“Essa foto tem quase cinquenta anos.”
“Você é essa menina?”
“Sim.”
“Que graça...”
“Viu como eu tô quietinha ao lado do meu pai? Eu o adorava.”
“Por que você usava óculos?”
“Eu era estrábica, acho que do olho direito.”
“Deixa eu ver os teus olhos.”
“O que foi?”
“O direito é um pouquinho torto.”
“Os teus olhos são juntos. Alguém que não entenda a diferença pode pensar que você é estrábico.”
“Sei... Até que idade usou óculos?”
“Não lembro. Você podia limpar esse quarto, lavar a cortina. Tenho alergia a pó.”
“Descuidei um pouco da casa. Qualquer dia passo uma vassoura aqui.”
“Quando eu não estiver, por favor. Sou sensível à poeira. Aproveita e troca esse lençol.”
“Você ainda parece a menina do retrato. Tem o mesmo olhar.”
“As coisas ficam.”
“Será que o teu pai pensou na composição da imagem? É engraçado: vocês usando óculos de armações pretas, de hastes e lentes grossas.”
“Claro que ele planejou a cena. O meu pai era fotógrafo amador. Em vez de varrer o quarto, você devia comprar um aspirador de pó. É o mais adequado. Com a vassoura, a poeira vai ficar suspensa e eu vou espirrar e tossir.”
“Se a menina de óculos quer um aspirador de pó, ela terá. Me empresta o celular? Quero admirar o retrato de novo.”
“De novo?”
“Jamais vou me cansar dele. Esse retrato em preto e branco transmite um carinho um pouco engraçado, como se fosse um sonho.”
“O meu pai era cuidadoso. Ele me ensinou a fotografar.”
“Você já foi fotógrafa?”
“Na época da faculdade me dediquei bastante, até ganhei um prêmio; fiz uma foto na campanha das Diretas Já, em 1984, de um menino negro e pobre no meio de um grupo de políticos em São Paulo.”
“Onde tá essa foto?”
“Me perdi dela. Acho que vou espirrar. Quando o vento balança a cortina, mesmo de leve, o pó se espalha, tudo aqui fica enevoado.”
“Você se lembra dos detalhes do retrato?”
“Sei que o meu pai preparou a máquina pra disparar sozinha porque ele me contou isso anos depois. Do contexto não lembro. A não ser que o meu pai me mimava muito. Continuou me mimando até perder a memória. Mesmo assim, se manteve carinhoso e gentil. Quando eu o visitava, sem saber quem eu era, ele me dizia: ‘Que moça bonita.’”
“Vocês estão na sala?”
“Não sei exatamente, pois a nossa casa era muito grande... Eu gosto de viver, a vida é engraçada.”
“Também não tenho grandes reclamações. Você se lembrou de alguma coisa?”
“Comigo você está aprendendo uma existência, tenho essa impressão... Uma vez, o meu pai tinha que fotografar o casamento de um amigo. Como ele iria direto do trabalho, eu e a minha mãe fomos na frente e levamos o equipamento. Houve um problema e o meu pai se atrasou. Tomei a iniciativa. Eu devia ter uns doze anos. Fotografei toda a cerimônia.”
“Quero ver essas fotos.”
“Preciso organizar os meus álbuns. Ah, vou procurar uma em que tô de óculos com uma das lentes tampadas. Naquela época, o tratamento para o estrabismo utilizava essa técnica. Pelo menos comigo foi assim. O pior é que cobriram o meu olho bom, isso pra forçar o que estava torto a voltar para o lugar.”
“Você ainda usa óculos?”
“Por acaso eu tô de óculos?”
“Me refiro aos de leitura.”
“Na verdade, preciso de óculos por causa do astigmatismo. Mas não uso. Agora, tenho coisas mais importantes para fazer — eliminar da minha vida tudo o que é ruim e inútil. Não quero computador antigo, não quero usar calça velha, não quero mais trabalhar. E também não quero poeira no teu quarto.”
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor, editor,
secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos
de dedicação exclusiva
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
LEVA UM CASAQUINHO.
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