Wednesday, March 14, 2018

PESSOA DOUTRA MARGEM (por Flávio Viegas Amoreira)



I
Muito além da melancolia das alvoradas
Zênite: tudo se esvai no ímpeto de acordar pela sombra os recifes
Despertar dum sonho nu
Espraio me dum cais etéreo
Subito solto a recordação
Vagando até o molhe do espírito liberto

II
 Eu largado ao meu outro marujo
Chega-me  ainda que amante da cidade!
Sinto arrefecidos meus medos
Todas peias d´antanho romper
Largar! Não saber-se preso outra fé
Que não a no teu corpo
Também marujo
Onde esteio a laçar as nuvens
Por teus braços hélices
Precipício
Âncora

III
 Ah! o grande porto!
Emprenhado de suspiros !
Imenso porto rasgando-se
Nas tardes escarlates !
E quais outros
Portos nos esperam?
Amantes dourados

IV
Dessa mesma coragem
Que vos falo sem mais o temor
Acumulado de outras eras 
Sozinho no porto ainda
Noturno nesse limiar de verão
Vislumbro longe um veleiro lento
Melancólico paquete
E ventam em mim suas velas
De todo lado do mar algum modo
Material do desejo difuso

V
E o que é o vento ?
Praiano siroco versado em barcos
Ancoradouro em escadarias toscas
Enquanto teu navio não parte
Gaivotas vagando por cerejeiras espaciais
E a chuva perdeu a asa rubra
Interminável duração estética
Charada imagética

VI
 Mesma luz sobre luz
Nos escondíamos amadrugados de azul
Cobalto pelo ar
Sereno aroma
Ardósia
Envolvido de lavanda

VII
Meus olhos postos
No teu silêncio
Insidiosos
Insinuantes
Em que porta bater primeiro
Amor súplice?
Teu sorriso pêssego
Carne irrefletida
Futuro mais que perfeito
Anjo de Tânger

VIII
 Quem ama não desfalece
ao intimorato mergulho da superfície
sob a maciez gris das ondas
entrando vagar seguro
no reino sem palavras
e tantos significados navegados

IX
Sem  o véu da duvida
rasga-se sobre a proa
empunhando a letra de sangue
desembaraçado o rumo das águas

X
Desatai-me passivo a todos sabores
Afoito do bafejo de todas tormentas
e bem aventuranças
vergado pelo tombadilho
soberano do meu sexo
no castelo de popa

Original do livro PESSOA DOUTRA MARGEM,
poema longo homenagem a ODE MARÍTIMA de Fernando Pessoa
nos 80 anos de sua morte.
O livro sai em junho pelas EDIÇÕES CAIÇARAS 


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).

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