“(...) É mais provável que essas
hipóteses sejam verdadeiras, salvo na presença de uma outra condição, que
define o problema real de lei e ordem: atos contrários às normas permanecem sem
punição. A ausência crescente de punições efetivas, se estas existirem, é o
significado real da erosão da lei e da ordem. Ela não apenas descreve o
fenômeno com mais precisão do que a transgressão de normas ou a falta de
conhecimento a respeito, como também retira dele os fatores conjunturais e
fortuitos. Se as violações das normas não são punidas, ou não são mais punidas
de forma sistemática, elas tornam-se, em si, sistemáticas. Conforme
prosseguimos com o desenrolar dessas afirmativas, atingimos rapidamente o campo
traiçoeiro, porém fértil, da anomia (...).
Uma menor prontidão em aplicar as
punições pode tornar-se parte integrante de um clima social prevalecente.
Existe a desistência deliberada de punições, no caso de réus primários ou
jovens. Existe o processo inteiro de amolecimento das punições, de forma que
infratores em potencial sabem que uma sentença de prisão perpétua não
significará mais que quinze anos de detenção (como na Suécia). Existe a
incapacidade de se lidar com as infrações, por serem muito numerosas, ou porque
pessoas demais estão envolvidas nelas, ao mesmo tempo.
Esses fatos irão nos acompanhar
ao longo de todo o processo. Eles são todos exemplos de ‘impunidade’ e irei
afirmar que é nesta área que se decide a validade normativa de uma ordem
social. A impunidade, ou a desistência sistemática de punições, liga o crime e
o exercício da autoridade. Ela nos informa sobre a legitimidade de uma ordem.
Trata-se de um indicador de decomposição, bem como de mudança e inovação. A
incidência crescente da impunidade leva-nos ao cerne do problema social
moderno.
No texto que citei acima, Popitz
argumenta que a punição para as violações das normas não deve ultrapassar uma
faixa quantitativa limitada. Se um empregador ou empregadora, os pais ou um
superior, em qualquer contexto, tenta punir todas as transgressões verificadas
por ele ou por ela, num processo intenso de fiscalização, a eficácia de todas
as punições será destruída. “Um superior que não finja ser tolo em algumas
situações é realmente tolo”. Mas aqui, mais ainda do que no caso dos índices
ocultos, a fronteira entre os efeitos preventivo e destrutivo da inércia é
precário. Tanto o ato de desistir do código disciplinar, cada vez que um
dirigente é contrariado, como o de escondê-lo na última gaveta, esperando que
ninguém se lembre dele, conduzem ambos ao mesmo resultado: a anomia. A
consequência resultante é a anomia, quando um número elevado e crescente de
violações de normas tornam-se conhecidas e são relatadas, mas não são punidas.
(...)”
[DAHRENDORF, Ralf Gustav. “1. O
caminho para a anomia”; em: “A lei e a ordem”. Brasília: Instituto Tancredo
Neves; [Bonn, Alemanha]: Fundação Friedrich Naumann, 1987, p. 27-28]
O que seria uma
“frente ampla”? Como justificar seu nascimento?
“Frente ampla”,
mal comparando, seria uma espécie de ajuntamento do sal com o açúcar para
combater o melaço. É quando forças bastante distintas, que nada tem a ver uma
com a outra e que fatalmente não sentariam à mesma mesa, amealham esforços para
‘bater de frente’ contra algo (ou alguém) que julgam inconveniente.
Os critérios
para a formação de qualquer frente ampla podem ser absurdamente flexíveis. Algo
tremendamente comum se levarmos em consideração a criatividade humana para a
confecção de suas próprias tralhas. Um troço! Se depender do ser humano, Deus e
o diabo fazem ‘acordos’: o completo descolamento da realidade.
Juan Pablo
Guanipa, representante da “Frente Ampla Venezuela Livre”, não se conteve: “A
farsa foi derrotada pela ausência de povo” [sic] carimbou o logro de seus
esforços de campanha pela abstenção nas últimas eleições presidenciais daquele
país ocorridas no último fim-de-semana.
A vitória de Maduro foi tão pífia que a ostentação do atual presidente provocada por uma
razoável distância do candidato opositor caiu num vazio potente: esqueceram de
avisá-lo que somente 29% dos eleitores deram as caras nas respectivas juntas
eleitorais.
