Friday, May 25, 2018

FRENTE AMPLA, UMA ANEDOTA (por Marcelo Rayel Correggiari)



“(...) É mais provável que essas hipóteses sejam verdadeiras, salvo na presença de uma outra condição, que define o problema real de lei e ordem: atos contrários às normas permanecem sem punição. A ausência crescente de punições efetivas, se estas existirem, é o significado real da erosão da lei e da ordem. Ela não apenas descreve o fenômeno com mais precisão do que a transgressão de normas ou a falta de conhecimento a respeito, como também retira dele os fatores conjunturais e fortuitos. Se as violações das normas não são punidas, ou não são mais punidas de forma sistemática, elas tornam-se, em si, sistemáticas. Conforme prosseguimos com o desenrolar dessas afirmativas, atingimos rapidamente o campo traiçoeiro, porém fértil, da anomia (...).
Uma menor prontidão em aplicar as punições pode tornar-se parte integrante de um clima social prevalecente. Existe a desistência deliberada de punições, no caso de réus primários ou jovens. Existe o processo inteiro de amolecimento das punições, de forma que infratores em potencial sabem que uma sentença de prisão perpétua não significará mais que quinze anos de detenção (como na Suécia). Existe a incapacidade de se lidar com as infrações, por serem muito numerosas, ou porque pessoas demais estão envolvidas nelas, ao mesmo tempo.
Esses fatos irão nos acompanhar ao longo de todo o processo. Eles são todos exemplos de ‘impunidade’ e irei afirmar que é nesta área que se decide a validade normativa de uma ordem social. A impunidade, ou a desistência sistemática de punições, liga o crime e o exercício da autoridade. Ela nos informa sobre a legitimidade de uma ordem. Trata-se de um indicador de decomposição, bem como de mudança e inovação. A incidência crescente da impunidade leva-nos ao cerne do problema social moderno.
No texto que citei acima, Popitz argumenta que a punição para as violações das normas não deve ultrapassar uma faixa quantitativa limitada. Se um empregador ou empregadora, os pais ou um superior, em qualquer contexto, tenta punir todas as transgressões verificadas por ele ou por ela, num processo intenso de fiscalização, a eficácia de todas as punições será destruída. “Um superior que não finja ser tolo em algumas situações é realmente tolo”. Mas aqui, mais ainda do que no caso dos índices ocultos, a fronteira entre os efeitos preventivo e destrutivo da inércia é precário. Tanto o ato de desistir do código disciplinar, cada vez que um dirigente é contrariado, como o de escondê-lo na última gaveta, esperando que ninguém se lembre dele, conduzem ambos ao mesmo resultado: a anomia. A consequência resultante é a anomia, quando um número elevado e crescente de violações de normas tornam-se conhecidas e são relatadas, mas não são punidas. (...)”
[DAHRENDORF, Ralf Gustav. “1. O caminho para a anomia”; em: “A lei e a ordem”. Brasília: Instituto Tancredo Neves; [Bonn, Alemanha]: Fundação Friedrich Naumann, 1987, p. 27-28]

