Thursday, September 28, 2017

COISAS DO BRASIL: CABRAL E SUAS MULHERES (por Álvaro Carvalho Jr.)

pinturas: DiCavalcanti


Susana Neves Cabral, funcionária da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e ex-esposa do ex-poderoso Sérgio Cabral, entrou com um pedido junto à Assembléia reivindicando um penduricalho econômico aprovado pelos nobres senhores-deputados-estaduais-cariocas conhecido por “Bolsa Reforço Escolar”. Isso significa que um dos três filhos que Susana teve com o ex-governador atualmente encarcerado, receberá a mísera quantia de R$1.136,50 mensalmente para pagamento da escola. Considerando-se, claro, que o rebento ainda não atingiu os 24 anos. Os outros dois, infelizmente, já perderam o prazo de validade.

A desfaçatez desse povo não tem limites. Com as contas arrebentadas e com milhares de funcionários -professores incluídos- sem receber um tostão, o governador do Rio, Pezão (esse é outro...), vive de chapéu nas mãos em Brasília para tentar arrumar algum. Claro, Susana vai afirmar de pés juntos que tem todo o Direito de receber o tal penduricalho, pois está na Lei. E ela está certa. Mas, existem momentos em que o Direito vem ferir diretamente a Ética, coisa que, para esse pessoal irresponsavel e sem a menor noção cívica, pouco importa.

Para início de conversa, a simples existência do penduricalho já mostra o nível de desleixo dos deputados da Alerje. Mostra, inclusive, que os digníssimos deputados não passam de um bando de bananas ao criar e aprovar uma maluquice dessas, claramente para amaciar seus funcionários. Dinheiro público é sagrado e precisa ser tratado com respeito infinito, coisa que neste país de políticos insanos é uma raridade. No período trágico de Sergio Cabral, os desmandos com dinheiro público chegaram a uma situação insuportável, preço que a população está pagando e pagará por muito tempo ainda.

O interessante é que, até agora, nenhum vereador, secretário municipal, prefeito, deputado estadual, secretário estadual, o governador e membros da Justiça reclamaram de atraso nos pagamentos dos salários. Ou o parcelamento. Claro, isso é para o funcionalismo, a polícia, professores. A raia miúda, enfim. Aos amigos do Rei e daqueles que mamam na mesma teta, tudo é possível. Esse mundo sujo e anti-ético, apesar de legal, espalha-se por todo País, atingindo seu ponto mais alto em Brasília, onde a viúva dá de mamar a 513 insaciáveis deputados e 81 senadores, sem levar em conta seus áulicos funcionários da Câmara e do Senado. Imaginem!, 81 senadores, 3 por Estado, um absurdo de assustar até o Quentin Tarantino. Ou o Stephen King.

Transformaram a vida política num enorme bordel, num vale tudo assustador que não nos mostra um pequeno sinal derradeiro. Vivemos tempos loucos, estranhos, dignos de um conto de Edgar Allan Poe. Tão tresloucado e insano que a segunda esposa de Sergio Cabral, a inacreditável e cara de pau Adriana Anselmo, atualmente cumprindo prisão domiciliar numa bela cobertura elegante na elegante Zona Sul do Rio de Janeiro, recebe seus drinques em casa do requintado restaurante Antiquário, um dos mais caros e sofisticados do país. Afinal, a pobre moça precisa cuidar dos filhos e, em consequência da prisão, não pode sair de casa. Oremos...


Não sei se Pelé quis realmente homenagear Cristiano Ronaldo ou se pretendia manter-se na mídia, mas a verdade é que ele enviou um twiter ao jogador português pelos 77 gols feitos pela Seleção Portuguesa. Não deixa de ser um feito de respeito. Cristiano chega, assim, ao mesmo nível de Pelé na Seleção Brasileira. Mas, aos que gostam de números, Pelé pode ter sido irônico: para atingir os 77 gols, Cristiano vestiu a camisa da seleção 144 jogos em tempos que existem bem mais campeonatos envolvendo seleções do que antigamente. Pelé precisou de 92 jogos. Então ficamos assim: Cristiano manteve uma média de 0,54 gols por jogo. Pelé atingiu impressionantes 0,84. Quase chega a 1 gol por partida. Não é mole não...

