Quatro horas da manhã. Deveria ter acordado às duas, mas nem dormi. A adrenalina me mantém acordado. Em frente ao galpão, verifico que não há guarda. É só decidir como entrar. Não há ninguém na rua, apenas um carro ou outro que passa e quem dirige não quer saber o que acontece na calçada. Mexo na porta de ferro, não sabendo como entrar, e eis que a resposta está dada. A porta não está trancada. Viria a saber depois que nunca esteve. Só que ninguém antes sequer havia tentado. Em cima da porta, bem claro, o aviso não é economicamente convidativo: livros. Abro o suficiente para entrar. O carro que arranjei, parado no lado de fora, é um furgão. Uma amiga está ao volante. Não tenho carta de motorista mais, não costumo quebrar a lei... é realmente antagônico tudo isso. Pego um carrinho emprestado dentro do galpão, começo a ver os títulos dos livros que estão à disposição ali, a pegar caixas e pôr no carrinho. A leva não salvará todos eles. Os livros, minha mente nervosa fantasia, gemem. Estão no corredor da morte, eu sou Schindler. Essa alucinação me dá coragem. Até que o pavor supremo me invade as veias: um homem surge em pé. Ele me pergunta o que estou fazendo, eu anuncio o assalto. Ele pergunta o que é isso que tenho na mão e digo que é uma banana. Ele faz breve silêncio e responde que não tem como reagir. Ainda pergunta se quero ajuda. Ele me ajuda a encher o carrinho. Em silêncio. Até que, o carrinho difícil já de ser carregado, ele pergunta como vou levar tudo e eu falo do furgão lá fora e ele parece um pouco decepcionado com a capacidade de carga desse roubo. Me ajuda a encher o furgão e me ajuda a pôr umas caixas mais no carrinho - deu pra pegar alguns Guerra e Paz, Contos completos de Tolstói, Stendhals, Virgínias Wolfs (o certo seriam wolves, mas deixa), Carrascozas, Alejandros Zambras, Villas Matas, Hugos Mães, Rogérios Pereiras, Alans Pauls, Ronaldos Correias de Britos, esses plurais estão me matando, um monte de livros e de autores) - e me pergunta se pretendo vender tudo aquilo e ficar rico. E ri. E diz que se eu abrisse uma livraria com tudo aquilo conheceria de perto a falência, a minha e da Humanidade. E que se eu pretendia doar tudo aquilo, ele ri de novo, eu conheceria bem mais de perto a minha falência e da Humanidade. Pergunta onde eu guardaria tudo aquilo. E diante de resposta nenhuma, se apresenta como sendo o contador da antiga editora, que falira nas mãos dele, como um médico que perde um paciente na mesa de cirurgia - a cara já outra, posso ver ainda que pouca a luz -, e que estava ali naquela madrugada para se despedir de tudo: depois viria o Natal e pouco antes do Ano Novo tudo seria exterminado, o galpão enfim liberado para se guardar coisas mais vendáveis, talvez, mais valiosas para as pessoas do que aquilo. O homem chora, some lá dentro, no escuro. Começa a clarear. Sem ajuda, começo a carregar tudo de volta. Antes, peço forças à banana. A casca, deixaria na porta, como um aviso.
André Argolo nasceu em Santos, em 1974.
Começou sua carreira no jornalismo
na TV Mar e na TV Tribuna,
tornando-se mais adiante editor e repórter
na ESPN Brasil, TV Cultura e TV Globo SP.
Reuniu seus poemas
em "Vento Noroeste"
(2014, Editora Patuá).
(2014, Editora Patuá).
Vive em São Paulo e tem um filho.
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