Outro
dia recebi, por via aérea, um convite para um casamento que se vai realizar na
Inglaterra, no dia 18 de abril. Acontece que eu gostaria muito de assistir a
esse casamento e, quando o convite chegou, pensei em dar um jeito qualquer de
fazer a viagem. Pegava um avião... e as despesas que se danassem. Mas desde
então discuti exaustivamente o problema com minha mulher, que é uma moça
espantosamente sensata, e nos decidimos contra a ideia: entre outras razões,
tinha esquecido por completo que minha sogra esta planejando passar conosco as
duas ultimas semanas de abril. Na verdade quase nunca vejo a mamãe Grencher, e
os anos já lhe vão pesando. Esta com cinquenta e oito (como seria a primeira a
admitir).
Seja
como for, quer eu afinal vá ou não, nunca fui dessas pessoas que, por mera
preguiça, deixam que um casamento transcorra em meio à maior chatice. Por isso,
pus mãos à obra e passei para o papel algumas observações reveladoras sobre a
noiva, tal como conheci há quase seis anos. Se minhas notas causarem um ou
outro momento de embaraço ao noivo, a quem nunca vi, tanto melhor. Ninguém aqui
esta interessado em ser simpático. A intenção é, isto sim, educar, instruir.
Em
abril de 1944 eu integrava um grupo de cerca de sessenta soldados americanos
submetidos a um curso de treinamento pré-invasão, bastante especializado,
ministrado pelo serviço inglês de espionagem em Devon, na Inglaterra. Quando
relembro aqueles dias, acho que o traço característico de nosso grupo estava em
que dentre os sessenta, não havia um único sujeito capaz de fazer camaradagem
com facilidade. Éramos todos essencialmente do tipo que escreve cartas e,
quando nos falávamos fora das horas de serviço, era quase sempre para pedir
emprestado um pouco de tinta. Quando não estávamos escrevendo cartas ou
assistindo às aulas, cada qual tratava de seguir seu próprio caminho. De minha
parte, quando fazia sol eu ia passear pelo campo, olhando a paisagem. Em dias
de chuva, geralmente sentava-me em algum lugar seco e lia um livro,
frequentemente a dois passos de uma inútil mesa de pingue-pongue.
O
curso de treinamento durou três semanas, terminando num sábado muito chuvoso.
Nessa noite, as sete horas, o grupo todo devia tomar um trem para Londres,
onde, segundo se dizia, seriamos designados para divisões de infantaria e de
paraquedistas expressamente organizadas para os desembarques do Dia D. Por
volta das três da tarde já tinha arrumado todas as minhas coisas no saco de
campanha, inclusive a caixa que deveria conter a máscara contra-gás – cheia de
livros que eu trouxera do Outro Lado. (Algumas semanas antes eu havia atirado a
máscara por uma escotilha do Mauritânia, perfeitamente cônscio de que, se o
inimigo realmente resolvesse fazer uso do gás, eu jamais conseguiria colocar a
droga da máscara em tempo.) Lembro-me de ter ficado um tempão diante da janela
dos fundos de nossa barraca, vendo a chuva cair de forma obliqua e tediosa. Meu
dedo do gatilho coçava de maneira quase imperceptível, se tanto. Atrás de mim
podia ouvir o som pouco amistoso de muitas canetas escrevendo sobre muitas
folhas de papel de carta aérea. De repente, sem qualquer proposito definido,
afastei-me da janela e vesti a capa de chuva, o cachecol de cachemira, as
galochas, as luvas de lã e o quepe (que, segundo me diziam, eu usava num angulo
todo especial – ligeiramente caído sobre as orelhas). Aí, depois de acertar meu
relógio de pulso pelo relógio do banheiro, desci a colina em direção à cidade,
pelo longo e escorregadio caminho de paralelepípedos. Tratei de ignorar os
relâmpagos que caiam a minha volta: ou bem eles trazem o endereço da gente ou
não trazem.
No
centro da cidade, provavelmente o lugar mais alagado da região, parei em frente
a uma igreja para ler o quadro de avisos, principalmente porque os números,
pintados de branco sobre o fundo preto, tinham atraído minha atenção, mas em
parte também porque, depois de três anos no exército, eu já estava viciado em
ler quadros de aviso. Às três e quinze, segundo o quadro, haveria um ensaio do
coro infantil. Olhei para meu relógio e outra vez para o quadro. Numa folha de
papel estavam relacionadas as crianças que deveriam participar do ensaio. Li
todos os nomes ali em pé, na chuva, e depois entrei na igreja.
Uns
dez adultos se achavam espalhados pelos bancos, alguns deles segurando no colo
pequenas galochas, as solas voltadas para cima. Passei por eles e fui
instalar-me na primeira fila. Sobre uma plataforma, sentadas em três filas
cerradas de cadeiras de auditório, havia umas vinte crianças, na maioria
meninas, variando em idade dos sete aos treze anos. Naquele momento, a regente
do coro – uma mulher enorme, com um vestido de tweed – estava aconselhando as
crianças a abrirem mais a boca ao cantar. Alguém já ouviu falar, perguntou ela,
de algum passarinhozinho que ouse cantar sua linda canção sem antes abrir o
biquinho bem aberto? Aparentemente ninguém jamais ouvira: as crianças
responderam-lhe com um olhar imóvel e opaco. Ela prosseguiu, dizendo que queria
que todas as suas criancinhas absorvessem o significado das palavras que
cantassem, não se contentando simplesmente em repeti-las como uns papagaios.
Soprou então uma nota no diapasão e as crianças, qual halterofilistas precoces,
ergueram seus hinários.
Cantaram
sem acompanhamento instrumental – ou mais precisamente no caso, sem qualquer
interferência. Suas vozes eram melodiosas e em nada afetadas, a tal ponto que
alguém dotado de maior religiosidade do que eu poderia ter levitado sem o menor
esforço. Uma ou duas crianças menores atrasavam um pouquinho, mas de um modo
que só a mãe do compositor poderia criticar. Eu nunca tinha ouvido aquele hino
e fiquei torcendo para que tivesse umas doze estrofes ou mais. Enquanto ouvia,
fui examinando os rostos de todas as crianças, mas observei um em particular, o
da menina que estava sentada mais próximo de mim, na ultima cadeira da fila da
frente. Devia ter uns treze anos, cabelos de um louro acinzentado que caiam até
a altura dos lóbulos das orelhas, uma testa perfeita e uns olhos blasé que,
pensei comigo, muito possivelmente já teriam registrado o numero de
espectadores presentes. Sua voz destacava-se claramente das demais, não apenas
porque ela estivesse mais perto de mim. Tinha o registro mais alto, era a que
soava mais doce, a mais firme, e automaticamente liderava as outras vozes.
