Friday, March 30, 2018

MANUAL DO ATOR PENSANTE PARTE 1 (por Flávio Viegas Amoreira)




‘’Antes da influência funcional do diretor, - é a um amigo de letras que deve recorrer o ator principiante. Não existem candidatos a ator. O companheiro escritor, - insinua ao intérprete o que deve ser lido e visto. Basicamente ler e rever com olhos de leitor. Ao ator é entregue um papel antes pela sociedade, - o núcleo que o envolve na pequena comunidade onde veio ao mundo molda padrões dificilmente abandonados no ofício posterior.

Condições sócio-econômicas, estrutura familiar e sexualidade-afetividade são o substrato que induziram propensões e impedimentos. Se é personagem nos tablóides e revistas semanais antes de entrar em cena, - impossível abstrair limitação cultural e arrivismo do óbvio idiota fazendo pinta de gostoso. A persona do intérprete antecede escolha e adequações dos papéis. Tudo principia no poeta-confidente que cruza no momento da iniciação. Atitude, estilo, termos pós-modernos podem reverter em utilidade elevada para aquele que vai se submeter aos grandes mistificadores: encenadores que teimam em roubar dos protagonistas a função de encantar. A era dos diretores-divas cede ao ator orgânico, auto-consciente, e amante do texto imortal. O ator é um leitor por excelência,- e caminha ao lado do tímido erudito deixado em seu ofício na província onde o encanto se processou primeiro. Atores são viajantes, escritores alternam entre imaginação, pesquisa e contatos virtuais,- mais e mais escrever é se iluminar em casa com voltas de ar fresco no quarteirão. Nos palcos e refletores, o que interpreta carrega consigo o estímulo recheado de insights advindos da memória e da influência - escrever fundamentalmente é ceder substância aos agenciadores públicos de nossas palavras. O ator só se desenvolve sendo escritor concretizando esses textos originários de seu convívio e os interesses que surgiram como desdobramento dessa união meiga com o poeta.

Primeiro, características compatíveis, logo intuição do teatro, e ele se vê sem calças para encetar a Busca. Os cursos e oficinas são engrenagens gregárias de vaidades e sedução, - nada que pudesse apreender antes lendo e observando intensamente teria valia além da normatização morna dessa prática solitária precedente. A escola de teatro ou workshop, são pontes rápidas ao ambiente descolado ou lúdico treinamento para o chope da esquina. O ator e o escritor são irmãos divergentes em perspectiva de um mesmo ponto de vista existencial. As ferramentas e características pessoais determinam muito, o intercâmbio se desfaz tristemente por imposição das veleidades do meio mambembe. Interpretar é resultado da observação aguda do mundo, pela necessidade de objetivar o encontro primeiro e dar substância enlevada às sutilezas da linguagem, qualquer que seja produzida por criador encerrado sem ribalta, - o poeta que cede o iluminado ao rosto amado as entidades que visitam em seu gabinete. O escritor vivencia antecipadamente o que o ator goza no arroubo do que o primeiro continha. Imposição básica, jovem shakesperiano: um anônimo poeta ao telefone, amigo epistolar, cada e-mail, um insight  - sacada traduzindo em bom brasileiro.’’

‘’A psicologia está no olhar, no cotidiano Eterno das coisas e gentes, e nos livros que tece no palco urdindo através da sua lembrança o personagem intimizado com alma de profeta. Não a ternura, o afeto. Não a simpatia, o Amor. Antes do diálogo, a reflexão interior do diálogo. E tornar ao Olhar. Olhar sim! simpático, imaginário onívoro. Vê, tu que és belo pode notar sem pejo, olha nas lentes de fingida vaidade: olha o beber, gesticular, ensimesmado, tempestivo, floreia um drama ao pobre prosaico. Nele Eurípedes sobrevive - urbano comporta o espanto do grego. Lê e sai sorrateiro às ruas - não te fazes notar além do limite de teu encanto. O Ator extrapola seus insucessos: revê tudo em perdas, e assoma no delírio de todos os homens. Espreitar.‘’

‘’O bloco de notas é uma das condições essenciais para fazer qualquer coisa de válido... os poetas novos evidentemente, não possuem um bloco, não tem nem a experiência, nem o hábito. Neles, os versos perfeitos são raros; é por isso que todo o poema é longo, como se fosse água.’’

Wladimir Wladimovitch Maiakowsky.

‘’Todo poeta/ator tem sua fase azul: Memento: parte da missa que se reza pelos fiéis e pelos defuntos.