Álvaro Carvalho Jr. é jornalista aposentado
e trabalhou para vários jornais e revistas
ao longo de 40 anos de carreira.
Colabora com LEVA UM CASAQUINHO
quando quer e quando sente vontade,
pois, como dissemos acima,
Álvaro Carvalho Jr. é jornalista aposentado.

EDUARDO CAVALCANTI SAÚDA OS 70 ANOS DE STEPHEN KING EM PRÓXIMA PARADA



Eduardo Rubi Cavalcanti
é jornalista desde a década de 80.
Trabalhou em A TRIBUNA de Santos
e em várias outras publicações. 
É Mestre em Comunicação Social
pela Universidade Metodista de São Paulo
e leciona Jornalismo na Unisantos,
onde cursou sua graduação.
Publica domingo sim, domingo não,
em A TRIBUNA de Santos,
a página PRÓXIMA PARADA,
que reproduzimos aqui.

O JALECO E O HAMBURGER (uma crônica de Marcus Vinícius Batista)

ilustração: Osvaldo DaCosta 


Ariovaldo vestia todos os equipamentos de segurança para um trabalho de poucos riscos. Usava capacete branco, comum na construção civil, calça camuflada modelo militar, botas sete léguas, camisa escura e jaleco, além de luvas de borracha. Em silêncio, ele estava sozinho no combate. O exército de um homem só.

Embora veja como coletiva sua responsabilidade profissional, Ari prefere agir por si mesmo. Ele não consegue lutar em grupos. Prefere fazer o serviço isolado. Assim, o controla. Garante a eficiência, sem palpites de subordinados ou chefes! Não se importa com os comentários; afinal, comunica-se discretamente e transpira vergonha. Conversa? Apenas o necessário, pois o trabalho é infinitamente mais importante do que jogar palavras com qualquer um. Pode ser alguém que passa apressado. Pode ser alguém que trabalha por ali e o vê duas, três vezes por semana.

Depois de alguns segundos de reflexão, Ari se abaixou e recolheu um punhado de folhas. As luvas de borracha servem para isso: protegê-lo da água suja que se move lentamente na sarjeta. Abraçou, então, três caixas de papelão, que serviram para embalar cosméticos na farmácia em frente. Andou mais cinco metros e recolheu quatro caixotes de madeiras, daqueles que saíram do Ceagesp e encontraram destino final (até a chegada de Ari) no ponto de venda, um supermercado de bairro.

Aquele sujeito, de 30 anos, não é parte do mapa. Muda o relevo das imediações da Igreja da Pompéia, bairro nobre de Santos, mas não recebe o crédito. Para ele, crédito existe para quem tem os documentos do governo. Nem se parece com dinheiro. O trabalho dele é exatamente transformar em dinheiro mercadorias com ciclo encerrado na economia cotidiana, miúda até.

O jaleco atrai os olhares, mas afasta as aproximações curiosas. Preto, traz em verde fosforescente: agente ambiental. Esta é a missão que Ari impôs a si próprio. O dinheiro é conseqüência; o que o mantém animado é a mudança de cenário, a limpeza de um pedaço da praça, onde trabalhou por horas em mais um sábado de chuva.

Todo o material recolhido vai parar em uma carroça amarela, daquelas padronizadas e vistas – a desigualdade invisível – na rotina urbana. A carroça, organizada em compartimentos, é a casa e local de trabalho do agente ambiental. Ali, estão alimentos estocados, roupas de dormir, utensílios domésticos e os materiais que serão revendidos.

A chuva era contingência. Ari não diminuía o ritmo. O capacete, além da segurança, servia como improvisado guarda-chuva. Quando achou que o expediente terminara, com a carroça ajeitada, Ari esbarrou em um copo plástico à beira da calçada. E mais: outro copo boiava na água negra da sarjeta.