A
mocinha, no entanto, parecia ligeiramente entediada com sua própria habilidade
vocal, ou talvez apenas com as circunstancias de tempo e lugar; duas vezes,
entre uma e outra estrofe, eu a vi bocejar. Era um bocejo muito bem educado, um
bocejo de boca fechada, mas dava para se notar: as narinas a traiam.
Mal
o hino chegara ao fim, a regente do coro começou a dissertar longamente sobre
as pessoas que não sabem manter os pés parados e a boca hermeticamente fechada
durante o sermão. Concluí que a parte cantada do ensaio havia terminado e,
antes que a voz dissonante da regente quebrasse todo o encantamento criado pela
musica das crianças, levantei-me e saí da igreja.
A
chuva tinha aumentado. Desci a rua e, através da janela. dei uma olhada no
salão de diversões da Cruz Vermelha, mas havia um monte de soldados diante do
balcão de café e mesmo através do vidro dava para ouvir o som de bolas e
pingue-pongue na sala ao lado. Atravessei a rua e entrei numa casa de chá
comum, inteiramente deserta a não ser pela garçonete, mulher de meia idade que
parecia preferir um freguês com uma capa de chuva menos encharcada. Pendurei a
capa com maior cuidado possível, sentei-me a uma mesa e pedi chá com torradas.
Era a primeira vez que eu falava com alguém naquele dia. Dei então uma batida
por todos os meus bolsos, inclusive os da capa, e acabei encontrando algumas
cartas antigas para reler; uma, de minha mulher, contava como havia piorado o
serviço no Restaurante Schrafft da rua Oitenta e Oito; outra, de minha sogra,
pedia-me o obsequio de lhe mandar novelos de cachemira, na primeira ocasião em
que escapulisse do “acampamento”.
Enquanto
eu ainda estava na primeira xicara de chá, entrou na sala a mocinha que eu
ficara olhando e ouvindo durante o ensaio do coro. Seu cabelo estava empapado,
deixando aparecer as bordas das orelhas. Com ela vinha um garoto bem
pequenininho, certamente seu irmão, cujo boné ela removeu com dois dedos, como
se fosse um espécime de laboratório. Fechando a fila entrou uma mulher de jeitão
eficiente, com um chapéu de feltro mole, presumivelmente a governanta dos dois.
A participante do coro, desvencilhando-se do casaco enquanto andava, escolheu a
mesa – uma boa mesa, de meu ponto de vista, pois ficava a uns três metros de
distancia, bem a minha frente. Ela e a governanta se sentaram. O garotinho ,
que devia ter uns cinco anos, ainda não estava pronto para se sentar.
Esgueirou-se para fora do casaco e, com expressão imperturbável de quem já
nasceu fazendo alguma travessura, começou a chatear a governanta metodicamente,
empurrando varias vezes a cadeira para frente e para trás, olhando para ela o
tempo todo. A governanta, esforçando-se por falar baixo, deu umas duas ou três
ordens para que ele se sentasse e, afinal, parasse com a gracinha. Mas só
quando a irmãlhe falou é que ele resolveu acalmar-se e repousar o traseiro no
assento. Imediatamente apanhou o guardanapo e o pôs em cima da cabeça. A
mocinha removeu o guardanapo, abriu –o e colocou no colo dele.
Mais
ou menos na hora em que lhes era servido o chá, a participante do coro,
apanhou-me espiando sua mesa. Encarou-me de volta, com aqueles olhos de quem
calcula o numero de espectadores, e aí, de repente, deu-me um sorriso breve e
condicional. Estranhamente radiante, como são, as vezes, alguns sorrisos breves
e condicionais. Sorri em resposta, de maneira muito menos radiante, mantendo o
lábio superior firmemente plantado sobre uma obturação provisória que me haviam
feito no exército, negra como carvão, bem visível entre dois de meus dentes da
frente. Quando dei por mim a mocinha se encontrava de pé, com invejável pose,
ao lado da minha mesa. Estava com um vestido de tecido escocês – com o padrão
do clã de Campbell, se não me engano. Pareceu-me o tipo de vestido ideal para
ser usado por uma mocinha num dia assim tão chuvoso.
–
Eu pensava que os americanos detestassem chá – ela falou.
Não
disse isso pata se fazer de engraçadinha, mas antes como alguém interessado na
verdade ou em informações estatísticas. Respondi que alguns de nós só tomávamos
chá. Convidei-a para sentar-se comigo.
–
Obrigada – respondeu – Talvez por um segundinho.
Levantei-me
e afastei a cadeira para ela, a que ficava na minha frente; sentou-se na
beirada do assento, mantendo o corpo ereto, com graça e leveza. Voltei para minha
cadeira, quase correndo, mais do que disposto a estimular a conversa. Mas,
quando me vi sentado. não consegui pensar em nada para dizer. Sorri outra vez,
mantendo ainda escondida minha negra obturação. Comentei que estava fazendo um
tempo horrível lá fora.
–
É, péssimo – retrucou minha convidada com a entonação significativa de quem
odeia esse tipo de conversinha fiada. Pousou os dedos firmemente sobre a borda
da mesa, como se estivesse numa sessão espirita, e logo em seguida – quase
instantaneamente – fechou as mãos: suas unhas estavam roídas até o sabugo.
Usava um relógio de pulso de feitio militar, mais parecendo o cronômetro de
algum comandante de navio, grande demais para pulso tão fino.
–
Você assistiu ao ensaio do coro – ela comentou, em tom desinteressado. – Eu te
vi lá.
Confirmei
que havia estado lá e notara como a voz dela se destacava das demais. Disse que
tinha achado sua voz magnífica.
Concordou
com a cabeça e falou – Eu sei. Vou ser cantora profissional.
–
É mesmo? Opera?
–
Não pelo amor de Deus. Vou cantar jazz no radio e ganhar um monte de dinheiro.
Aí, quando tiver trinta anos, me aposento e vou viver numa fazenda, em Ohio.
Tocou
o alto da cabeça encharcada com a palma da mão.
–
Você conhece Ohio? – perguntou.
Respondi
que já havia atravessado o Estado algumas vezes, de trem, mas que não conhecia
direito aquela região. Ofereci-lhe uma torrada.
–
Não obrigada. Para dizer a verdade, eu como muito pouco.
Mordi
uma fatia de torrada e comentei que, em Ohio, havia lugares onde a vida era bem
dura.
