“(...) O contraste atinge seu ápice quando, por inevitável conseqüência da moral servil, também aos "bons", por precaução contra esta moral, se coloca um pouco de desprezo — ainda que leve e benévolo uma vez que, segundo a moral servil, "bom" deve ser precisamente o indivíduo "inócuo"; é bonachão, pode ser facilmente enganado, talvez um pouco tolo. Em suma um "bon homme". Onde quer que a moral servil se erga, a língua se mostra inclinada a fazer da palavra "bom" um sinônimo de "tolo". (...)”
[NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aforismo 260; in “Além do Bem e do Mal”. Curitiba, Hemus Livraria, Distribuidora e Editora S.A., 2001, p. 199]
Numa Mercearia que flerta inequivocamente com o encerramento de suas atividades, é bom avisar ao(à) querido(a) freguês(a) qual a ‘mecânica’ que eventualmente ventila tal pensamento.
Entre o mundo ideal, esse com só existe em nossas cabecinhas, e o mundo real, aquele que enfrentamos além dos batentes da porta de entrada de nossos solares, há um espaço a ser preenchido.
Se tentarmos contato com o ‘mundo real’ da forma como ele é, sem a menor intenção de querer compreendê-lo ou enquadrá-lo num molde que somente existe em nossas ‘cabecinhas’, temos uma variedade quase infinita de posturas quase sempre ‘justificáveis’. Tal tentativa é o primeiro passo de construir uma ponte entre esses dois mundos.
Essa ponte costumeiramente recebe o nome de ‘acordo’: é ele que possibilita o nosso ‘mundo ideal’ conviver saudavelmente com as diversas posturas encontradas no ‘mundo real’.
Sem o acordo, sem um diálogo franco e honesto, sem comunicação e transparência, a ‘ponte’ desaparece. Quando a ‘ponte’ desaparece, numa tentativa aterradora de enquadrar o ‘mundo real’ dentro do molde de uma situação ideal (e, logo, tremendamente favorável para apenas um dos lados), temos o que é chamado de ‘tirania’.
Excesso de tirania, e a ‘práxis’ emperra.
O(A) tirano(a) sempre se dá bem, porque o ser humano é um bichinho de ‘crença’ e de ‘justiça’. Logo, há sempre alguém pronto a crer na ‘boa-fé’ do próximo, possibilitar grande adesão naquilo que é dito, condição ‘sine qua non’ para o mínimo de trânsito nas interações sociais.
Aqui nasce a mecânica fundamental do embuste: se o que é dito segue para a direita, mas o gesto se endereça para a esquerda, para quê a ‘ponte’? Certamente, por compromisso distinto e profunda ausência de transparência, o que é dito não é feito.
Quando o que é dito não é feito, palavras e gestos não habitam a mesma casa, nem se sentam à mesma mesa, temos aqui um belíssimo sinal de que o ‘acordo’ (a ‘ponte’ entre o ‘mundo ideal’ e o ‘mundo real’) foi substituído por uma tremenda ‘forçação de barra’.
É preciso, sempre e inicialmente, dar chance ao ‘bona fide’ até que os indícios provem o contrário. Se tais indícios destroem a ‘boa-fé’ de quem a propôs, muito precisa ser investigado quanto aos porquês na insistência do erro.
Na maioria dos casos, as apostas se encerram quando se verifica, ainda que por indício, que as palavras são celestiais, mas os gestos que deveriam sustentá-las são subterrâneos.
As palavras não têm força. Os gestos têm. Os gestos estão na frente, as palavras, atrás. As palavras, quando muito, seriam a comunicação da transparência de gestos concretos.
O gesto é o senhor! Palavras possuem a relevância de se enviar missivas para o futuro, mas sem o gesto de se sentar à mesa para materializá-las não poderia esse futuro acumular os ecos de uma trajetória.
Imaginemos Moisés com uma tremenda preguiça... teríamos o Pentateuco? O gesto do patriarca possibilitou todo conhecimento que forma reputações até hoje. Sem seu gesto, não teríamos sequer o princípio da indenização.
O gesto de escrever é muito mais impactante do que as belas palavras que constituem o tecido verbal. Palavras sem a sustentação do gestos são palavras vazias: a ‘ponte’ só pode ser construída com a dignidade dos gesto, ‘edificada’ pela transmissão ‘via’ palavra.
Universos não entendem o verbo, somente os gestos movimentariam alguma coisa. Gestos claudicantes pela baixa estatura de um compromisso ‘de fato’ geram ‘voo de galinha’, uma interação frequentemente nanica, medíocre, que nada mais é do que a empulhação de tentar amarrar, ater, alguém ou algo com um discurso muito sedutor, mas impraticável.
No mais, os ‘serviços de proteção’ a uma espécie de ‘harém’ que se cria, segmentos, grupos, uma ‘auto-proteção’ cujo valor da mensalidade é levar pelas fuças o determinado ‘pelo outro’, sem um ‘acordo’, nada é conversado. O quadro perfeito para aquilo que Bauman em ‘A Modernidade Líquida’ identificaria como “tirania”.
E a solução era simples: sentar e ouvir ‘o outro’ com o objetivo de tentar, ao menos, entender parte do que está do outro lado da mesa. Como dá trabalho, funciona o ‘mundo ideal’, ninguém está muito disposto(a) a investir certo tempo na tentativa de se compreender como é que ‘o outro’ chegou naquele ponto, qual o itinerário, a trajetória. O fim da generosidade para a empatia, a simpatia, ou um excelente alicerce para um acordo que naturalmente eliminaria a “tirania”.
Não é à toa que chegamos ao desencanto. Quaisquer valores, em especial os bons (ou construtivos), são menores, postos de lado. Em outros momentos, tratados com extremo escárnio. Um mal-estar geral que garante aos mal-intencionados uma bela sobrevida e bom dinheiro no bolso. Se felicidade é efeito colateral do bem-estar, chegou a hora de se rever alguns conceitos.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
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