Ele balançou a cabeça negativamente e reclamou de que aquela tarefa parecia sem final. Foi à carroça, apanhou uma vassoura piaçava e varreu a água para o bueiro. Os copos foram parar na cestinha de lixo amarrada ao poste. Como alguém a três metros da cesta jogava dois copos no chão?

Ari não percebeu que era observado. Veio conversar com a objetividade dos diálogos de todo dia. E bombardeou com perguntas diretas:

- Eu peguei uma caixa de hambúrguer no lixo do supermercado. Venceu ontem. O que você acha? Tem problema?

Não tive tempo de responder. Ele se encarregou de completar o que poderia ser uma conversa:

- Olha, eu acho que não. Um dia só. Tenho a frigideira e o óleo. Você pode me ajudar a comprar o pão?

Com o dinheiro na mão, agradeceu e, quando ensaiava ir embora, notou que a praça precisava ser limpa novamente. O soldado verde não tinha munição para mudar a rotina da rua Euclides da Cunha. A produção de lixo era maior do que seu limite físico ou sua preocupação coletiva. Ao olhar para ele, fechado numa consciência ambiental particular, preferi não perguntar o porquê da vestimenta. Ele poderia se ofender diante de tamanha incompreensão.


(publicado originalmente em 31 de Outubro de 2008)

Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.

CAFÉ & BOM DIA #76 (por Carlos Eduardo Brizolinha)


Essa de carimbar como credenciado por ter sido traduzido em 70 ou sei lá quantos países não significa qualidade. Poderia citar uma centena de exemplos, mas não vou perder tempo. Li alguns autores de ficção e confesso que apreciei poucos dos que surgiram, nem um novo Asimov, Clark, Verne. Não me apraz essa de monstros disformes, alienígenas, predadores do espaço e por ai vai. Ficção que me dá prazer tem que ter vértice de serem possíveis acontecer. Minha companheira é fã incondicional e lá vou eu me sentido chapado de ácido lisérgico, não aguento mais super-hérois, a contrapartida é tê-la ao lado assistindo filmes tal como "Amour" do Haneke, Nebraska que para ela é de uma monotonia tal que dá vontade de tomar cicuta. Nunca li nada de Margaret Atwood e me interessei face a insistência dela para que assistisse o seriado "The Handmaid’s Tale" que de certa forma avança como se fosse um filme dos que gosto e ela não. Baseado no "Conto da Aia" nos faz atravessar dentro de uma teocracia onde a peste ou sei lá o quê, não é explícito, torna infértil boa parte da população e a personagem Offrey face infertilidade mundial resultou no recrutamento das poucas mulheres fecundas remanescentes em Gileade, chamadas de "servas". Fui conferir a qualidade da literatura de Atwood e é realmente digna de ser levada a sério, principalmente pelo adorável livro de contos "Dicas da Imensidão"


UMA ESTAÇÃO EM ADEN é o que leio num dos meus arquivos. Phillipe Sollers revisa o livro de Jean Jacques Lefréve "Arthur Rimbaud" portentoso livro de 1 240 páginas. Outro livro que mapeia os passos de Rimbaud é "Rimbaud à Adem" de Hughes Berrou e Pierre Leroy, neste podemos apreciar as fotos de 1880. Não há uma única árvore, nem mesmo ressecada, grama, sequer uma gota de água doce. Aden é uma cratera de vulcão extinto cujo o fundo é recoberto de areia do mar. Não vê nem se toca absolutamente nada além de lava e areia. Nesse buraco assamos como estivéssemos num forno. Nesse ambiente Rimbaud não expressa nenhum romantismo, tensão, somente carrega objetivos financeiros, austeros e precisos. Enfastiado, não lê jornais, romances. Se esmera em ficar fluente em Árabe para vencer na sua atividade. Não fala da sua vida passada e, se alguém perguntar sobre criação poética, diz ter sido um período de embriaguez, absurdo, ridículo, repulsivo. Está distante da escola poética decadente. Onde vai o poema " Voyelles " ? Seu plano é ganhar dinheiro, voltar um dia, muito embora estar habituado a vida errante e aos climas quentes. Tudo menos literatura. Olho a fotografia de Rimbaud com cinco personagens coloniais e ele destoa zombando das animações culturais. Na foto exibem armas como se estivessem de volta de uma caçada. Vejo Rimbaud pousar sua mão no cano de seu fuzil. É Rimbaud numa região onde se massacram, pilham, mas é tratado com consideração devido aos seus procedimentos humano. O tempo vai levando para o passado "Une Saison en Enfer" Os poetas não matam, não massacram, não saqueiam. Os poetas são gentis, mas não tem peso. "Alfre Bardey que foi seu patrão nos oferece uma observação. "Sua caridade, discreta e ampla, foi provavelmente uma das muito poucas coisas que fez sem zombaria e sem aversão"