O que seria uma “frente ampla”? Como justificar seu nascimento?
“Frente ampla”, mal comparando, seria uma espécie de ajuntamento do sal com o açúcar para combater o melaço. É quando forças bastante distintas, que nada tem a ver uma com a outra e que fatalmente não sentariam à mesma mesa, amealham esforços para ‘bater de frente’ contra algo (ou alguém) que julgam inconveniente.
Os critérios para a formação de qualquer frente ampla podem ser absurdamente flexíveis. Algo tremendamente comum se levarmos em consideração a criatividade humana para a confecção de suas próprias tralhas. Um troço! Se depender do ser humano, Deus e o diabo fazem ‘acordos’: o completo descolamento da realidade.
Juan Pablo Guanipa, representante da “Frente Ampla Venezuela Livre”, não se conteve: “A farsa foi derrotada pela ausência de povo” [sic] carimbou o logro de seus esforços de campanha pela abstenção nas últimas eleições presidenciais daquele país ocorridas no último fim-de-semana.
A vitória de Maduro foi tão pífia que a ostentação do atual presidente provocada por uma razoável distância do candidato opositor caiu num vazio potente: esqueceram de avisá-lo que somente 29% dos eleitores deram as caras nas respectivas juntas eleitorais.
Tudo bem que, dos 71% de não-comparecimento, boa parte já não está nem mais no país (caso dos refugiados nos estados do norte do Brasil). Do jeito que a banda anda tocando por lá, sejamos sinceros, qual a motivação para sair de casa e participar do ‘sufrágio universal’?!
Vai dar tudo na mesma...
Uma “frente ampla” não pode ter ambições maiores daquelas que lhe foram permitidas. ‘Desobediência civil’ constitucional, aquela identificada pela “legis”. “... não nos rebaixemos ao jogo-sujo da situação...”, bradariam. Olá! É de se indagar se Hugo Chaves não ascendeu com o vigor que se verificou exatamente pela incompetência das elites?!
O que também não justificaria tanto ele como seu sucessor, Nicolás Maduro, partirem para uma governança praticada sobre o delírio: gozar do apoio do socialismo requentado da Rússica e/ou do comunismo “... ‘pra’ inglês ver...” da China não ratifica matar de fome a própria população.
Quem já assistiu a “Narcos”, da Netflix, sobre as histórias do narcotráfico na vizinha Colômbia, sabe que a América do Sul, em termos de sociedade e política, precisa o quanto antes de quantidades colossais de excelentes remédios psiquiátricos dissolvidos nas caixas-d’água de todo o continente. Chegar a ser surreal! “Me belisca porque ‘num tô’ acreditando...”, seria essa a célebre frase. Tanto que se Gabriel Garcia Marquez estivesse vivo, seria solicitada a devolução do Nobel de Literatura: não passa de um hábil plagiador.
Troças à parte, formar uma “frente ampla” significa que as instituições morreram. Como diria João Nogueira, “... rimar açúcar com sal...” para ‘fazer frente’ contra um poder carregado de gestos inconvenientes significa que o legislativo já não coíbe as inconveniências do executivo, e o judiciário já não breca as ‘porra-louquices’ dos dois primeiros. O resto é fome, prisão e ‘bas-fond’ de altíssimo quilate.
É bom quem for de esquerda ficar ‘piano’: o que anda rolando por lá começa a se aproximar de uma ignomínia de cair o queixo. Governo popular? Com 71% de abstenção a ponto de analistas internacionais não reconhecerem o pleito desse último final-de-semana? Hmm.. barbas de molho.
A não-observância de convenções sociais consagradas só produzem um único resultado: a anomia. Agravados pela impunidade, vários países da América do Sul são “craques” em dinamizar a não-observação dessas convenções e o resto da história é essa que está aí.
Criativo ‘pacas’, aliás...
É lugar comum repetir o que Walter Benjamin costumava a avisar: essa não é a exceção, mas a regra. Os ‘períodos de exceção’ (golpes, regimes e “impeachments”, como no Brasil) não são, necessariamente, ‘a exceção’, mas a regra. Imaginem: em nosso país, de 25 em 25 anos, rola um ‘golpezinho’, um ‘impeachmentzinho’, sinal claro de que a elite faz cada cagada e depois vem com uns remendos para consertar a merda toda que é de doer no espírito.
Aí, dana a fazer “frente ampla” para segurar a bosta. Comum num lugar onde a ditadura militar não acabou: sua base material está todinha aí, tanto que o primeiro presidente da “redemocratização” brasileira era, nada mais, nada menos, o rei da Arena.
A anomia ganhou relevos nesse início de século XXI que nem Durkheim, muito menos Dahrendorf, poderiam imaginar. A anomia não é mais somente sobre a não-observância sistêmica para o cumprimento de regramentos, regulações ou convenções (uma não observância que é o coração da impunidade): nos dias de hoje, é resultado de desvios-de-função comprometedores oriundos do atendimento unilateral de um interesse.
O que vale é “... o que eu quero...” e que cada um se encarregue de lidar com os efeitos para lá de nocivos das interferências dela decorrentes.
É um ótimo início de civilização...
Mas não se preocupem: sempre haverá uma “frente ampla para o combate sabe-se-lá-do-quê..” para nos divertir e entreter. Tem um ótimo efeito de mídia e ajuda a arrebanhar o ‘espírito cívico’ enquanto tudo continua como o de sempre. É por essas e outras que essa Mercearia pensa seriamente em lançar uma “frente ampla para fechar no azul”, ou algo similar: na esperança de encontrar inumeráveis adesões e realizar boas alianças.

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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