Tudo bem que,
dos 71% de não-comparecimento, boa parte já não está nem mais no país (caso dos
refugiados nos estados do norte do Brasil). Do jeito que a banda anda tocando
por lá, sejamos sinceros, qual a motivação para sair de casa e participar do
‘sufrágio universal’?!
Vai dar tudo na
mesma...
Uma “frente
ampla” não pode ter ambições maiores daquelas que lhe foram permitidas.
‘Desobediência civil’ constitucional, aquela identificada pela “legis”. “...
não nos rebaixemos ao jogo-sujo da situação...”, bradariam. Olá! É de se
indagar se Hugo Chaves não ascendeu com o vigor que se verificou exatamente
pela incompetência das elites?!
O que também não
justificaria tanto ele como seu sucessor, Nicolás Maduro, partirem para uma
governança praticada sobre o delírio: gozar do apoio do socialismo requentado
da Rússica e/ou do comunismo “... ‘pra’ inglês ver...” da China não ratifica
matar de fome a própria população.
Quem já assistiu
a “Narcos”, da Netflix, sobre as histórias do narcotráfico na vizinha Colômbia,
sabe que a América do Sul, em termos de sociedade e política, precisa o quanto
antes de quantidades colossais de excelentes remédios psiquiátricos dissolvidos
nas caixas-d’água de todo o continente. Chegar a ser surreal! “Me belisca
porque ‘num tô’ acreditando...”, seria essa a célebre frase. Tanto que se
Gabriel Garcia Marquez estivesse vivo, seria solicitada a devolução do Nobel de
Literatura: não passa de um hábil plagiador.
Troças à parte,
formar uma “frente ampla” significa que as instituições morreram. Como diria
João Nogueira, “... rimar açúcar com sal...” para ‘fazer frente’ contra um
poder carregado de gestos inconvenientes significa que o legislativo já não
coíbe as inconveniências do executivo, e o judiciário já não breca as
‘porra-louquices’ dos dois primeiros. O resto é fome, prisão e ‘bas-fond’ de
altíssimo quilate.
É bom quem for
de esquerda ficar ‘piano’: o que anda rolando por lá começa a se aproximar de
uma ignomínia de cair o queixo. Governo popular? Com 71% de abstenção a ponto
de analistas internacionais não reconhecerem o pleito desse último
final-de-semana? Hmm.. barbas de molho.
A não-observância
de convenções sociais consagradas só produzem um único resultado: a anomia.
Agravados pela impunidade, vários países da América do Sul são “craques” em dinamizar
a não-observação dessas convenções e o resto da história é essa que está aí.
Criativo
‘pacas’, aliás...
É lugar comum
repetir o que Walter Benjamin costumava a avisar: essa não é a exceção, mas a
regra. Os ‘períodos de exceção’ (golpes, regimes e “impeachments”, como no
Brasil) não são, necessariamente, ‘a exceção’, mas a regra. Imaginem: em nosso
país, de 25 em 25 anos, rola um ‘golpezinho’, um ‘impeachmentzinho’, sinal
claro de que a elite faz cada cagada e depois vem com uns remendos para
consertar a merda toda que é de doer no espírito.
Aí, dana a fazer
“frente ampla” para segurar a bosta. Comum num lugar onde a ditadura militar
não acabou: sua base material está todinha aí, tanto que o primeiro presidente
da “redemocratização” brasileira era, nada mais, nada menos, o rei da Arena.
A anomia ganhou
relevos nesse início de século XXI que nem Durkheim, muito menos Dahrendorf,
poderiam imaginar. A anomia não é mais somente sobre a não-observância sistêmica
para o cumprimento de regramentos, regulações ou convenções (uma não
observância que é o coração da impunidade): nos dias de hoje, é resultado de
desvios-de-função comprometedores oriundos do atendimento unilateral de um
interesse.
O que vale é
“... o que eu quero...” e que cada um se encarregue de lidar com os efeitos
para lá de nocivos das interferências dela decorrentes.
É um ótimo
início de civilização...
Mas não se
preocupem: sempre haverá uma “frente ampla para o combate sabe-se-lá-do-quê..”
para nos divertir e entreter. Tem um ótimo efeito de mídia e ajuda a arrebanhar
o ‘espírito cívico’ enquanto tudo continua como o de sempre. É por essas e
outras que essa Mercearia pensa seriamente em lançar uma “frente ampla para
fechar no azul”, ou algo similar: na esperança de encontrar inumeráveis adesões
e realizar boas alianças.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e
traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO
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