UM BOINA VERDE, AS COBRAS E A PRÓXIMA MIJADA
(primeira temporada, episódio 01)
- Existe esse troço de escrever pra determinada idade?, perguntou meu filho.
– Sei lá, respondi.
Acho que sei pra quem foi escrito On The Road.
Mas pra quem diabos foi escrito A Arte Zen da Manutenção de Motocicletas?
E Notas de um Velho Safado?
Agradecer por essa mijada. Ficar vivo pra mijar outra vez.
Às vezes, epifanias acontecem enquanto seguramos o pinto e olhamos pro fundo de uma privada qualquer. E de repente descobrimos que só nos resta sobreviver até a próxima mijada.
O resto?
Bem, o resto é muito complicado.
Ainda mais com cobras rastejando na cabeça.
Um cara que virou boina-verde, foi pro Vietnã e voltou de lá chapado de tudo até as orelhas foi quem primeiro me falou sobre as cobras.
Por milagre de Deus ou maldição do Demônio, tempos depois conseguiu ficar limpo. Mas vivia se queixando das cobras que rastejavam na sua cabeça.
Minha preocupação no momento, porém, não envolve cobras ou outros seres rastejantes, mas o fato de achar Ramones cada vez mais parecidos com Beach Boys.
Primeiros sinais de senilidade ou apenas efeito colateral da altitude do lugar onde estou em relação ao nível do mar do local onde vivia?
De qualquer forma, é bom estar vivo.
E sentir coisas.
Qualquer coisa, como disse o Keith Richards.
Cruzando a linha dos 70, concluiu também que é impossível amadurecer e, segundo ele, haverá bastante tempo para isso quando estivermos a sete palmos debaixo da terra, ou transformados em cinzas que se espalham por aí ao sabor do vento.
A questão é que faltavam poucas horas e eu não tinha ideia do que dizer pra aquelas pessoas. E elas tinham pagado pra ouvir.
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Afinal, é estupidez escrever sobre experiências? Qualquer experiência, em especial as que podem significar somente lixo pras outras pessoas, mas que foram importantes para nós?
Sim e não.
Escrever sobre uma experiência nos rouba o tempo que podíamos dedicar a viver novas experiências. Mas também pode nos ajudar a tatuar mais fundo, na mente e no corpo, a experiência sobre a qual escrevemos.
Como nunca se tem certeza do que vai acontecer, vamos deixar esse assunto quieto por enquanto e vamos direto ao ponto.
Ficamos velhos e não sabemos o que diabos fazer com isso, além de engolir certos remédios em certos horários, tentando evitar que as dores no corpo piorem e os lapsos de memória não sejam mais frequentes. Acima de tudo, torcemos pra ficar vivos o maior tempo possível sem mijar e cagar nas calças. E, com sorte, falando coisas que as pessoas mais ou menos entendam e que elas digam coisas que a gente mais ou menos entenda.
Escrevi aí na lousa: “Seguir o caminho, então desistir. Deixar para a vida enfim decidir.”
Bonito! Até rima.
Mas as coisas em geral não funcionam desse jeito.
Alguns de nós tentaram e alguns iluminados que sempre surgem aqui e ali até conseguiram alguma coisa. A maioria, porém, acabou desistindo, espontaneamente ou obrigada pelas circunstâncias adversas que começaram a tomar conta de suas vidas.
Mas alguns, por incrível que pareça, continuam tentando até hoje.
E, claro, existem aqueles que jamais se preocuparam com merdas desse tipo.
Aparentam viver permanentemente dopados por algum tipo de substância que os torna incapazes de, enquanto o efeito dessa droga for eficaz, sequer imaginar que existam cobras rastejando na cabeça de alguém, muito menos nas suas.
Parecem sempre muito preocupados com inúmeras outras coisas, o que os mantém ocupadíssimos até a morte.
Como nunca lhes passou pela cabeça que possam existir outros tipos de espécimes humanos coabitando no mesmo planeta, quando são inevitavelmente confrontados com nossa existência, raramente conseguem entender do que estamos falando. Parecem coisas obscuras, sem sentido, talvez alucinações e prováveis sintomas de uma doença perigosa da qual fogem como dizem que o Demônio foge da cruz.
E a questão é simples: cada um lida com as coisas do jeito que consegue.
A maioria das pessoas vira zumbis. Outras acabam se matando antes disso, por suicídio programado ou acidental. E outras ainda, como escaparam de virar zumbis e permanecem vivas, continuam, acreditem ou não, procurando a tal de brecha mágica.
Mesmo entre profetas e santos - dentro e fora dos hospícios -, há sérias dúvidas sobre a existência dessa brecha.
Seja como for, passar o tempo que nos resta na Terra procurando pela brecha não parece a pior das ideias, até porque pode nos salvar de virar zumbis, de planejar um suicídio ou de ser “vítimas” de um suicídio acidental por ingestão excessiva de substâncias que, aparentemente, nos levam mais perto de descobrir como funciona esse negócio de brecha mágica.
E para certas pessoas, talvez só reste mesmo essa busca como alternativa a virar zumbis (na verdade, eles não nos aceitariam jamais) ou planejar um suicídio ou sumir de repente num suicídio acidental.
Por isso, insisto: é preciso se concentrar em ficar vivo até a próxima mijada.
O resto é muito complicado
.
Obrigado a todos! Espero que nos reencontremos em breve.
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.
(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)
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