À Sombra de Duas Mulheres. Poderoso título que Philippe Garrel chama para o seu penúltimo filme. Poderoso pois podia bem ser todo o seu cinema que se comprime ante esta premissa, ou antes, um dos seus problemas estéticos: de que é feita a sombra que emana da figura das mulheres e atinge em cheio o corpo e psique masculinas? Neste seu filme está em causa esse afrontamento, expresso no rosto inexpressivo e corpo incapaz de abraçar e mostrar amor, de Stanislas Merhar. Pierre é a figura típica do amante garreliano, num desespero surdo pós-nouvelle vague e que está sempre preso nessa sombra. Sombra que tal como com as “suas” mulheres são duas. De um lado, a companheira de há anos, com quem faz filmes e vive uma vida no limiar da pobreza, e do outro lado, a amante, jovem estagiária numa produtora de cinema, estudante de doutoramento. Mas essas mulheres são os desdobramentos do problema da sombra. É a sombra feminina como o espaço da “influência sobre”, como as sereias que cantam aos marinheiros de Ulisses, mas também a sombra como o porto de abrigo contra uma intensa luz do real.
ENTREVISTA COM PHILLIPE GARREL
por Sabrina D. Marques para
O amor é a coisa mais importante da vida?
Sim, sem dúvida. É o mais importante, mais importante do que a
arte.
Apelida o seu próprio cinema de “Cinéma d’Amitié”, para descrever
o método que usa de trabalhar com a sua família, primeiro o seu pai, Maurice, e
depois o seu filho, Louis. O que é tão particular neste método?
Nunca tive aulas nem de cinema nem de teatro, aprendi tudo com o
meu pai [Maurice Garrel] que, apesar de ser um grande actor, no pós-guerra era
ainda pouquíssimo conhecido no seu meio. Desde muito pequeno, aprendi imenso ao
observá-lo, fosse em gravações para filmes, para a televisão ou em peças de
teatro. Tive desde cedo ideias claras acerca do que queria fazer e por isso
comecei a filmar muito novo. Mas depois não fui quem formou o Louis, o meu
filho, como actor: foi o Bertolucci, com quem ele fez um filme antes de
trabalhar comigo. Depois, trabalhei sempre com o Louis, assim como sempre
trabalhei com o meu pai, inclusivé na sua velhice. Trata-se de uma espécie de
movimento entre gerações, já que passei de fazer filmes com o meu pai para
fazer com o meu pai e com o Louis e, quando o meu pai morreu, para os fazer
apenas com o Louis. Há como que um ciclo de tempo que se movimenta através do
meu cinema. Este ‘‘método’’ vem do teatro, vem de Charles Dullin, sabe quem é?
Não.
É um grande actor francês já morto há muito. Se vivesse hoje
seria bem mais velho do que Manoel de Oliveira [risos]. Era um dos mestres de
um grande movimento no teatro francês, o Cartel (des Quatre), juntamente com
Louis Juvet e Georges Pitoeff, encenadores, e Gaston Baty, marionetista. O
Cartel era um grupo tão forte como o Actors Studio do Strasberg. Como o meu pai
foi aluno de Charles Dullin, é daí que eu venho. Além da relação prévia também
como professor, a minha família mantinha relações próximas de amizade com
Gaston Baty, que conheci desde sempre. Esta tradição ou, se quisermos, este
método, vem do teatro de arte do pré-guerra e prolonga-se no pós-guerra. O meu
cinema é herdeiro disto mas, na minha juventude, quem me marcou particularmente
foi Godard. De facto, é como se eu próprio tivesse sido o fruto de um choque
entre gerações, entre o Cartel e a Nouvelle Vague. Um encontro entre o meu
tempo e o dos meus ‘’avós’’, os mestres do método francês e da representação
clássica. Temos de perceber que os filmes franceses são muito diferentes dos
filmes americanos. Seja nos planos, seja nos custos: um filme francês custa
muito menos do que um filme americano. Seja ainda no método: é completamente
diferente o método de representação clássico francês do método de Stanislavski
em Hollywood. Ou seja na própria forma de se fazer o filme: com a Nouvelle
Vague chega o hábito de filmar com uma rapidez muito distinta. Mas os filmes
são igualmente fortes: um À bout de souffle (O Acossado, 1959) de Godard é tão
forte como um Splendor in the Grass (Esplendor na Relva, 1961) de Elia Kazan,
