Repescando
o título que Walt Disney atribuiu ao projecto de construção do Walt Disney
World, em Orlando (Florida), “Projeto Flórida” olha para a comunidade que, sem
residência fixa, vive nos hotéis baratos dos arredores do famoso parque de
diversões, colocando-a em contraste com a promessa de ilusão de modernidade
proporcionada pela experiência industrializada.
Sean
Baker tem recorrido a diferentes suportes e técnicas, adequando-os ao tipo de
projecto, desde câmaras de vídeo baratas e sofisticadas nos primeiros filmes,
ao iPhone em “Tangerine” (2015) ou à película de 35mm em “Projeto Flórida”. Por
outro lado, o seu universo de personagens é frequentemente colocado na margem
do corpo social: o emigrante ilegal chinês em luta contra a Máfia local em “Take
Out” (2004), o negro nova-iorquino que negoceia material de contrafacção de
marcas de luxo em “Prince of Broadway” (2008), a improvável relação entre uma
jovem actriz de cinema pornográfico e uma idosa em “Starlet” (2012), ou a vida
das prostitutas transsexuais nas ruas de Hollywood em “Tangerine”. “Projeto
Flórida” aponta para o fenómeno que os anglo-saxónicos apelidam de “hidden
homelessness”, que equivale a um conjunto de pessoas que oficialmente se
encontram numa situação de “acomodação provisória”. Em termos concretos
significa que vivem “temporariamente com outros, mas sem garantia de residência
contínua ou perspectivas imediatas de acesso a habitação permanente”, algo que
acontece com maior incidência nas populações mais pobres, mas que é
crescentemente transversal a classes e profissões, potenciado pela subida das
rendas para níveis incomportáveis.
Se
tomarmos em conta a reconfiguração dos fluxos migratórios e dos sistemas de
legitimação de grupos e de práticas sociais tradicionalmente esquecidas,
condenadas ou mesmo escondidas, também se compreende a necessidade de uma maior
fluidez na análise da dialéctica entre centro e margem. A fragmentação de
categorias e a mutabilidade da fronteira entre centro e margem geram
hibridização e indefinição, o encontro com novas problemáticas e perspectivas,
bem como a definição de outros territórios e protagonistas. Em “Starlet”, a
jovem Dree Hemingway (filha de Mariel Hemingway) revela o seu quotidiano,
perfeitamente banal quando comparado com o de alguém da sua idade. O facto de,
esporadicamente, trabalhar como actriz pornográfica, ponto que serviria de
combustão na sua relação com o mundo, apenas influencia positivamente a rotina
diária, nomeadamente dando-lhe mais tempo para se dedicar à sua inusitada nova
amiga, a solitária Besedka Johnson (falecida pouco tempo depois da produção do
filme com oitenta e sete anos). Também as transexuais de “Tangerine”,
contornando o cerco da inevitável estereotipia e estigmatização, antes se movem
segundo sentimentos comuns como a amizade e o amor. Ou seja, no trabalho de
Baker existe uma vontade de aproximação e de dignificação das personagens,
independentemente do grupo a que pertencem e das praticas sociais a que se
entregam. Como o realizador explica numa entrevista à revista Cinema Scope:
“Quero que a comunidade e as pessoas em que nos focamos, apreciem o que fazemos
e que sejam apropriadamente representadas”.
Ao
traçar o percurso das personagens, Sean Baker privilegia uma abordagem de ordem
documental, embora não negue o seu claro fundamento ficcional. Em “Projeto
Flórida”, a câmara é colocada ao nível das crianças e é através do seu olhar
que conhecemos a rotina dos que se viram remetidos para aquele espaço,
delimitado pelos complexos hoteleiros Magic Castle e Futureland e pelo Walt
Disney World. O próprio filme se poderia também posicionar num triângulo de
referências: o universo de Walt Disney, a série de curtas metragens de comédia “The
Little Rascals” (1922–1944) criada pelo produtor Hal Roach, e “Little Fugitive”
(1953) de Morris Engel e Ruth Orkin. Por razões óbvias, a figura de Walt Disney
é o enorme elefante no meio da sala, desde logo porque, embora desenhasse o
Disney World como complemento da Disneyland (Califórnia), pretendia sublinhar
uma nova visão do parque de diversões, com a inclusão do “Experimental
Prototype Community of Tomorrow” (EPCOT), projecto-teste não concluído de uma
comunidade planificada com vista à criação de uma cidade futurista, onde
certamente não caberiam Magic Castle e Futureland. Por outro lado, para além do
psicadelismo na saturação da cor e no marcante violeta de Futureland, as
perigosas brincadeiras infantis invocam o seu universo complexo – igualmente,
casa do cinema e dos parques de diversão -, não apenas a vertente conservadora
da vida pessoal e da produção de entretenimento, mas também o modo como em
meados do século XX contribuiu para a educação da geração que modelaria a
contracultura das décadas de 1960 e 1970.