Lembrete. Pequeno manual que constitui a essência de uma questão. Memento. Ainda, com gosto incontido, lê bem mais que escreve ou tece, esboça. Cai-lhe nas mãos Baudelaire, aproxima-se do poeta, de quem o revela e de ambas as épocas: do bardo e do amigo em afeto. ‘’

‘’ Deus é o único que para reinar não precisa existir’’.

‘’Toma como epígrafe importância da palavra, do virtual que passa, insisti e recolhe de si.

Sabe ser o caminho longo para tanta pressa de expressão, pressa adjetiva, descoberta indevida na cronologia dos percalços."

[‘’Estar sempre entre os primeiros e Saber, eis o que importa, mesmo sem alcançarmos o porquê da encenação.  ‘’ Eugenio Montale.]

O poeta e o ator são disparates dessa passividade, nunca cansam de observar para entreter de significados a mudez da plateia. Enfrentamos a página retidos no palco, o Ator caminha digitando, ele estica os sentidos retidos, corrobora veracidade do absurdo ou do subjetivo. Todo poeta chora enternecido por um Ator no palco - vibra de mãos dadas o altissonante. Alegrem-se e não deflorem antes meu pensamento, o protagonista aguarda a deixa pondo desejo na maestria. A flauta / a cítara / o alaúde; a virginal e a espineta. Instrumentos de apreciação da espartana burguesia. Felizes gentilezas divinas: o gesto no banho, a disposição de talheres à mesa, o sentar balofo ou seco do transeunte, a invalidez do acaso, decrepitude gêmea, ocasião das festas e fastio das mortes. O ator é sempre antagonista silencioso do óbvio solene, não sacia na prece. O conflito, o vazio, entrosamento simbiótico, passo de retorno: percepção do real ao formulado, entrecho.

[‘’Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcança.’’ Rilke.]

Toma de empréstimo e acaba aderindo à mascara / recorre ao verso, põe anima de Belo e Monstro, quem mais aproxima da interface. Aproxima, pois leva com todos juntos a possibilidade tornada momentaneamente beijo, tiro, gosto, sexo. A tristeza, essa parece recolhida sem pedido às coxias, bastidores: esse sinônimo de fazer. Tecelão, acolhe para se desvencilhar sozinho a tristeza somada do escritor, do comovido, do choroso, do boquiaberto. Os apontamentos gestaram a síntese, as reservas poéticas compuseram a trama: enredo eivado dos significantes alumiados de encanto.

Contrastar ideias. Recapitular é fazer tanto quanto: esboços, fragmentos, mal-suceder e então justapor. As palavras se percebem desordenadas em ordem intrínseca. O amigo, o amante, o preceptor, a função do conjunto, as tardes passadas em transe calculado. O ator rala prá caramba! Tudo parece dizer. Monty Clift ou Dirk Bogarde,- percebe ali a meditação lírica, o esforço e o jubilo, a promessa , a fixação num pedido: menos o Destinatário, - além do Remetente. Nunca tive habilidades técnicas além da precisão de perspectiva: ao enviar um livro, sempre punha confuso, - onde o meu e o dele? o código correspondente.

Olha, lembra, desperta agudamente, lê para dilatar entrevisto, - a técnica de palco, a metodologia não pode ser muito mais que esse conteúdo. Volta: observa a Rainha Cristina, Garbo estática e nada é mais eloqüente!!

O xadrez com a morte, a porta falsa de Visconti, Brando confessando ser um fraco! Entre as pupilas e os lábios: mesmo que a ausência de lábios exceda a Graça no sorriso das pálpebras (Kenneth Branagh), o rosto humano é santo no descanso trágico. Holderlin dramatizando o percurso na neve / o cajado é tinta no enlevo desenhando as posteriores lembranças. Encena-se Rimbaud e Verlaine, Lorca e Pessoa? busca na mais recôndita paginação da estreita estante: Real Português Gabinete de Leitura, - lê Holderlin e leva Lautreamont distraído entre o Oceano e a paisagem. O fácil assim se mostra posto que dado à Luz do Dia feito sem o pó do estrume da cavalgada. Para os dois poetas dormirem másculos numa matinê de Sábado, muito tiro foi dado em bundas destemidas. Toma a peça isolado no quarto, esse é o teste de sobrevivência do artista: o anonimato.

Arte que copia abertamente transfigurando, amalgamando, no amor ou ruptura, participa, retêm e antecipa a realidade / o intento forja alexandrino ou soneto, - queda no assoalho, a deixa elevada à transcendência, aparta a dúvida, rearticula o personagem, o texto corre atrás de ti. Sê como os que deram origem a Sócrates, esculpe e dá luz à memória grávida / ávida.

