7 Letras
R$29,00
adquira aqui
Tarcísio Lara Puiati
Editora 7 Letras
R$29,00
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Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
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