“Mineiro escorrega para cima”
João Guimarães Rosa
Carlos Moraes foi único. Excepcional redator. A afirmação é de outro mestre do texto, Noé Sandino, que tinha profundo respeito pessoal e profissional por ele.
Noé garantia que Carlinhos, como era chamado, fora uma das figuras humanas mais ricas e interessantes que havia conhecido. E sempre lamentava sua morte precoce.
De fato. No “teclado”, ele beirava a perfeição. Seu texto era inteligente, enxuto, envolvente e de uma modernidade absurda. Mas o homem era ainda mais surpreendente que o redator. Disparado.
Nascido em Minas Gerais, Carlinhos tinha aquele jeitão típico do mineiro. A famosa sabença. Quieto, olhar distante, entediado, cultivava longos silêncios, que interrompia quase sempre com uma frase engraçada. Ou uma tirada, no mínimo, desconcertante.
Confira duas passagens absolutamente impagáveis desta autêntica figura.
O FOCA
Antes de trabalhar em propaganda, Carlinhos era redator num grande jornal de São Paulo. Gostava de chegar no meio da tarde na redação, horário em que o local estava mais tranqüilo. Na moita, ficava curtindo os seus textos.
Um belo dia, pintou um foca no pedaço. Alguém apresentou o rapaz a ele, dizendo que se tratava de uma jovem promessa do jornalismo. Carlinhos olhou, balançou a cabeça com certo enfado e voltou à sua matéria.
O problema é que o tal foca também gostava de chegar cedo ao jornal. Resultado: encarnou de ficar sapeando em volta de Carlinhos. Virava e mexia puxava conversa, tentando uma aproximação. Inútil paisagem.
Ele nem olhava para o rapaz. Ensimesmado, sequer tirava os olhos da máquina de escrever, mesmo quando o jovem perguntava ou dizia alguma coisa. Nada. Zero reação.
Mas, como todo foca que se preze, aquele também não tinha o menor semancol, e continuava perturbando o nosso amigo. Até que Carlinhos resolveu dar um jeito na situação. Definitivamente.
Chamou um redator, velha raposa, e combinou o trote. De algum modo, ele deveria dizer ao foca que Carlinhos, além de grande no texto, era também conhecido por ter a maior pemba do jornalismo paulistano. Ou seja, que ele tinha o membro de um jumento.
Uma semana depois o foca já tinha sido devidamente inteirado do assunto. Carlinhos, então, detonou a segunda parte do plano.
Três da tarde. Na redação vazia, só estava Carlinhos. O foca chegou e, como de hábito, foi mexer com quem estava quieto. O que é uma temeridade.
Assim que o jovem deu “boa tarde”, Carlinhos parou de escrever e o encarou. Silêncio. Os minutos passavam e ninguém dizia nada. Até que Carlinhos falou, naquele sotaque mineiríssimo:
“Tô seco pra mijá!”
Tímido, o garoto ficou vermelho de vergonha. Mas, para não perder o rebolado, balbuciou, apontando em direção ao banheiro, que ficava a uns trinta metros de distância:
“Então, vai lá...”
Carlinhos continuou com sua fala mansa:
“Tô com preguiça de andá...”
O foca não sabia o que dizer. Ficou ainda mais sem graça. Seu rosto parecia uma capa de toureiro. Carlinhos continuou com a mineirice:
"Acho que vou mijá naquela pia ali.
Cê me dá cobertura?"
O rapaz concordou. Foram até a pequena pia, num cantinho da redação. Carlinhos deu a ordem ao foca:
"Fica de butuca no salão.
Se vier alguém, me avisa."
Dito isso, tirou a estrovenga da braguilha e deu início à micção. O rapaz ficou de campana, mas espiou na direção do outro, para conferir se o cara era mesmo avantajado. Deu de cara com o mineirinho sorrindo para ele, enquanto segurava o imenso mangalho na mão.
Assim que acabou o serviço, Carlinhos lavou as mãos e voltou para sua mesa. O rapaz foi junto, envergonhado por ter sido flagrado em sua curiosidade. Sem saber o que fazer, ficou por perto.
Carlinhos voltou a escrever. De repente, parou, olhou para o rapaz com aquela cara de mineiro sem vergonha e sapecou:
"Viu como é grande?!?!"
O foca sumiu do jornal.
A SOGRA
Outra característica da personalidade de Carlinhos Moraes era
não poder ver um rabo de saia. Era doido por mulher. E tinha uma preferência toda especial pelo chamado baixo clero, as trabalhadoras do Brasil. Se fosse uma balconista, então, ele pirava.
Certa noite, voltando da agência, já perto de casa, ele viu uma morena interessante num ponto de ônibus. Ofereceu carona. A moça aceitou e entrou no carro.
Até aí nada de mais, não fosse por um pequeno detalhe: Carlinhos não tinha um carro convencional, mas um Porsche. Do ano. E, ainda por cima, roxo metálico.
Havia ganhado o veículo de luvas da agência em que trabalhava (para não ir para uma grande concorrente). O fato é que Carlinhos insistira muito para que o carro fosse daquela cor, estranha para os simples mortais. Ou seja, aquele deveria ser provavelmente, o único Porsche roxo do mundo. Às favas com a discrição.
Como a garota não fosse de perder tempo e ele muito menos, Carlinhos entrou na primeira rua que viu e estacionou. O bicho pegou. No breu.
Tente imaginar a ginástica que deve ser namorar dentro de um Porsche. É coisa para acrobata do Circo da China!
No melhor da função, o emaranhado casal foi interrompido por uma voz de mulher, gritando, histérica:
"Muito bonito, hein, Seu Carlinhos Moraes!!!!!!!!"
Era a sogra dele.
Sem perder o rebolado, Carlinhos levantou a calça, que estava
abaixo dos joelhos, fechou o zíper e disse, com a frieza de um matador profissional:
"Minha senhora, deve haver algum engano:
eu não me chamo Carlinhos Moraes!"
Ato contínuo, ligou o carro e, em segundos, desapareceu, deixando a megera atônita, plantada na beira da calçada.
Dois minutos depois, Carlinhos ligou para a esposa, contando que estava no Rio de Janeiro desde a hora do almoço, a trabalho. Explicou que fora convocado para uma reunião de emergência num cliente de lá e que não tivera tempo de avisá-la, antes de pegar o avião. Dormiria no Rio e voltaria no dia seguinte na primeira Ponte-Aérea para São Paulo, indo direto para a agência.
Por último, contou que havia emprestado o carro para um colega da agência que, por coincidência, morava perto deles. O amigo, louco por carro importado, iria devolver-lhe o Porsche na agência.
Que saída!
Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.
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