Eu
sei disso. Um americano que eu conheci me disse isso. Você é o decimo-primeiro
americano que eu encontro.
A
essa altura a governanta estava fazendo sinais insistentes em sua direção, para
que voltasse à mesa – ou seja, para que deixasse de incomodar o rapaz. Minha
convidada, entretanto, ajeitou calmamente a cadeira de modo a que suas costas
impedissem qualquer possibilidade futura de comunicação com a mesa de origem.
–
Você está frequentando aquela escola do serviço secreto no alto do morro, não
é? – indagou-me firmemente.
Por
dever de ofício, respondi-lhe que estava visitando Devonshire por motivos de
saúde.
–
Pois sim – respondeu – Eu não nasci ontem, sabe?
Respondi
que, quanto a isso, não tinha a menor duvida. Tomei meu chá por alguns
momentos. Estava começando a ficar ligeiramente preocupado com minha postura,
por isso sentei-me mais empertigado na cadeira.
–
Para um americano, você parece muito inteligente – minha convidada ponderou.
Respondi-lhe
que, pensando bem, aquilo era o tipo da coisa esnobe de se dizer, além de não
se uma observação digna de uma pessoa como ela.
Ela
corou, outorgando-me automaticamente a afirmação social que me vinha faltando.
–
Bem, a maioria dos americanos que eu vi agem como uns animais. Estão sempre se
socando e xingando todo mundo, e ... você sabe o que um deles fez?
Fiz
que não com a cabeça.
–
Jogou uma garrafa de uísque vazia pela janela de minha tia. Felizmente a janela
estava aberta. Você acha isso muito inteligente?
Não
me pareceu particularmente inteligente, mas não disse isso. Expliquei que, pelo
mundo afora, muitos soldados estavam longe de suas casas e poucos deles haviam
sido bem tratados pela vida. Pensava mesmo que qualquer pessoa era capaz de
compreender isto sozinha.
–
Talvez – respondeu minha convidada sem convicção. Levantou outra vez a mão até
a cabeça molhada e ajeitou alguns fios soltos de cabelo louro, tentando
encobrir as orelhas.
–
Meu cabelo está encharcado. Devo estar horrorosa –falou, olhando para mim – Meu
cabelo é bem ondulado quando está seco.
–
Dá para perceber, eu já tinha notado.
–
Não chega a ser crespo, mas é bem ondulado. Você é casado?
Respondi
que era.
Ela
sacudiu a cabeça… – Você é apaixonado por sua mulher? Ou estou sendo muito
indiscreta?
Respondi
que, quando ela se tornasse indiscreta, eu o diria.
Ela
moveu as mãos e os pulsos mais para o centro da mesa – e lembro-me de ter
desejado fazer alguma coisa com aquele enorme relógio de pulso, talvez sugerir
que ela usasse em volta da cintura.
–
Em geral eu não sou exageradamente gregária – ela disse olhou para mim, como
querendo ver se eu compreendera ou não o significado da palavra. Mas nada fiz
que pudesse indicar uma coisa ou outra. – Só vim até sua mesa porque achei que
você parecia extremamente solitário. Você tem um rosto muito sensível.
Falei
que ela tinha razão, que eu de fato estava me sentindo solitário e ficara muito
satisfeito por ela ter vindo até minha mesa.
–
Estou me esforçando para ser mais compassiva. Minha tia diz que eu sou uma
pessoa terrivelmente fria – falou, levando novamente a mão até o alto da
cabeça. – Eu vivo com minha tia. Ela é uma pessoa extremamente bondosa. Desde a
morte de minha mãe ela tem feito todo o possível para que eu e Charles nos
sintamos ajustados.
–
Que bom...
–
Mamãe era muitíssimo inteligente. Muito sensual, em vários sentidos.
Olhou-me
com uma espécie de renovada intensidade.
–
Você me acha terrivelmente fria?
Respondi
que absolutamente não achava – na verdade, muito pelo contrario. Disse meu nome
e perguntei pelo dela.
Hesitou:
– Meu primeiro nome é Esmé. Acho que, por enquanto não lhe devo dizer todo o
meu nome. Eu tenho um titulo de nobreza e pode ser que você se impressione com
títulos. Os americanos se impressionam com esse tipo de coisa, você sabe.
Falei
que não achava que fosse ficar impressionado, mas não era má ideia ela deixar
para revelar seu título mais tarde.
Nesse
justo instante senti o bafo quente de alguém respirando bem atrás do meu
pescoço. Virei-me e, por um triz, não rocei meu nariz no irmãozinho de Esmé.
Como se eu não existisse, dirigiu-se a irmã, em voz aguda e cortante.
–
Miss Megley disse pra você ir acabar de tomar o chá!
Transmitida
a mensagem, retirou –se para a cadeira que ficava à minha direita, entre mim e
sua irmã. Olhei-o com grande interesse. Ele estava elegantíssimo, de calças
marrons, casaco azul-marinho, camisa branca e gravata listrada. Encarou-me de
volta, com uns imensos olhos verdes.
–
Por quê as pessoas nos filmes se beijam sempre de lado? – inquiriu-me
–
De lado? – Perguntei. Esse problema também me havia preocupado quando eu era
criança. Respondi que achava que era porque os narizes dos artistas eram grande
demais para eles se poderem beijar de frente.
–
Ele se chama Charles – disse Esmé. – É extremamente brilhante para a idade.
–
Os olhos dele são um bocado verdes, não é Charles?
Charles
respondeu-me com um olhar enjoado que minha pergunta merecia e escorregou para
a frente da cadeira, até que seu corpo todo foi parar debaixo da mesa, com
exceção da cabeça, que ele deixou ficar sobre o assento.
–
Eles são alaranjados – falou em voz forçada, dirigindo-se ao teto. Apanhou uma
beirada de toalha e cobriu seu rosto bonito e impassível.
–
As vezes ele é brilhante e outras vezes não é – disse Esmé – Charles, senta
direito!
Charles
continuou onde estava. Parecia estar prendendo a respiração.
–
Ele sente muito a falta de meu pai. Papai foi m-o-r-t-o no Norte da África –
ela soletrou.
Expressei
meu pesar pelo fato. Esmé sacudiu a cabeça e disse.
–
Papai adorava Charles.
Mordeu
pensativamente a cutícula do polegar.
–
Charles se parece muito com minha mãe. Eu sou exatamente igual ao meu pai.
Continuou
mordendo a cutícula.
–
Minha mãe era uma mulher muito emotiva. Ela era extrovertida, meu pai era
introvertido. Mas eles combinavam muito bem, de um modo superficial. Para ser
franca, papai realmente precisava de uma companheira mais intelectual do que
mamãe. Ele era um verdadeiro gênio.