É encantadora a sensação quando encontramos num texto ideias tão renovadoras, revolucionárias, cuja a arma seja sensibilidade da alma. T S Eliot abriu uma estrada majestosa na literatura com dois livros. O primeiro "Prelúdios" e o segundo "A Canção de Amor de J Alfred Prufrock", ambas de 1917. Eliot buscou o doutorado em filosofia, mas foi a poesia que o convocou, nunca terminou seu curso. O destino se mostrou sábio pois seu legado deixa para a literatura um dos personagens arrebatadores. Na poesia, A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock). O poema que foi descrito como um “drama de angústia literária” é um monólogo de um homem urbano frustrado nos seus desejos. Atravessamos a rua com um pateta redimido de sua boçalidade, faz jus a ironia na obra que é o arranque para sua expressiva vocação. Cinco anos depois veio "A Terra Desolada" com suas vozes articulando gemidos fantasmagóricos rogando renascimento. Revolucionário! Revolucionário com Joyce, Proust, Woodsworth. O pessimismo da obra de Eliot é um pessimismo que não passa, é o que sentimos agora. Eliot propõe um exercício intelectual que resulta numa estética nostálgica inovando na forma, suas associações, reciclagens, ainda que baseando se em "A Lenda do Rei Pescador" para "Terra Desolada" ou em outras que também são recicladas, é o caso de "Assassínio na Catedral". afinal (...) Poetas imaturos imitam, poetas maduros roubam.


Há dois mil e quinhentos anos, no dealbar do pensamento filosófico ocidental, Sócrates tinha reputação de ser o homem mais sábio da Grécia. Um dia, Gláucon, um jovem ateniense abastado, desafiou-o a responder a uma questão sobre como havemos de viver. O desafio constitui um elemento-chave na República de Platão, uma das obras estruturantes da história da filosofia ocidental. É também uma formulação clássica de uma escolha última. Segundo Platão, Gláucon começa por contar uma vez mais a história de um pastor que servia o soberano de Lídia. Um dia, estava o pastor com o seu rebanho quando se abateu uma tempestade sobre o local onde se encontrava e se abriu um abismo no solo. Ele desceu pelo abismo e, uma vez lá no fundo, encontrou um anel de ouro, que colocou no dedo. Alguns dias depois, sentado com outros pastores, calhou começar a brincar com o anel e, para seu espanto, descobriu que, quando girava o anel de determinada forma, tornava-se invisível aos olhos dos seus companheiros. Uma vez feita esta descoberta, arranjou maneira de ser um dos mensageiros enviados pelos pastores ao rei, para dar conta do estado dos rebanhos. Chegado ao palácio, usou o anel para seduzir a rainha, conspirou contra o rei, matou-o e, assim, obteve a coroa. Gláucon considera que esta história encerra uma visão comum sobre a ética e a natureza humana. A implicação da história é que qualquer pessoa que possuísse tal anel faria tábua rasa de todos os padrões éticos. De seguida, Gláucon desafia Sócrates a provar que esta opinião comum da ética é errada. Prova-nos, diz ele, que uma pessoa sensata que descobrisse o anel continuaria, ao contrário do pastor, a fazer o que era certo. Segundo Platão, Sócrates convenceu Gláucon e os outros atenienses presentes de que, seja qual for o lucro que a injustiça pareça proporcionar, só aqueles que agem de forma correta são realmente felizes. Que outra resposta poderíamos dar a Gláucon? Uma “resposta” que não é resposta alguma consiste em ignorar o desafio. Há muitas pessoas que o fazem. Vivem e morrem irrefletidamente, sem alguma vez se terem perguntado quais os seus objetivos e por que fazem o que fazem.


Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou se a tornar se negro a partir de dentro. Um nó preto a partir atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que obrigado a interromper o quadro onde estava o peixe vermelho e o vermelho do peixe. Não sabia que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos fatos e punham-se por esta ordem; vermelho pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor. Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe efetuando um numero de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como da imaginação. Era a lei da metamorfose. Essa metamorfose é mais rapidamente percebida por quem está olhando o aquário e o peixe tem nos olhos do pintor o espelho.


BOM DIA PARA TODOS E CAFÉ QUENTINHO.


Carlos Eduardo "Brizolinha" Motta
é poeta e proprietário
da banca de livros usados
mais charmosa da cidade de Santos,
situada à Rua Bahia sem número,
quase esquina com Avenida Mal. Deodoro,

bem ao lado do Empório Homeofórmula,
onde bebe diversas xícaras de café orgânico
ao longo de seu dia de trabalho.



CONFIRA A PROGRAMAÇÃO DESTE FIM DE SEMANA NA NONA TARRAFA LITERÁRIA




Wednesday, September 27, 2017

O FILME DA SEMANA É "LADY MACBETH", UMA OBRA EXUBERANTE DE WILLIAM OLDROYD


por Carlos Natálio (de Lisboa) para

 


Quando vamos aí a metade de Lady Macbeth (2016) há duas coisas que não podemos ignorar. A primeira é uma certeza, ela conta ao seu amante ao que vem, qual o seu programa: deixar ir-se na folia psicótica do amor até à(s) morte(s). A partir daí o realizador William Oldroyd encena toda essa tese de que há que remover os obstáculos todos, sem suspense, sem ironia trágica a não ser a solidão de que os terríveis vencedores padecem. Mas felizmente há também uma incerteza, e essa é a segunda coisa que não se pode ignorar. Para onde irá saltar ou pousar a seguir o gato de Lady Macbeth? Em toda a sua dimensão imperscrutável, esse gato ruivo, bastante magro, traços vincados e hirta cauda é, em toda a sua animalidade, a única personagem deste jogo, o único cujos insondáveis mistérios mantém a nossa atenção, nos mantém a suspensão própria do suspense.



Mas mais do que esta inversão recordo um plano em que o dito animal está pousado, salvo erro num sofá, e salta para cima, para o canto superior esquerdo do plano desaparecendo para off. Esse “salto de tigre”, com algo de George Méliès, mostra bem a outra coisa curiosa do filme (que, era suposto acreditarmos, emulava o universo de Alfred Hitchcock). Essa coisa é que, saltar para fora de campo, sair da geometria do enquadramento, da “jaula” cujas barras à esquerda, à direita, em cima e em baixo aprisionam as coisas na certeza da sua visibilidade, é traduzir cinematograficamente a angústia da condição feminina da mulher que havia de cumprir os seus deveres conjugais encerrada numa casa com o seu livro de orações, ou que mais tarde, deveria esperar o seu marido enquanto ele ia ali matar uns quantos vietnamitas. Assim, a grande história que deveria estar a ser contada em Lady Macbeth é a possibilidade de sair para o fora-de-campo, que neste caso, é o campo, o ar fresco dele.



Em alguns momentos, como naquele em que após a ausência do marido e do sogro, MacBeth é deixada só e recebe a visita de um vizinho da região, Oldroyd filma esse gesto: a mulher que sentada se levanta e a câmara não acompanha o movimento, fugindo/saindo ela súbita e bruscamente de campo, ficando cortada, apenas as linhas do torso, sem pescoço. Esse “suicídio” por decepamento voluntário da cabeça e da composição, que dura segundos é certo, acaba por nos mostrar uma rebeldia, uma aragem que tenta sair do “palco” daquela casa vitoriana, enorme e deserta, com suas portas que rangem e tacões que gemem no soalho (estes estarão longe de ser a única coisa que geme por ali), únicos elementos a excitar a solidão e o sono do senhora, da rainha que ali reina.



