Wednesday, March 7, 2018

VLADIR LEMOS, UM POETA ATLÂNTICO (por Flávio Viegas Amoreira)



Impossível ser regional sendo santista. Há uma cumplicidade universal com tudo que venha bater nesses costados: Santos vai além da cidade, é um olhar amplo para o mundo a partir de sua costa mítica, suas reentrâncias ao continente, seu porto disposto a todos antros do planeta. Por aqui Américo Vespúcio que daria nome ao continente, Hans Staden que inauguraria nossa crônica e primeira literatura,  os versos de Anchieta e mais além uma plêiade de escritores  de relevo brasileiro. Alguns nomes de ruas no Rio e São Paulo que ninguém mais revela origem: Xavier da Silveira por exemplo, imenso poeta! Morrido jovenzinho foi dos primeiros bardos anti-escravagistas e oradores libertários. Ainda no século XIX  um autor que se tornaria também santense escreva o primeiro best-seller nos idos de 1890 : "A Carne", obra proibida pela Igreja e censurada pela época , que seria livro de cabeceira dos adolescentes  até para "ilustrar" o vício solitário na iniciação ao sexo. Julio Ribeiro descreve aí além das definições de orgasmo feminino, um capítulo inteiro sobre a geografia e alma desse micro-civilização santista.


Que mistério literário guarda Santos afinal? Vicente de Carvalho e Martins Fontes, poetas internacionais lidos por Fernando Pessoa, Paulo Gonçalves e Ribeiro Couto quase esquecidos até a santista por adoção Patrícia Galvão e o jabaquarense por tesão Plínio Marcos, maior dramaturgo brasileiro ao lado do não menos futebolístico Nelson Rodrigues! Que águas do Itororó e do José Menino embalam tantos talentos a germinar da sua seiva criativa? Não bastassem os daqui, Neruda cantou Santos duas vezes em antológicos versos falando da estiva, do cheiro de café e da maestria de Pelé! Jorge Luis Borges dedicou seu mais importante conto, o "Aleph", a  mitológica ilha em forma de cabelo de cavalo que guardava o segredo trazido pelo cônsul britânico Richard Burton, legendário tradutor do Kama Sutra e das Mil e Uma Noites para o inglês, que viveu cinco anos entre o Valongo e a Várzea do Carmo. O segredo da origem de todos enigmas e senha de todos os mistérios estaria contido num manuscrito nesse mesma Vila de Santos que ainda não era Belmiro. Para Santos o primeiro poema brasileiro da maior poeta norte-americana Elizabeth Bishop, por Santos passaram e sobre a terra e sua gente escreveram Lorca, Saint-Exúpery, Camus e, claro, nossos Mário de Andrade e Manuel Bandeira.


Santos tantos! Mas agora preciso dar por encerrada minha exegese histórica porque soa infinda... Toma-me o ímpeto rastrear os novos autores que são desdobramento desse milagre artístico imorredouro:  os poetas surgidos depois de Roldão Mendes Rosa e Narciso de Andrade, esses mestres que ficaram mais restritos a nosso território por timidez ou falta dum olhar mais apurado da crítica nacional.  Jovens nascidos feito eu em meados dos anos 60 e começo dos anos 70, numa cidade então sufocada como nenhuma pela ditadura, mas com essa boa condenação de aberta aos ventos de toda parte onde bafeje literatura. Por aí surgiram para a escrita ainda inéditos o prosador Torero, os poetas Marcelo Ariel e André Argolo, e para cá vieram outros de tão grande talento como Ademir Demarchi. Todos nós "personas literárias" que labutamos em áreas próximas do mesmo ofício : jornalismo, redação profissional, publicidade. E vou acumulando percepção fascinada para outros que poderiam passar desapercebidos por serem mais reconhecidos por outras facetas.


É o caso do poeta por essência Vladir Lemos tão jornalista, repórter, apresentador muito querido das torcidas todas, mas para mim gongórico que sou além de tudo isso visceralmente poeta! Não sou dado ao futebol, mas admiro seus meandros líricos e mesmo semiológicos. Pasolini, Lins do Rego, o próprio Nelson Rodrigues eram aficcionados. Camus foi goleiro...mas tudo isso é da conta de outro conterrâneo da outra banda da ilha o calunga Wisnick elucubrar. O apelo e função desse ensaio é uma mirada necessária na poética do Vladir telúrico, de delicado simbolismo na elaboração e "umidade" imagética em suas estrofes. Ecos de Drummond com certeza muito lido em seu tônus discursivo, reflexivo e muito do coloquialismo de Bandeira. Alguns poemas quase micro-contos ou crônicas versificadas e jogos de contraposições típicas dos oximoros de Pessoa. Atavismo oceânico? A temática marítima é reafirmação desse martelado "sentimento atlântico do mundo" que tanto caracteriza  poetas das duas margens desse Tejo infindável. Teço essas depois de reler "Os dias em mim", lançado pela Dobra literatura em 2015, reunião eloquente que revelam já a pena segura: poesia exige maturidade. Painel do poeta atemporal: espelha trajetória de experimentos, esboços, versos já densamente alinhavados e veredas dos poemas porvir.  Não sei se Vladir tenciona a prosa, a tessitura do conto, notável é que  o poeta já está consolidado pela voz peculiar e personalidade delimitada.

CORPUS IN PROCESS

O rio não se importa com o sol
na soleira da porta
Frutos se escondem nas folhas
perto do chão
A lontra, o peixe, a jaguatirica
os morangos silvestres
perdidos no orvalho da manhã
o vôo dos pássaros
me atam ao canavial, outro rio
Quando o sol já partiu
frutos ainda entre samambaias

SÍTIO

Contenção circular, aliteração intrínseca, um processo quase mântrico que perpassa toda produção se encadeando onda, vaga, pendular poética.

Escrevo versos
com tinta vermelha
da cor da carne da tua boca
que excita
e incita
Não cabe no verso




Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).

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