Esperei
receptivamente por informações adicionais, mas Esmé ficou nisso. Olhei para
baixo, na direção de Charles, que estava agora com o lado do rosto deitado no
assento da cadeira. Quando notou que estava sendo observado, fechou os olhos
mansamente, angelicamente, e aí pôs a língua de fora – uma peça de surpreendentes dimensões – deixando escapar
um som que, no meu país, teria sido um glorioso tributo a um juiz de beisebol
míope. O barulho fez virtualmente tremer a casa de chá.
–
Para com isso – disse Esmé, nitidamente inabalada. – Ele viu um americano fazer
isso na fila do restaurante e agora repete sempre que esta chateado. Para com
isso agora, senão eu te mando diretamente para Miss Megley.
Charles
abriu os olhos enormes, sinal de que tinha ouvido a ameaça da irmã, mas, afora
isso, não demonstrou maiores cuidados. Fechou os olhos novamente e continuou
com o rosto deitado no assento.
Comentei
que talvez ele devesse guardar aquele truque – isto é, a vaia do Bronx – para
quando começasse a usar normalmente seu título nobiliárquico. Isto é, caso ele
também tivesse algum título.
Esmé
lançou-me um olhar demorado, vagamente clínico.
–
Você tem um senso de humor muito apurado, não é? – falou, suspirosa. – Papai
dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de humor. Que eu estava
despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso de humor.
Encarando-a,
acendi um cigarro e disse-lhe não acreditar que o senso de humor tivesse
qualquer utilidade numa hora de aperto.
–
Papai disse que tinha.
Tratava-se
de uma afirmação de fé, não de um contra-argumento, por isso resolvi bater
rapidamente em retirada. Balancei afirmativamente a cabeça e disse que o pai
dela provavelmente encarara a questão sob uma perspectiva de longo prazo,
enquanto eu a havia considerado em sua projeção de curto prazo (embora até hoje
eu não tenha a menor ideia do que isso signifique).
–
O Charles sente uma enorme falta dele – Esmé falou alguns momentos depois. –
Ele era um homem extremamente bom. E muito bonito também. Não que a aparência
de uma pessoa seja muito importante, mas ele era bonito de verdade. Tinha uns
olhos incrivelmente penetrantes, para um homem que era intrinsecamente bondoso.
Concordei
com a cabeça. Disse que imaginava que o pai dela tinha um vocabulário
riquíssimo.
–
Ah, tinha! Fabuloso! – confirmou. – Ele era um colecionador de documentos
históricos... amador, naturalmente.
Nesse
instante eu senti um tapa impertinente, quase um soco, no meu braço direito,
vindo do lado de Charles. Voltei-me para ele. Estava sentado agora na cadeira,
em posição bastante normal não fosse pela circunstância de ter uma perna
dobrada por baixo do corpo.
–
O que uma parede disse pra outra? – perguntou, com aquela voz aguda. – É uma
charada.
Levantei
os olhos para o teto, pensativo, e repeti alto a pergunta. Ai então olhei para
Charles com ar de perplexidade e confessei que desistia.
–
Te encontro na esquina! – veio a solução, em volume máximo.
A
maior reação partiu do próprio Charles, que achou a piada insuportavelmente
engraçada. Na verdade, Esmé teve de levantar-se para ir bater nas costas dele,
como se estivesse com um aceso de tosse.
–
Agora para como isso – ela disse, voltando a seu lugar. – Ele conta essa
charada a todo mundo e sempre tem um ataque. Normalmente ele se baba todo
quando ri. Agora para, por favor.
–
Mas é uma das melhores charadas que eu já ouvi – falei, olhando para Charles,
que começava a recuperar-se do ataque. Em resposta ao elogio, escorregou ainda
mais para baixo da cadeira e voltou a cobrir o rosto, até a altura dos olhos,
com uma ponta da toalha. Aí então encarou-me com os olhos descoberetos,
carregados de uma alegria que se dissolvia lentamente, com o orgulho de quem
sabe umas charadas boas de verdade.
–
Posso saber qual era a sua profissão antes da guerra? – Esmé perguntou-me.
Respondi
que não tinha emprego nenhum, que havia terminado a universidade um ano antes
de começar a guerra, embora gostasse de me considerar um contista profissional.
Ela
balançou a cabeça polidamente. – E seus contos já foram publicados.
Tratava-se
de uma pergunta familiar, embora sempre embaraçosa, à qual eu não costumava
responder com exagerada facilidade. Comecei a explicar que a maioria dos
editores dos Estados Unidos eram um bando de...
–
Meu pai escrevia muito bem – Esmé interrompeu. – Estou guardando várias cartas
dele para a posteridade.
Falei
que isso me parecia uma boa ideia. Por acaso dei com os olhos outra vez sobre
seu relógio de pulso com jeito de cronómetro, com aquele mostrador enorme.
Perguntei se havia pertencido a seu pai.
Ela
examinou longamente o relógio, com toda
a solenidade.
–
É era dele. Me deu de presente pouco antes de eu e o Charles sermos evacuados –
respondeu, enquanto escondia as mãos sob a mesa. – Apenas como recordação é
claro.
Ela
mesma conduziu a conversa para outro assunto.
–
Eu ficaria muito grata se você algum dia escrevesse um conto exclusivamente
para mim. Sou ávida por leitura.
Disse-lhe
que certamente o faria, se pudesse. Expliquei que não era terrivelmente
prolífico.
–
Não precisa ser terrivelmente prolífico! Basta que não seja um conto bobo e
infantil – ela disse, e depois se calou, pensativa. – Eu prefiro estórias sobre
sordidez e sofrimento.
–
Sobre o quê? – perguntei, inclinando-me para a frente.
–
Miséria e sofrimento. Eu me interesso muito pela sordidez e pelo sofrimento.
Eu
já ia começar a solicitar-lhe maiores esclarecimentos, mas senti um beliscão
forte de Charles em meu braço. Voltei-me para seu lado, com uma ligeira careta
de dor. Ele estava novamente de pé, a meu lado.
–
O que é que uma parede disse para a outra? – perguntou, de modo algo familiar.
–
Você já perguntou isso a ele, Charles – Esmé disse. – Agora para com isso.
Sem
prestar atenção à irmã, e pisando sobree um dos meus pés, Charles repetiu a
pergunta-chave, Reparei que o laço de sua gravata não estava no lugar devido.
Apertei
o nó, encarando-o, e aí, arrisquei: – Te encontro na esquina!