O problema de Lady Macbeth é que quando começa finalmente a ensaiar essa saída – da exposição inicial mas também da casa, do plano, do género em que é catalogado – acaba por decidir voltar a entrar – na casa, no plano e sobretudo numa tese da mulher enlouquecida que tudo e todos mata por amor. Essa tese devora tudo o resto e acaba por substituir hipóteses de personagem por peões nesse esquema de possibilidade (o que é que aconteceria se uma mulher fizesse…?; em vez de, “o que pensa e como age Lady MacBeth?”), acabando por encerrar-se noutra “jaula”, o filme que procura filmar a tragédia do avesso e que vai imobilizando-se (reduzindo o espaço da sua cela) cedendo ao filme vagamente erótico, vagamente perverso ou vagamente de terror.



Tudo termina quase como começou, com a certeza solitária de uma câmara que filma geométrica e frontalmente a sua personagem. Solidão no plano e solidão psicótica na vida. Esta circularidade, esta rigidez narrativa, são o avesso das chamas que consomem Manderley, no final de Rebecca (1940), de uma casa que também foi habitada por uma loucura confinada pela condição feminina e pelo fantasma da sua repressão. Ao contrário do filme de William Oldroyd, em Hitchcock tudo se move, tudo queima e se decompõe: ainda hoje todo o mistério aguarda resolução, ainda hoje secretamente desejamos ter conhecido (trocado umas palavras que seja) com a Rebecca original. Em Lady Macbeth tudo é estacionário, a chama é substituída pela térmita do tempo, pelo tempo que levará a que a casa e este seu “animado e belo móvel” com ela se decomponha; ou então, que o acaso traga mais um obstáculo que, como lenha para a fogueira, será certamente consumido. Uma e outra vez.


LADY MACBETH
(Lady Macbeth, 2016, 129 minutos)

Direção
William Oldroyd


Roteiro
Nikolai Leskov, Alice Birch

Elenco
Florence Pugh
Cosmo Jarvis
Christopher Fairbank
Paul Hilton
Naemi Akie
Golda Rosheuvel
Anton Palmer
Rebecca Manley

em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping




PRINT SCREEN (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)


Mercearia... tecnológica...
Muito se fala das famigeradas ‘redes sociais’: que “... é isso...”, “... é aquilo...”. Há muita teoria para uma prática cada vez mais funesta.
A começar pelo que é ‘tornado público’ (publicar!): sempre uma representação de ‘uma parte do todo’, uma ‘simplificação’ que nem sempre reflete a ‘complexidade’ inerente a qualquer ser. Há muita ‘redução’ nessas representações: a vida, mesmo, a de verdade, costuma ser bem mais acachapante do que sonharia nossa vã filosofia.
Com as redes sociais, pudemos constatar uma máxima muito praticada por essa desinternetada Mercearia: que a vida de ninguém dá um livro. As histórias costumam ser as mesmas e são raríssimamente interessantes. Apesar da complexidade do desfile, nada que já não tenha sido visto antes.
Eis, aí, o ‘pobrema’: se a vida de ninguém ‘dá um livro’, o que faz todo mundo pensar ‘que daria’?! As vidas privadas são razoavelmente desinteressantes como matéria-prima da Literatura: em nenhuma aula dessa disciplina, seja direcionada a uma língua específica, Teoria da Literatura ou Literatura Comparada, há discussões tremendamente extensas sobre a vida privada de alguém.
Afinal, é uma aula de Literatura, não de alcovitagem...