[‘’ O  que é que eu estava dizendo? Ah, sei; estava falando do teatro. Agora já está tudo bem diferente... Agora eu já sou uma atriz de verdade; eu trabalho com alegria, com êxtase, em cena eu fico como que embriagada, e tenho a impressão de que fico linda. E agora, nesses dias aqui, eu tenho a impressão que cada dia estou ficando um pouco mais forte... agora eu sei, Costia, agora eu compreendo que o essencial em nossa profissão – tanto faz que seja no palco ou na literatura o essencial não é a glória, nem a fama, nem nada daquilo com que eu sonhava, e sim saber aguentar com paciência... saber carregar a cruz e Ter fé. Eu tenho fé, e já não sofro tanto; e quando penso em minha vocação, não tenho medo da vida.’’ Nina à Costantin - ‘’ A Gaivota’’- Tchékhov.]

I -‘’então?! Acho a que ponto?!

Dar o cu seria nosso único ato de resistência, poderia imaginar?

(risos contidos)

- ou de persistência?

- fundo azul para uma conversa de finalidade esvaziada;

então, então?

quanto advérbio e indagação.

(ele se colocara nu em minhas pernas e disse - sem ao menos eu pedir, que me amava...)

- um michê?

- Nisso, recuei um pouco como quem espera o transe, - retomar uma trepada é foda!

- ininterruptamente, e pensei, que dizer?

- confirmo todo afeto?

- devolvo em silêncio

- revelo o que desdenho?

- Como só no sexo sabemos ser gostosamente hipócritas... típica situação de não saber dizer.’’

II- ‘’o essencial é total refeito aos trancos da consciência ou intuição: nessa nesga de tarde e quarto, olha algo que não seja essencial: livros, copos, fotos, arpejos, sussurros, pedidos; aliás, sempre retomo ‘aliás’, Deus errou na continuidade: era tão quente em outubro antes, lembra? Daí pensar em evolução na Arte é um pulo!

- gosto dessa experiência sem vertigens contigo: a feitura e o relato

- a espera, - a digressão, - o pensamento parece diminuir toda essa ausência.”

- ‘’São aquilo que dissera antes: os pontos iluminados, - luzes que não se embrenham na curta vida da memória, retinem à vista do olhar presente, primário, o galho

- que se espraia na tua estante, a lembrança do sexo. Isso me ajuda a salvar alguma - coisa de uma noite que temos hábito bobo de chamar inesquecíveis’

- esquecer o sexo com um homem que amei, - isso atordomenta! Esquecer o sexo

- seria não mais buscar seu equivalente. Mas te garanto: sofro nesse resgate

- tento ao máximo segurar.’’

- ‘’comigo é quase igual. Mas a última foda leva de roldão todas antes, - tem uma força essa proximidade... esmesurada semelhança, a tal?! equivalênciaaaa....!’’

- ‘’ ... é que essa última foda foi ontem ... (risos) e assim dói!!’’

[minha sala parecia mesmo pronta prá aquela conversa; éramos íntimos em tudo].

[Nosso diálogo se interrompera por alguns dias de frio intenso; - quarenta graus rebaixados ao dígito zero, - toda possibilidade de clima e necessidade de correspondente emoção a atmosfera,- ambiente afinal é emoção concretizada.]

[Nada que me intimidasse ou desnudasse mais que aos 35 anos passar uma noite com uma mulher?! Gênero, objeto, - era-me de todo desconhecido: com os rapazes nunca assim: eram tanto de mim disponíveis em incertezas, vibração mesmo antes conhecê-los: (com ênfase )  biblicamente].

‘biblicamente!’’ (pensara alto)

[centro da sala, lendo Goethe ]

- ‘’Essa a desvantagem tragicômica dos heterossexuais tardios! Por quê não antes?

- Tanta convicção ideológica é peniana, toda certeza é peniana; - talvez explique

-  Arte, neurose e melancolia gays afogadas na paz exangue do fellatio.

-  O Pênis nas mãos inseguras arrefecem tantas dores gays e femininas...

- Devoção homoerótica ao pênis complexo: divas, pinceladas, cinzéis, tudo redourados

- no gosto mítico, totêmico. Como fiel devoto a um só santo, ator: dissolve tensão

- na poltrona reflexiva: dá relevo expressivo ao par de pernas, arfar, respiração

- despertar do cochilo, coçar do saco, balançar dos pés desjuntados da tela.