Mal
acabei de falar, arrependi-me inteiramente. A boca do menino se abriu. Senti-me
como se eu mesmo a tivesse aberto. Ele desceu de cima de meu pé e, com furiosa
dignidade, voltou para a sua mesa, sem olhar para atrás.
–
Ele esta fulo de raiva – Esmé disse. – Tem um temperamento muito violento.
Minha mãe costumava mimá-lo demais. Meu pai era o único que não o mimava.
Continuei
olhando para Charles, que se havia sentado e começava a tomar o chá, segurando
a xícara com as duas mãos. Tinha a esperança de que ele se voltasse na minha
direção, mas nem se mexeu.
Esmé
levantou-se
–
Il faut que je parte aussi – ela disse com um suspiro. – Você fala francês?
Levantei-me
da cadeira com um misto de pesar e confusão. Trocamos um aperto de mãos; sua
mão, como eu suspeitava, era nervosa, a palma úmida. Disse-lhe, em inglês, o
quanto me fora agradável sua presença.
Ela
concordou, sacudindo a cabeça. – Achei que você gostaria. Eu sou muito
comunicativa para a minha idade – falou, dando mais um toque exploratório no
cabelo. – Desculpe o jeito que está meu cabelo. – Eu provavelmente estou com
uma cara horrorosa de se olhar.
–
Nada disso! Para dizer a verdade, acho que as ondas já estão começando a
aparecer.
Ela
rapidamente levou a mão outra vez ao cabelo.
–
Você acha que voltará por aqui num futuro próximo? – Perguntou. – Todo sábado
nós costumamos vir aqui, depois do ensaio do coro.
Respondi
que gostaria muitíssimo de poder voltar, mas que infelizmente tinha a certeza
de que isso não seria possível.
–
Em outras palavras, você não pode falar sobre os movimentos da tropa – Esmé
disse. Não fez qualquer menção de abandonar as proximidades da mesa. Cruzou
mesmo um pé sobre o outro e, olhando para baixo, alinhou os bicos dos sapatos.
Era uma exibiçãozinha digna de nota, porque ela estava de meias brancas e seus
pés e tornozelos eram muito bem feitos. Olhou-me repentinamente.
–
Você gostaria que eu escrevesse para você – perguntou, seu rosto ganhando um
colorido peculiar. – Eu escrevo umas cartas muito maduras para uma pessoa de...
–
Gostaria muito – respondi. Tirei do bolso papel e lápis, e escrevi meu nome,
posto, número de série e número postal.
–
Eu escrevo primeiro – ela disse, aceitando o pedaço de papel e guardando-o num
bolso do vestido. – Não quero que você se sinta constrangido a escrever de modo
algum. Adeus – falou, e voltou para sua mesa.
Pedi
mais um bule de chá e fiquei olhando para eles, até que os dois – e a afobada
governanta – se levantassem para ir embora. Charles seguia na frente,
capengando tragicamente, como se tivesse uma perna muito mais curta do que a
outra. Não olhou para mim. A governanta vinha depois e, por ultimo, Esmé, que
acenou na minha direção. Respondi também com um aceno, levantando-me
ligeiramente da cadeira. Foi um momento estranhamente comovedor para mim.
* * *
Menos
de um minuto depois Esmé voltou a entrar na casa de chá, puxando Charles pela
manga do casaco.
–
O Charles quer te dar um beijo de despedida.
Descansei
imediatamente a xícara e disse que era muito gentil da parte dele mas... será
que ela tinha certeza?
–
Tenho – respondeu, com uma ponta de severidade. Soltou a manga de Charles e deu-lhe
um empurrão bastante vigoroso em minha direção. Ele avançou, a face lívida, e
deu-me um beijo estalado, molhado, bem embaixo da ponta da orelha direita.
Terminada a provação, fez menção de partir em linha reta rumo à porta, em busca
de uma existência menos sentimental, mas peguei-o pelo cinto falso, nas costas
do paletó; prendi-o firmemente e perguntei:
–
O que é que uma parede disse para outra?
Seu
rosto iluminou-se – Te encontro na esquina! – respondeu num guincho, e saiu
correndo da sala, possivelmente em meio a um ataque histérico.
Esmé
continuava de pé, novamente com um tornozelo cruzado sobre o outro.
–
Você tem certeza de que não vai esquecer de escrever aquele conto para mim? Não
precisa ser exclusivamente para mim. Pode...
Falei
que não havia a menor possibilidade de que eu esquecesse. Disse-lhe que nunca
tinha escrito um conto para ninguém, mas parecia exatamente o momento oportuno
para começar.
Ela
concordou com a cabeça.
Procure
escrever uma estória, extremamente sórdida e comovente – sugeriu – Você tem
alguma experiência pessoal de miséria humana?
Respondi
que, a bem dizer, não tinha experiência própria do assunto, mas que, de uma
forma ou de outra, estava ficando cada dia mais familiarizado com ela – e faria
o possível para corresponder às especificações. Trocamos um aperto de mãos.
–
Não é uma pena que nós nos tenhamos encontrado em condições tão desfavoráveis?
Respondi
que sim, que certamente era uma pena.
–
Adeus – Esmé disse – Espero que você saia da guerra com suas faculdades mentais
intactas.
Agradeci,
disse mais algumas palavras e a acompanhei com o olhar. Foi embora
vagarosamente, pensativamente, tocando a ponta dos cabelos para ver se já
estavam secos.
* * *
Esta
é a parte sórdida ou comovente da historia, e o cenário se modifica. Os atores
também se modificam. Eu ainda estou nas imediações mas daqui por diante, por
razões que não estou autorizado a revelar, disfarcei-me tão astuciosamente que
nem mesmo o leitor mais atilado conseguira reconhecer-me.
Deviam
ser umas dez e meia da noite em Gaufurt, na Bavária, algumas semanas depois do
Dia da Vitoria. O Sargento X achava-se em seu quarto, no segundo andar da casa
onde, antes mesmo do armistício, ele e outros nove soldados americanos haviam
sido instalados. Estava sentado numa cadeira de armar, de madeira, diante de
uma pequena escrivaninha bastante desarrumada. Lia com grande dificuldade um
livro aberto à sua frente. A dificuldade corria por sua conta, e não por conta
do livro. Embora os soldados que ocupavam o primeiro andar tivessem
habitualmente acesso prévio aos livros enviados todo mês pelo Departamento de
Serviços Especiais, X parecia sempre ficar com o livro que teria escolhido de
qualquer maneira. Tratava-se, contudo, de um jovem que não saíra da guerra com
todas as faculdades mentais intactas – e já há mais de uma hora vinha tendo que
ler e reler cada paragrafo. Agora estava tendo que seguir o mesmo processo com
cada frase. De repente fechou o livro, sem marcar a pagina. Por alguns
instantes cobriu os olhos com a mão, protegendo-os do clarão rude da lâmpada
descoberta que brilhava sobre a escrivaninha.