mas foi produzido de forma completamente diferente, com meios muito mais
reduzidos. E isto interessava-me imenso: como o cinema francês ou o de qualquer
outro país da Europa podia competir com o cinema americano com dez vezes menos
meios mas dez vezes mais rapidamente. Era uma forma completamente diferente de
fazer cinema. Esta distinção está na própria génese: o cinema que foi inventado
por Louis Lumière é o cinema francês e o cinema inventado por Thomas Edison é o
cinema de Hollywood. No fundo, são duas invenções exactamente da mesma coisa
que acontecem em simultâneo. A câmara, a película, tudo aconteceu tal e qual,
só que aqui dizemos que foi Lumière quem inventou o cinema e em Hollywood dizem
que foi Edison. Há uma dicotomia essencial entre os métodos, há ‘‘o cinema
segundo Edison’’ e há ‘‘o cinema segundo Lumière’’. Mas creio que o ‘‘cinema
segundo Edison’’ é muito mais pujante, muito mais forte. Quando Louis Lumière
esteve nos Estados Unidos, travou uma disputa com a Companhia Edison mas, tendo
sido alvo de um processo, foi afastado do meio e retornou a França. De facto,
este combate, que existe desde a invenção do cinema, é bastante interessante e
faz parte tanto da história do cinema americano como da do cinema francês.
A propósito disso, lia esta manhã no livro de Luc Moullet sobre
Cecil B. DeMille que, nos últimos dias da sua vida, o realizador estava
obcecado com a ideia de fazer o filme mais caro de todos os tempos. O que, no
fundo, espelha essa relação íntima entre dinheiro e qualidade que atravessa a
produção de cinema americana – até hoje. De facto, DeMille achava que o seu
filme mais caro seria necessariamente o seu melhor.
Sem dúvida. Isso acontece porque lá o cinema é uma indústria,
tão lógica como a indústria dos automóveis ou das máquinas de lavar. São
produtos que implicam gastos volumosos mas que prevêem um resultado: serem
distribuídos pelos quatro cantos do globo. O que lhes traz muito mais dinheiro
do que custaram. Godard dizia que o cinema francês era como fogo de artifício –
não faz dinheiro mas faz despesa. A forma como produzo os meus filmes é
forçosamente o reflexo disto tudo, do encontro entre a minha geração com as
quatro gerações de cinema que me precederam (antes de mim, Godard, antes
Renoir, antes os mudos e antes, Lumière).
Numa altura em que o cinema francês era tão diferente, os
primeiros seus filmes foram revolucionários de uma forma muda, minimal. Como
olha para esses seus filmes tão experimentais à luz do seu tão distinto
trabalho de hoje?
Já não gosto dos filmes dessa minha primeira fase.
Porquê?
Não sei… Já não me interessam. A minha segunda fase é que é o
meu trabalho, que se inicia no dia em que comecei a escrever guiões. Nessa
altura (na fase avant-garde), não havia sequer argumento. São filmes que nem
como arte de improvisação em cinema são interessantes. Há, sem dúvida, uma
outra força que se põe em curso através de um guião, à qual é impossível aceder
quando se filma em improviso. Diria que, através do improviso, é fácil criar-se
cenas extremamente belas mas é dificílimo fazer-se um filme inteiro em que
todas as partes partilhem igualmente da mesma substância agregadora. A minha
investigação já não acontece em lugares de encenação improvisada, não me
interessa desenvolver as formas em que não vejo senão defeitos. Mas acho que,
quando volto a ver os filmes da minha segunda fase, é como se me encontrasse já
a trabalhar no meu próximo filme. São duas fases muito distintas, com modelos
de produção muito distintos. De facto, os meus primeiros filmes foram
inteiramente produzidos por mim mesmo, sem produtor. E depois, tive um
produtor, e depois outro, e outro, etc. O que muda completamente as coisas:
realizar e produzir em simultâneo é fazer o trabalho de dois. Hoje em dia, porque
não trabalho senão na realização, tenho a impressão de estar livre para
consagrar a totalidade do meu tempo à mise en scène, o que é bastante mais
agradável do que estar atarefado a procurar dinheiro.
Mas não tinha mais liberdade ao início?