- Ator, - o teu gosto dissolve-se no palco, imaculadamente disfarçado de feliz!

- Radioso, revolve as sombras do Mundo, - pairando outro só no camarim ou quarto de hotel. Não saia para ser visto do teatro, te anules garbosamente sem mais governo ou transe no cigarro ou na carícia amante, se possível.

-  Uma praga não ter um amante se é criativo!’’

(à luz baixa, penumbra)

[toalha,- estendida, o hábito de limpar sem pó o quarto, desperto, - banho e varanda enxuta, - o Mar de trás dos prédios provisórios, - reflexos de temporada, - balneários.

Provisório: espelhos oceânicos, fico no gesto rápido dos que tornam viver rotina no continente, - rogo a solidão e um reencontro. Só um como devem se re-encontros. A adolescência deve voltar sem gêmeos, só uma vez na maturidade. Acordar era olhar a cama e ver onde nela ficou o sonho.]

(- o personagem ou sua imagem ainda pairava volatizado.)

[toda manhã com gosto de café requentado e pera-maçã.]

‘’Voltemos ao canto do diálogo: povoemos a trama de personagens desdobráveis.’’

‘’AS CLASSIFICAÇÕES DOS LIVROS DIDÁTICOS SÃO DE UMA SIMPLICIDADE CONFORTADORA. AQUI PROSA, LÁ POESIA. NO ENTANTO, É NOTADAMENTE PRONUNCIADA A DIFERENÇA ENTRE A PROSA DE UM POETA E A DE UM ESCRITOR DE PROSA, OU SEJA, ENTRE OS POEMAS DE UM ESCRITOR DE PROSA E OS DE UM POETA.’’

‘’ ... SALIÊNCIAS ESPLÊNDIDAS DAS MONTANHAS DA POESIA NA PROSA DA PLANÍCIE.’’

JAKOBSON.

DO ATOR-POETA: TEXTO LIDO NA BAÍA DE SANTOS OU NAS ANGRAS DO NORTE; A POESIA PREMIANDO O ESFORÇO DE TENÇÃO E CONTENÇÃO; DIÁLOGO TRADIÇÃO E COLOQUIALIDADE; ONDE TUDO SE DISPÕEM DE MODO JUSTO. COLOQUIALIDADE URBANA.

‘’prazer do passado no presente, como se revisse o carrasco do meu sonho,   Eichmann onírico. Enunciar como exprimir, expondo. Saído de um transe se achando uma bromélia,- olhar o pensamento pela natureza do sem pensamento. Inverno elíptico, sei! Preciso escrever para reconhecer o frio que dói ...tenho encontrado o caminho dos moinhos em Cervantes, na incompletude dos sonhos, anti-matéria. Os primeiros dez minutos de algo importante, o que marca um período, ciclo. Nota os primeiros dez minutos. São marcantes como o sempre das fábulas,- com todas ações ainda no infinitivo.

Na inflexão da curvatura em chamas, dobra dos desvios. Em dez minutos tens essa precisão desassistida. Modulação. Poesia semântica incontida. A porcelana azul de teus olhos merecia um poema solícito como beijo. Modulação no que dizes.’’

‘’o achado poético é próprio desse aprofundar legítimo do quadro situado, sutil observação ou inserção precisa. Do rumor à análise, do furor à técnica permanente. Quando se apropria em plenitude do afazer, tem-se o molde e as derivações infinitas, as modalidades difundidas.

Mais que o banco de praça, a parada de ônibus ou trem, em Pinter ou Beckett, nota a fluência contida do observador. Nota! Poesia enumerativa, cumulada: dizer muito ou tudo, antecipar ao vento. Lembra caravanas magrebinas: os bérberes, leste argelino, - caçoar de camelos, percebe como alguns dias no Cairo e tomaste ares imprecisos de morador vadio ou colono?

[frente fria em aproximação]

- Poesia metereológica.

- Se preciso remeto pedido da sinopse e dormes aqui, juntinho ao retrato da Velha senhora.

- Lembra de ler ‘’O Ateneu’’, - romance diminuído pela incúria, mas fantástico para que percebamos autenticidade do personagem.

Um tipo de romance preenche vazios do protagonista de dada peça ou encenação.

Arte com palavra é literatura sempre!’’


Publicado originalmente em
MEIO TOM - POESIA & PROSA
editado por Constancio Negaro.
http://www.meiotom.art.br


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).

No comments:

Post a Comment