Tirou
um cigarro do maço que havia em cima da mesa, acendendo-o com dedos que se
entrechocaram de leve, incessantemente. Chegou o corpo um pouco para trás na
cadeira e fumou sem sentir gosto algum. Ha semanas que vinha fumando um cigarro
atrás do outro. Suas gengivas sangravam à mais leve pressão da ponta da língua,
e ele raramente parava de repetir essa experiência; era um pequeno jogo que ele
às vezes praticava durante horas a fio. Ficou sentado algum tempo, fumando e
experimentando. Aí, de repente – da maneira já familiar e, como sempre, sem
qualquer aviso prévio – teve a sensação de que sua mente se deslocava e ficava
balançando, tal como bagagem mal assentada num porta malas de trem. Rapidamente
fez o que vinha fazendo há bastante tempo para repor as coisas no lugar:
apertou as mãos fortemente contra as têmporas. Manteve-se assim, teso, por
alguns instantes. Seu cabelo precisava ser cortado e estava sujo. Tinha-o
lavado três ou quatro vezes durante as duas semanas que passara no hospital em
Frankfort-sobre-o-Meno, mas o cabelo tinha-se sujado novamente na longa e
poeirenta viagem de jipe, ao voltar para Gaufurt. O Cabo Z, que fora busca-lo
no hospital, ainda dirigia seu jipe como se estivesse em combate, com o
para-brisas abaixado, houvesse ou não armistício. Havia milhares de soldados
recém chegados na Alemanha. Dirigindo com o para-brisas arriado, Z queria mostrar
que não era um deles, que de jeito nenhum era um desses filhos da mãe
recém-chegados com as tropas especiais de ocupação.
Quando
largou a cabeça, X começou a olhar fixamente a superfície da escrivaninha, onde
se amontoavam pelo menos duas dúzias de cartas não abertas e pelo menos cinco
ou seis pacotes fechados, todos endereçados a ele. Esticou o braço por cima do
entulho e apanhou um livro que estava encostado à parede. Era um livro de
Goebbels, intitulado Die Zeit Ohne Beispiel. Pertencera a uma mulher de trinta
e oito anos, solteira, filha do casal que até algumas semanas antes vivera
naquela casa. Ela fora membro do Partido nazista e, embora sua patente fosse
baixa, era suficientemente alta para justificar, à luz dos regulamentos
militares, sua inclusão na categoria de prisão automática. O próprio X a
prendera. Agora, pela terceira vez desde que voltara do hospital naquele dia, X
abriu o livro da mulher e leu a curta inscrição que havia na sobrecapa.
Escritas a tinta, em alemão, numa caligrafia miúda e irremediavelmente sincera,
lá estavam as palavras: “Deus meu, a vida é um inferno”. Nada as precedia ou a
elas se seguia. Solitárias na página – e dentro do silencio doentio do quarto –
as palavras pareciam adquirir a estatura de uma acusação incontestável, até
mesmo clássica. X encarou fixamente a página durante vários minutos, tentando,
contra todas as probabilidades, não se deixar absorver por ela. Então, com
muito mais zelo do que empregara durante semanas em qualquer outra atividade,
apanhou um toco de lápis e escreveu sobre a inscrição, em inglês:
“Pais
e mestres, eu pergunto: o que é um inferno” Sustento que é a dor de não poder
amar”.
Começou
a escrever o nome de Dostoievski sob a citação, mas notou – com um temor que
lhe percorreu todo o corpo – que suas palavras eram quase inteiramente
ilegíveis. Fechou o livro.
Apanhou
rapidamente outra coisa de cima da mesa, uma carta de seu irmão mais velho, que
morava em Albany. A carta já estava sobre a mesa antes mesmo de sua ida para o
hospital. Abriu o envelope, vagamente disposto a ler tudo de uma só vez, mas
leu apenas a metade superior da primeira página. Parou depois das palavras:
“Agora que a droga de guerra acabou você provavelmente tem tempo de sobra por
aí, que tal mandar para os garotos uma baionetas ou umas suásticas...” Após
rasgar a carta, olhou os pedacinhos na cesta de papeis. Viu então que não tinha
reparado numa fotografia que viera junto com a carta. dava para distinguir os
pés de alguém sobre um gramado qualquer.
Pôs
os braços em cima da mesa e descansou a cabeça sobre eles. Sentia dores da
cabeça aos pés, todas as zonas de dor aparentemente interdependentes. Mais
parecia uma arvore de Natal, cujas luzinhas, ligadas por um único fio,
apagam-se todas se uma única lâmpada estiver defeituosa.
* * *
A
porta foi aberta violentamente, sem qualquer aviso prévio. X levantou a cabeça,
olhou para trás e viu o Cabo Z, de pê, na soleira da porta. O Cabo Z fora seu
companheiro constante desde o Dia D, ao longo de cinco campanhas da guerra.
Morava no primeiro andar e normalmente subia para ver X quando tinha alguns
boatos ou amolações para descarregar. Era um jovem corpulento e fotogênico, de
vinte e quatro anos. Durante a guerra, uma revista de circulação nacional o
fotografara na Floresta de Hürtgen; ele havia posado, com um pouco mais de
presteza do que o exigiria a mera boa-educação, segurando em cada mão um peru
do Dia de Ação de Graças.
–
Tá escrevendo alguma carta? – perguntou a X. – Pomba, isso aqui tá parecendo
até casa mal-assombrada – prosseguiu. Ele preferia sempre entrar num aposento
onde a lâmpada do teto estivesse acessa.
X
voltou-se na cadeira e convidou-o a entrar, desde que tomasse cuidado para não
pisar no cachorro.
–
Pisar em quê?
–
No Alvin. Ele está bem embaixo do teu pé, Clay. Que tal acender a porcaria da
luz?
Clay
descobriu o interruptor, acendeu a luz e aí atravessou o pequeno aposento, do
tamanho de um quarto de empregada; sentou na beirada da cama, encarando o
anfitrião. De seus cabelos cor-de-tijolo, recém-penteados, escorria boa parte
do volume de agua que ele julgava necessário para um penteado satisfatório. Um
pente, com prendedor igual ao da caneta, formava uma protuberância já familiar
no bolso direito de sua camisa verde-oliva. Em cima do bolso, do lado esquerdo,
estavam pregadas a Insígnia da Infantaria de Combate (que tecnicamente, ele não
estava autorizado a usar) a fita do teatro Europeu, com cinco estrelas de
batalha de bronze (em vez de uma única de prata, equivalente às cinco de
bronze) e a fita de serviço pré-Pearl Harbor. Suspirou profundamente e disse.