Posteriormente
conhecida como “The Little Rascals”, a série de pequenos filmes Our Gang
(1922–1944), retrata o quotidiano de um conjunto de crianças e a sua interacção
com o mundo adulto, entre brincadeiras nas ruas, pátios e espaços desocupados.
As duas décadas de produção atravessaram o cinema mudo e o sonoro, passaram por
diferentes distribuidoras, da American Pathé para a Metro-Goldwyn-Mayer, e
encontraram novos públicos com a passagem para a televisão, através do
reagrupamento das anteriores curtas-metragens, limpando algum conteúdo
problemático de carácter racial. Corre o mito de que Mickey Rooney e Shirley
Temple passaram pelas audições, não sendo aceites, mas quatro dezenas de
belíssimos pequenos actores e o impagável “Pete, the Dog With the Ring Around
His Eye” povoaram o imaginário americano e influenciaram muita produção
cinematográfica durante longas décadas. Também “Projeto Flórida” recorre a um
conjunto de actores amadores, sublinhando a espontaneidade e a naturalidade da
representação e associando a condição infantil a um impressivo conjunto de
recursos criativos, numa constante reinvenção do espaço e do tempo,
proporcionada por umas infindáveis férias de Verão. A Willem Dafoe, o gerente
do hotel, espécie de apaga-fogos de vertente humanista, estabelecendo a ordem e
mediando conflitos, cabe largar o estatuto de estrela e apagar-se no anonimato
do resto do elenco.
Little
Fugitive começa onde The Florida Project termina, com a imersão no parque de
diversões, no primeiro com Joey (Rich Andrusco) devido a um sentimento de culpa
gerado por uma brincadeira enganadora, no segundo com Moonee (Brooklynn
Prince), de mão dada com a amiga Jancey (Valeria Cotto), para escapar à equipa
de assistentes sociais encarregada do processo de adopção. Criada por dois
fotógrafos, que assinam o seu primeiro projecto de imagens em movimento, Little
Fugitive é uma obra fundamental para compreender os desenvolvimentos importantes
no cinema das décadas seguintes, particularmente na Nouvelle Vague, no Cinéma
vérité ou no New American Cinema. Como Luís Mendonça defende na publicação
Fotografia e Cinema Moderno: Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra, “na transição
da fotografia para o cinema, um grupo de nova-iorquinos [Morris Engel e Ruth
Orkin, para além de Helen Levitt, James Agee, Lionel Rogosin, Weegee e Rudy
Burckhardt] operou uma revolução silenciosa no coração da linguagem do cinema”,
invocando a vocação realista do cinema, sugerida por autores como André Bazin e
Siegfried Kracauer. A intersecção entre The Florida Project e Little Fugitive
acontece antes de se materializar o drama, com Sean Baker a abandonar a câmara
de 35mm, entre Magic Castle e Futureland, e a acompanhar as amigas através de
um banal iPhone 6, até as perdermos no alienante espaço povoado do parque de
diversões, repetindo, seis décadas depois, o gesto de Morris Engel e Ruth Orkin
seguindo Joey com a sua adaptada câmara móvel.
PROJETO FLÓRIDA
(The Florida Project, 111 minutos)
Roteiro e Direção
Sam Baker
Elenco
Brooklynn Prince
Christopher Rivera
Valeria Cotto
Aiden Malik
Bria Vinaite
Willem Dafoe
Cotação
Em cartaz no Roxy Iporanga 4 e no Cinespaço Miramar Shopping
Christopher Rivera
Valeria Cotto
Aiden Malik
Bria Vinaite
Willem Dafoe
Cotação
Em cartaz no Roxy Iporanga 4 e no Cinespaço Miramar Shopping
No comments:
Post a Comment