Thursday, May 31, 2018

O SILÊNCIO DA GASOLINA (por Marcelo Rayel Correggiari)



Pessoas numa praça domingo à tarde. A amedrontadora manifestação de ‘gate keepers’ em redes sociais. Um hino nacional envolto nas cores amarela e verde.
O sistema da técnica que engole reputações: sob o nobre motivo de um país mais justo e menos corrupto, o discurso se refez pelos desejos obscuros de força e potência para as soluções de um caos antevisto e avisado.
A democracia se resumiu a bater panelas, cantar hinos em praças e apertar teclas de urnas eletrônicas. Na perfeita impotência diante de gigantes bem maiores, a raiva nas formas de uma arregimentação política com base no “contra o humano” ganha seus primeiros contornos.
A anomia no século XXI apresenta seu primeiro desafio: tornou-se uma bomba-relógio cujo desarme perpassa pela completa incompetência em descontinuar o inumano. Diante desse fracasso, esse fracasso pessoal e social, rangem-se os dentes e rosnam-se vídeos em mensageiros instantâneos.
Desamor e desunião: as boas pessoas, pela técnica, matam. Cada um permanece a vigiar ‘o seu’, filas, angústia, agonia. Em nome de dias melhores, a ideia de que a força coletiva precede o lastro do conhecimento e do pensamento. No momento de crise, o sumiço do combustível nos mostra o quanto somos incapazes na distância da sabedoria.
Nossa incapacidade completa, íntegra, de produzir qualquer coisa que desmantele esse inumano. Resumidos os gestos: camisas de seleção, bandeirinhas chacoalhando, buzinas, carros de som de centrais sindicais seguidos pelos esmagadores de panelas.
A ausência da prudência, a espera, o aguardo do devir que bem revela que só haverá muito erro, de quem for, sem a voga de um pensamento na contemplação de um horizonte.
O combustível inexiste. Na esperança de um encerramento de ciclo, uma quinzena em que um país inteiro foi posto na leseira de um feriado, de férias em algum ponto remoto e banhado pelo mar.
A deliciosa indolência das 15 horas: acabaram-se a pressa, a urgência dos relógios, os rigores da agenda. Caminha-se como se o trabalho perdesse peso, as crianças indo e voltando de suas escolas, o passeio dos pequenos com mais descobertas. A surpresa de reparar, finalmente, nas flores dos canteiros, nos latidos ao portão, nos buracos da calçada, na feiura das fachadas, na quantidade excessiva de fios nos postes.
Vias vazias. A cidade é a prova maior de uma falência: sem qualquer serventia quando vocacionada à aglomeração desmedida e impensada. Esses bairros, esses bairros interioranos. Esses bairros vazios com gente dentro. O combustível traz a desordem da perturbação. Quando se cala, o préstimo da boa vida pelo desarme dos espíritos.
Pelas ruas, à noite, lugares para estacionar, restaurantes com o número certo de fregueses, lanches incompletos pela falta da alface, o forte cheiro de esgoto que se ergue dos canais. Passo a passo, a primeira parada com a água-doce de canela, a segunda com a cerveja mais gelada do que nunca, tempo suficiente para a conversa com amigos, o compartilhamento com o testemunhado ao longo do dia.
Houve temperança: dentro de um ritmo natural, ou aquele que deveria ser sempre, o conteúdo das falas descreve muito mais detalhes apreendidos, bem mais do que aqueles não revelados pelo silêncio da gasolina.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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