–
Deus meu.
Não
que isso significasse alguma coisa: era apenas parte da vida no exército. Tirou
um maço de cigarros do bolso da camisa, catou um, guardou o maço e abotoou
novamente o bolso. Enquanto fumava, percorreu o quarto com olhar vazio. Seus
olhos fixaram-se finalmente no rádio.
–
Ei – falou – vai ter um show infernal no radio daqui a pouquinho. Bob Hope,
todo mundo.
X
abrindo um novo maço de cigarros, disse que tinha acabado de desligar o rádio.
Inabalável,
Clay ficou observando X enquanto ele tentava acender o cigarro.
–
Poxa – comentou, com entusiasmo de bom espectador – você precisava ver a droga
das tuas mãos. Pomba você tá com a maior tremedeira, sabe disso?
X
conseguiu acender o cigarro e disse que Clay tinha um espirito de observação
muito apurado.
–
Fora de brincadeira. Quase desmaiei quando te vi no hospital. Você tava mais
parecendo uma droga dum cadáver. Quantos quilos você emagreceu? Hem?
–
Sei lá. Como é que andou tua correspondência enquanto eu estava fora? teve
alguma notícia da Loretta?
Loretta
era a namorada de Clay. Pensavam casar-se na primeira oportunidade favorável.
Ela lhe escrevia com regularidade, perdida num paraíso de pontos de exclamação
triplos e observações incorretas. Ao longo de toda a guerra, Clay havia lido
para X as cartas de Loretta, por mais íntimas que fossem – aliás quanto mais
íntimas, melhor. Já era um habito, depois de cada leitura, pedir a X que
planejasse ou retocasse a carta de resposta, ou ainda que inserisse algumas palavras
imponentes em francês ou alemão.
–
Tive, chegou uma carta dela ontem. Tá lá embaixo, no meu quarto, depois te
mostro – Clay respondeu, com indiferença. Empertigou-se na beirada da cama,
prendeu a respiração e soltou um longo e sonoro arroto. Parecendo apenas
parcialmente satisfeito com a façanha, voltou a descontrair-se.
–
A droga do irmão dela foi dispensado da Marinha por causa do quadril. O safado
tem aquele quadril estropiado.
Empertigou-se
novamente e tentou outro arroto, mas com resultados medíocres. Um leve traço de
atenção aflorou em seu rosto.
–
Ei, antes que eu esqueça: amanhã a gente tem que acordar as cinco da matina e
ir até Hamburgo ou coisa parecida. Apanhar umas túnicas, Eisenhower para o
destacamento todo.
X,
encarando-o com hostilidade, declarou que não queria nenhuma túnica Eisenhower.
Clay
pareceu surpreso, quase ofendido.
–
Poxa, elas são um bocado bacanas! Tem uma pinta infernal. Por quê que você não
quer?
–
Por nada. Pra quê que a gente tem de acordar às cinco? A guerra acabou, pomba.
–
Sei lá... A gente tem que estar de volta antes do almoço. Tem aí uns
formulários novos que a gente tem de preencher antes do almoço. Perguntei ao
Bulling por quê que a gente não podia preencher os troços hoje de noite. Ele tá
com a droga dos papeis na mesa dele. Não quer abrir os envelopes agora, o filho
da puta.
Os
dois ficaram calados por alguns instantes, odiando o Bulling.
Clay
repentinamente olhou para X com renovado interesse, mais agudo do que antes.
–
Ei! Você sabe que a porcaria da tua bochecha tá pulando pra burro?
X
disse que sabia muito bem e encobriu o tique com a mão.
Clay
encarou-o por um momento e enfim disse, com bastante entusiasmo, como se fosse
o portador de notícias excepcionalmente agradáveis:
–
Escrevi para Loretta dizendo que você teve um esgotamento nervoso.
–
É?
–
Foi. Ela tá um bocado interessada nesse tipo de troço. Vai se formar em
psicologia.
Clay
deitou-se sobre acama, incluindo os sapatos.
–
Sabe o que ela disse? Que ninguém tem um esgotamento nervoso só por causa da
guerra e tudo. Disse que você provavelmente já era meio desequilibrado a vida
toda.
X
cobriu os olhos com as mãos – a lâmpada sobre a cama parecia cegá-lo – e disse
que o discernimento da Loretta era sempre uma maravilha.
Clay
deu uma olhadela de relance.
–
Escuta seu sacana. Ela entende mil vezes mais de psicologia do que você.
–
Seria muito incomodo para você tirar estes pês fedorentos de cima da minha cama
– X perguntou.
Clay
deixou os pés onde estavam por alguns segundos, o tempo suficiente para
demonstrar que quem mandava nos pés dele era ele, e aí, num giro, sentou-se
novamente.
–
Tou mesmo descendo de qualquer maneira. Tem um rádio ligado no quarto do Walker
– falou, mas sem levantar da cama. – Ei, eu agorinha mesmo táva contando lá
embaixo, àquele sacana novo, o Bernstein. Lembra aquela vez que eu e você
estávamos em Valognes e fomos bombardeados umas duas horas, e aquele filho da
mãe daquele gato pulou no capô do jipe e eu dei um tiro nele, quando a gemente
estava deitado naquele buraco? Lembra?
–
Sei... Pomba, não começa com aquele negocio do gato outra vez Clay. Não quero
saber nada daquilo.
–
Não, o caso é que eu contei o troço pra Loretta. Ela e a turma toda de
psicologia discutiram o negocio. Na aula e tudo. Até a droga do professor.
–
Ótimo. Não me interessa saber, Clay.
–
Não, sabe por quê que eu dei um tiro nele? Sabe o quê que a Loretta disse? Que
eu estava temporariamente maluco. Fora de brincadeira. Por causa do bombardeio
e tudo.
X
passou os dedos uma vez pelos cabelos sujos e voltou a proteger os olhos da
luz.
–
Você não estava maluco coisa nenhuma. Estava apenas cumprindo o teu dever.
Considerando as circunstancias, você matou aquele gatinho da maneira mais
varonil possível.
Clay
olhou-o com jeito desconfiado.
–
Como é que é?