Uma coisa que se aprende oficialmente nos cursos de Letras (nos bons, é claro!) por intermédio das aulas de Literatura é que tal área de conhecimento possui uma tecnicidade quase semelhante à Engenharia, ao Direto e à Medicina. Óbvio que é uma ciência humana e possui suas particularidades, mas há muita técnica e observações de regramentos nessa modalidade de Arte.
Não é bagunça, não...
A arte de narrar bem a história que se quer contar é o coração dessa disciplina, não a história em si. É possível, na Literatura, apanhar uma ocorrência pequena da vida e contá-la de uma forma magistral.
É uma arte narrativa (sobre ‘como se conta’) com postos avançados, hoje em dia, no teatro e principalmente no cinema.
Essa arte (a de narrar!) não dispensa aquele ‘fundamental’ para qualquer coisa: a vocação e o talento. Esse ‘contar uma história’ pode ter inúmeras formas e maneiras: agradáveis, inusitadas, ‘chatinhas’, surpreendentes, mas todas encantadoras pelo sabor que imprimem.
Contudo, isso não quer dizer que, nas famigeradas redes sociais, tudo é narrativa ou toda narrativa é cabível.




A internet, assim como uma rede social, é uma praça pública: aberta 24 horas para a fauna mais variada que se possa imaginar. Qualquer um pode frequentar tal espaço da forma como melhor deseja, com qualquer tipo de roupa, por exemplo, ou mesmo sem roupa alguma: nu(a) ou fantasiado(a) de Pikachu.
A questão em torno desse espaço (internet, rede social) é que ele jamais filtrará aquilo que compõe o íntimo de alguém. Se um sujeito é dado a certas ‘saliências’ (e cabe aqui um substancial eufemismo porque o nome é bem outro!) em sua vida privada, não se preocupe: o acinte e falta de respeito em ambientes privados logo estarão à luz do dia, interferindo impiedosamente na vida de pessoas que sequer imaginamos.
E aí, nesses casos, é melhor ‘printar a tela’.
É possível compreender certas motivações que vão ao íntimo do ser humano. Entretanto, isso não significa deixar de levar o outro em consideração antes de uma tomada de decisão (o respeito!) por mais que se entendam as contingências que fizeram alguém ser o que é.
Em caso de desatenção sobre o acima exposto, podem esperar: abuso a caminho! Em geral na privacidade dos ‘mensageiros instantâneos’, sob uma perigosa premissa de que “... não vai sair dali.”. Sai! Sai, sim! As pessoas se conversam, compartilham telas printadas e, em breve, o nome do(a) querido(a) freguês(a) estará em “bocas de matildes”.
‘De boa’, caro(a) freguês(a)?! Chamem para conversar ao vivo e em cores. Bem mais seguro...!
A postura fora da internet e das tais redes sociais é o que confere segurança para certos dados transmitidos com total discrição. O problema é que pessoas assim são cada vez raras, rasíssimas, gente madura bastante para que certos detalhes e informações possam ser seguramente compartilhados.
E lembrem-se: jamais apertem botões como “publicar” e/ou “enviar” sem maiores certezas quando em assuntos que podem interferir negativamente a vida de alguém. Essa impublicável Mercearia já passou por isso e não aconselha ninguém. No mundo das baixezas e dos ataques, tudo o que vai para uma rede social pode causar um dano irreparável: de reputação a trabalho, de vida amorosa a social.

E deixemos as peculiaridades e idiossincrasias para os relacionamentos privados e íntimos de cada um. Nos casos de abuso e desrespeito, quem é vítima sempre se protege: é cada ‘print screen’ de arrasar quarteirão.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

O QUE VEMOS NO QUE VIAJAMOS (uma crônica de Ademir Demarchi)



Eu falava, na crônica anterior, sobre Águas de São Pedro e seus banhos de enxofre que, depois de conhecer essa cidade, li uma novela de Paulo Emílio que lá se passa. Graças à leitura, à redescoberta de um lugar através de uma dimensão imaginada, o ambiente da novela como que se moldou, de certa forma, às minhas impressões daquele balneário. A observação é interessante porque me sugere um dos dilemas típicos de Julio Cortázar, ou seja, de que os lugares se tornam mais presentes em nossa memória quando os imaginamos do que quando neles estivemos.

