Wednesday, October 5, 2016

A METÁFORA SOZINHA (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



Vez e outra, caio nos alfarrábios. Uma maneira de saber, ou entender, como um determinado tipo ‘contemporâneo’ era visto pelos olhos de outrora. As páginas amarelecidas, algumas próximas do puído, nos reservam a surpresa da simplicidade em suas explanações. Nada muito rocambolesco. ‘Pá-pum’. Em geral, quando as consultamos, percebemos que nossos dias acabam se tornando difíceis por algo que chamo de ‘desvio de função’ (ou desvio de foco, ou uma coisa que leva a outra).

Talvez nos perdemos na jornada por não consultarmos muito os alfarrábios.

Hoje, com o advento da internet, os alfarrábios acabam caindo para segundo plano. Entretanto, ainda têm seu lugar na vida de todos quando precisamos consultar a história dos conceitos e definições.

Folheando aqui e acolá filólogos e gramáticos como Domingos Paschoal Cegalla, Hildebrando André, Mauro Ferreira, Evanildo Bechara, Aurélio Buarque de Hollanda e alguns menos famosos, fui atrás do que eles tinham a dizer sobre metáfora. Sempre é bom, às vezes, lembrarmos que somos quase sempre eternos aprendizes.

Para resumir a ópera-bufa, em quase todos eles a metáfora é classificada como uma ‘figura de linguagem’ (ou “tropos”), fora do escopo das figuras de construção (sintaxe) ou figuras de pensamento. Figuras de linguagem são recursos de expressão, utilizados por um escritor, com o objetivo de ampliar o significado de um texto literário ou também para suprir a falta de termos adequados em uma frase. É um recurso que dá grande expressividade ao texto literário.

Logo de saída, dois probleminhas: figuras de linguagem são utilizadas na materialização do texto, não somente no surto criativo (aquele ‘frenesi’, como disse uma vez o escritor e poeta norte-americano Edgar Allan Poe, no seu brilhante ‘A Filosofia da Composição’) e, em certas ocasiões, “para suprir falta de termos adequados em uma frase”.


Ou seja, uma figura de linguagem, dependendo da circunstância, pode escamotear problemas crônicos de conceito ou expressão inexata. O que tanto orna um texto e nos embevece pode ter sido uma saída honrosa para um arremedo de expressão ou alma vazia, sem o lastro do pensamento ou da maturação.

Na continuação, uma das várias definições de metáfora: “desvio de significação própria de uma palavra, nascido de uma comparação mental ou característica comum entre dois seres ou fatos”. Mais ainda: “na metáfora, a comparação está implícita, trazendo uma relação de semelhança entre dois elementos”.

Na criação artística, é possível intuir formas, conceitos e ideias pela metáfora, nessa fase inicial da obra? É possível a arte se utilizar de um recurso utilizado na materialização de uma obra antes dessa materialização em si, na fase da criação? Sim. A arte não é estanque, fechada, mão-única das relações de belo, de emoção e sentimento. Se arte é a uma forma de representar como tudo está no mundo, seu grande patrimônio acaba naturalmente se tornando a amplitude do raio de ação da criação. O criador não pode, no ato de criar, levar em consideração absolutamente todas as variáveis de uma equação que se prova infinita e interminável.

Contudo, ignorar a ‘gramática’ que circunda uma manifestação artística (a ‘linha do horizonte’ na pintura, ou o controle do branco ao grafar a luz na fotografia) pode jogar uma peça artística nos calabouços do ininteligível. Qualquer signo, em certo instante, chama para si uma certa ordenação, sob o risco de seu relacionamento semântico se perder. O que era para ser muito quente ou muito frio acaba se tornando morno.

Esse entendimento que os artistas possuem de enxergar a ‘gramática’ de qualquer coisa como as correntes que aprisionam a deflagração do ato criativo é valida no primeiro fulcro do ato criativo: a Concepção. A chegada do segundo fulcro, a Composição, e do terceiro, a Materialização, não dispensam determinada tipo de organização e regramento que eventualmente uma metáfora pode estabelecer.


O principal perigo de se estabelecer somente na metáfora quando do primeiro fulcro do ato criativo, a Concepção, em qualquer tipo de manifestação artística, é o mesmo que se encontra na literatura: de se esquecer que se faz literatura, e não metáforas. A metáfora não contém literatura, mas é a literatura que contém metáforas.

A transformação da ‘metáfora’ no primeiro fulcro do ato criativo como ‘profissão-de-fé’ é jogar os outros dois fulcros num espinhoso abismo. O resultado costuma ser desapontador, quando não lastimável. E o que é pior: fica medíocre, da raiz latina ‘medium’, o que fica no meio, não é nem excelente, nem péssimo, não é muito bom, nem muito ruim, não é quente ou frio. Fica ‘no meio’. Morno.

Os debruçares sobre a ‘ideia-fagulha’, sua cura, curtimento, envelhecimento, assentamento, conversação, esse relacionamento com o intuir presente na ‘situação-partida’ da criação é fundamental para que não se carregue para dentro da arte somente metáforas. Caso contrário, o pintor se esquecerá que faz pinturas, o escritor se esquecerá que faz literatura, o ator se esquecerá que faz teatro, o bailarino se esquecerá que faz dança, o músico se esquecerá que faz música. O fundamental da coisa.

E o mais doloroso nisso tudo: a tristeza, a aflição e o desapontamento causado nos pares. Às vezes, uma vida inteirinha dedicada a uma paixão se ruindo diante dos olhos diante do ‘morno’ de uma peça artística porque a obra ficou presa somente a uma metáfora. Não saiu dela. Não existiu como arte composta de todos os seus elementos e gramáticas fundamentais para que a beleza toque a alma e coração de quem a contempla.

 



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO




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