–
Aquele gato era um espião. Você tinha que dar um tiro nele. Era um anãozinho
alemão muito esperto, vestido com um capote de pele barata. Por isso, não tinha
nada de brutal, cruel ou sujo, ou até...
–
Merda! – disse Clay, os lábios apertados, formando uma linha – Será que você
não consegue nunca ser sincero?
X
de repente sentiu-se nauseado, girou na cadeira e agarrou a cesta de papeis –
bem na horinha. Quando voltou a endireitar-se e virou na direção de seu
visitante, encontrou-o de pé, sem jeito, a meio caminho entre a cama e a porta.
X começou a desculpar-se, mas mudou de ideia e estendeu o braço para apanhar um
cigarro.
–
Ei, vem lá pra baixo ouvir o Hope no radio – Clay disse, mantendo certa reserva,
embora procurasse ser simpático. – Vai te fazer bem. No duro.
–
Vai você, Clay... Vou ficar olhando minha coleção de selos.
–
É? Você tem uma coleção de selos? Não sabia que você...
–
Só tou brincando.
Clay
deu uns dois passos vagarosos em direção à porta.
–
Sou capaz de dar um pulo até Ekstadt mais tarde. Tem uma festa lá. Deve ir até
às duas, mais ou menos. Quer ir comigo?
–
Não, obrigado. Vou treinar uns passos de dança aqui mesmo no quarto.
–
Tá bom. Té manhã. Vê se te cuida agora tá? – disse ele, fechando a porta com
estrondo. A porta abriu-se novamente um segundo depois. – Ei, posso enfiar uma
carta para Loretta aqui por baixo da porta? Botei uns troços em alemão. Quer
conferir para mim?
–
Está bem. Agora me deixa em paz, pomba.
–
Tá legal. Sabe o quê que minha mãe escreveu numa carta? Disse que gostou muito
que eu e você ficamos juntos a guerra toda. No mesmo jipe e tudo. Disse que
minhas cartas ficaram muito mais inteligentes depois que eu comecei a andar
contigo.
X
Levantou os olhos para ele e disse, com grande esforço:
–
Obrigado. Agradece a ela por mim.
–
Agradeço sim. Té manhã!
A
porta foi novamente fechada com violência, dessa vez em definitivo.
* * *
X
ficou sentado um tempão olhando para a porta; aí girou a cadeira, pondo-se de
frente para a escrivaninha, e apanhou do chão sua máquina de escrever portátil.
Abriu espaço para ela em meio ao entulho que cobria a mesa, empurrando para o
lado a pilha desmoronada de cartas e pacotes. Imaginou que, se escrevesse uma
carta para um velho amigo de Nova York, encontraria nisso uma terapia rápida,
ainda que superficial. Mas não conseguiu enfiar direito o papel na máquina, de
tanto que seus dedos tremiam. Baixou os braços por um instante e então tentou
novamente, mas afinal amassou o papel.
Sabia
que devia tirar a cesta de papeis do quarto, mas, em vez de tomar alguma
providência, pôs os braços em cima da máquina e descansou a cabeça sobre eles,
fechando os olhos.
Depois
de alguns minutos latejantes, entreabriu os olhos e encontrou-se fitando um
pequeno pacote, embrulhado em papel verde. Provavelmente tinha-se destacado da
pilha na hora em que abrira espaço para a maquina de escrever. Notou que o
pacote fora reenderaçado várias vezes, reconhecendo, só de um lado do pacote,
pelo menos três de seus antigos números postais.
Abriu
o pacote sem nenhum interesse, sem mesmo olhar o endereço do remetente. Queimou
o barbante com a chama de um fósforo. Estava mais interessado em ver o barbante
queimar até o fim do que em abrir o pacote, mas afinal o fez.
Dentro
de uma caixa havia uma cartinha, escrita a tinta, cobrindo um pequeno objeto
embrulhado em papel fino. Apanhou a carta e leu.
Rua.........................,
17
...........................Devon
7
de Junho de 1944
Caro
Sargento X
Espero
que você me desculpe por se terem passado 38 dias antes que eu iniciasse nossa
correspondência, mas tenho andado extremamente ocupada porque minha tia
contraiu uma inflamação na garganta e quase faleceu; compreensivelmente, sobre
meus ombros recaiu uma responsabilidade atrás da outra. Todavia, tenho pensado
frequentemente em você e na tarde agradabilíssima que passamos juntos no dia 30
de abril de 1944, entre 3:45 e 4:25, caso você tenha esquecido.
Estamos
todos tremendamente emocionados e exultantes com o Dia D e esperamos somente que
ele apresse o término da guerra e de uma maneira de viver que é ridícula, para
não dizer coisa pior. Charles e eu estamos ambos muito preocupados com você;
esperamos que você não tenha participado do primeiro assalto à Península de
Cotentin. Você participou do ataque? responda por favor, o mais depressa
possível. Sinceras lembranças a sua esposa.
Um
abraço de
ESMÉ
Ps.
Estou tomando a liberdade de enviar-lhe meu relógio de pulso, que pode ficar
com você enquanto durar o conflito. Não reparei se você estava usando relógio
durante nosso breve encontro, mas este é extremamente resistente, à prova de
água e à prova de choque, além de ter muitas outras qualidades, dentre as quais
a de permitir que a pessoa saiba a que velocidade está andando, se assim o
desejar. Tenho a certeza de que, nesses dias difíceis, você poderá usa-lo com
mais proveito do que eu jamais poderia, e que você o aceitará como um talismã
de boa sorte.
Charles,
a quem estou ensinando a ler e escrever e que se tem revelado um principiante
muitíssimo inteligente, deseja acrescentar algumas palavras. Por favor, escreva
tão logo encontre tempo e disposição.
COMO
VAI COMO VAI COMO VAI COMO VAI
COMO
VAI COMO VAI COMO VAI COMO VAI
BEIJOS
E ABRAÇOS
CHARLES
Muito
tempo passou antes que X pudesse por de lado o papel, e muito menos apanhar de
dentro da caixa o relógio de pulso do pai de Esmé. Quando afinal o fez, viu que
o vidro do mostrador se quebrara no trajeto. Teve vontade de saber se aquele
fora o único estrago, mas não achou coragem para dar corda no relógio e
certificar-se definitivamente. Ficou só sentado com o relógio na mão, por outro
longo período de tempo. Então, repentinamente, quase em êxtase, sentiu-se
sonolento.
Imagine
um homem realmente sonolento, Esmé, e você verá que ele tem sempre alguma
chance de se tornar outra vez um homem com todas as fac... com todas as
f-a-c-u-l-d-a-d-e-s intactas.
No comments:
Post a Comment