Não chegaria a tanto, nesse caso, dizendo que esse balneário, tendo o conhecido antes, passou a existir depois da leitura da novela, porque minhas estadas naquele inferno de banhos de enxofre foram sempre mais divertidas que as impressões causadas pela novela. No entanto, com certeza, ele ganhou outra conotação, pois as impressões de leitura se mesclaram às minhas próprias impressões vividas e o prazer de transitar pelos salões do Grande Hotel, assim, se duplicaram.

De modo que aqueles personagens da novela e sua fantasia de adultério e vida burguesa lá persistem como fantasmas, assim como eu próprio em minha imaginação transito por lá os vendo para sempre, bon vivant entre um banho de enxofre e um flerte com jantar à luz de velas, vinho escolhido a dedo, banquete, toalhas e guardanapos de linho, taças de cristal fino, talheres de prata e colchões celestiais.

Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego, diz que “É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para que viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações? A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”.

Esse heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, parecia ser resistente às viagens físicas. Mas viajava bem em sua imaginação, sugerindo que é o espírito que molda o olhar e a paisagem, menos do que o olhar molda o espírito. Assim, viajar só é bom para quem está aberto para experimentar cada novo odor, cada novo sabor, cada novo desvio do sabidamente conhecido para se perder na redescoberta de si mesmo no diferente. Por isso, sugere ele que o que vemos não é o que vemos, mas o que somos, visto que, ainda que estejamos no lugar e em meio ao mais estranho, sempre, como um espelho, descobriremos o que somos nós mesmos naquilo que vemos, por mais estranho que pareça. A viagem, portanto, ainda que exterior, é sempre interior.

[publicado originalmente em 26/02/2009]

Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.
(basta clicar nos nomes para ser enviado
ao website da editora)


O FORNECEDOR (uma reminiscência publicitária de Carlão Bittencourt)


“Nada é mais letal contra o ciúme
do que uma gargalhada”
Françoise Sagan


O rapaz tinha chegado há pouco do seu país, a Suíça. Não conhecia nada de São Paulo. Nem ninguém. Veio com uma mala, a máquina fotográfica, a cara e a coragem. Apenas. O outro bem de valor que possuía, não precisou revelar na alfândega: o talento para a fotografia. Imenso.

Consciente disso, passou a visitar as principais agências de propaganda da cidade atrás de trabalho. Numa delas encontrou uma conterrânea, diretora de arte. Foi a sopa no mel. Não só começou a fotografar como, de quebra, ainda arranjou um cantinho para dormir, enquanto as finanças não melhoravam. Virou hóspede na casa dela.

Embora a moça fosse casada, isso não foi empecilho. O marido, paulistano da gema, também era do ramo, um bem sucedido diretor de comerciais. Em pouco tempo ficaram amigos. Os três.

Corta. Seis meses depois, ele já tinha conquistado o respeito do mercado. Como fotógrafo e diretor de fotografia. Agenda lotada, tornou-se dos profissionais mais requisitados da área. Mas continuava morando com o casal.

Fusão para uma manhã de quarta feira. Luz de janela. Suíte do casal. Quinze minutos depois de sair para a produtora, o marido se deu conta de que tinha esquecido os óculos em casa. Voltou.

Ao entrar no quarto para pegar o objeto sobre o criado-mudo, flagrou a esposa e o hóspede na cama na maior confraternização. A gritaria era tanta que precisou quebrar alguns móveis na parede para que sua presença fosse notada. Passado o susto, foram para a sala discutir a relação. Os três.

O marido estava possesso. Passou a maior descompostura na infiel e no amante. Aos berros. Os dois escutaram tudo quietos. Até que a esposa, tentou argumentar com ele, usando a abordagem clichê para aquele tipo de situação. Sorrindo, disse que não havia necessidade de tanto drama. Que todos ali eram maiores de idade e vacinados. Precisavam agir de maneira civilizada. E concluiu:

"Afinal, isso não foi nada, querido...só sexo!"

O marido enganado, então, foi de uma espontaneidade cabal. Numa explosão de franqueza, encerrou de vez o assunto, e o casamento:

"Isso pode não ser nada pra vocês dois, que são suiços... Mas pra quem nasceu na Mooca como eu, cata-cavaco é imperdoável, ouviram? Imperdoável!"

Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.