A mesma. Uma vez que faço filmes que custam pouco, mesmo por
comparação ao restante panorama do cinema francês, isto deixa-me tranquilo. E
porque me recuso sempre a cortar e a mudar os meus filmes, digo de antemão ao
produtor que o meu método é ser totalmente livre. Logo, em termos de liberdade
não mudou grande coisa. O que mudou foi que passei a trabalhar com gente que já
pode ter um salário, o que me permite trabalhar com quem eu quero. Aos vinte
anos podemos fazer um filme sem orçamento, mas isso só resulta quando se é
assim tão novo. Se queremos implicar gente com 28, 30 anos que já tem filhos,
vive junto e paga casa, não lhes podemos pedir que venham trabalhar por nada. É
impossível, as pessoas têm que comer, um salário é indispensável. A certa altura
disse para mim mesmo que não trabalharia mais sem produtor e, bom, isso
resultou até hoje.
Parece-me que o seu cinema é um dos poucos que insistentemente
aborda o amor como uma questão política, como uma base de construção da
sociedade. Concorda com essa visão?
Sim, absolutamente. O amor não só é a base da construção da
sociedade como é a sua matriz. Lembro-me de Godard, que sempre falou do
trabalho e do amor como as bases dialécticas da sociedade, sendo o próprio amor
um trabalho. Em França, movimentos como os situacionistas ou os surrealistas
denunciaram exactamente a combustão do amor pela nossa sociedade, que o destrói
transformando-o em mercadoria. Em suma, a razão profunda da vida é o amor mas
chegamos a uma sociedade tão inteiramente mercantil que nos fazem crer que tudo
o que são as vias do mercado são as vias do amor. Qualquer enunciação parece
existir sempre em relação a este facto – há uma exploração da questão amorosa,
por via de um qualquer lucro ulterior.
Mesmo sendo filmes sobre ligações românticas, opta por não
mostrar a relação sexual. A intimidade do casal parece acontecer quando
partilham o sono, como se assim se falasse de uma ligação entre o amor e a
morte – que me parece particularmente evidente em La frontière de l’aube (A
Fronteira do Amanhecer, 2008).
Sim, nesse muito particularmente. O facto de nunca mostrar a
sexualidade é uma regra expressa. Sempre julguei que era um falso progresso
esse que vê uma vitória na história dos seres humanos cada vez mais despidos,
cada vez mais explícitos, cada vez mais sexuais no grande ecrã. Sempre encarei
isso como um falso combate, um absurdo falsamente revolucionário. Julgar
revolucionário mostrar uma mulher numa determinada posição é somente estúpido.
Filmar cenas sexuais explícitas jamais me interessará, como se já não fizesse
parte do meu âmbito. Sinto que a minha profissão é outra.
A propósito dos seus filmes, Gilles Deleuze escreveu acerca da
”constituição dos corpos”. Reconhece o seu cinema nesse movimento que parte da
abstracção lírica até à celebração do corpo, do gesto e das personagens?
Francamente, nunca percebi isso. A história da arte é mais
antiga do que a filosofia e do que a crítica. Nunca percebi o que Deleuze quer
dizer ao falar da constituição dos corpos – muito menos em relação ao meu
cinema. Atenção, não é por não perceber que quero com isso dizer que é
disparatado. A verdade é que um artista faz algo porque lhe é instintivo, põe
em prática as coisas como as deseja e está feito. Não passa por uma teoria que
filtre esse seu fazer. E as teorias que daí saem, os próprios artistas não as
percebem.
Em Jalousie (Ciúme, 2013) voltou à sua bela e distintiva estética
a preto-e-branco. O que nos pode contar sobre esta sua forte relação com a
película a preto-e-branco?
Foi Henri Langlois, o director da Cinemateca Francesa… como, aliás,
o João Bénard da Costa – ele morreu não há muito tempo, não foi?
Uns cinco anos.
Era um grande homem, gostava muito dele. Dizia então, foi o
Henri Langlois, de quem eu era protegido, quem me mostrou a Cinemateca e me
disse que era preciso nunca abandonar o preto-e-branco. Há hoje quem diga que o
filme a preto-e-branco vai extinguir-se um dia, mas é impossível que desapareça
porque o cinema foi inventado a preto-e-branco. Não podemos abandonar a origem,
existirá para sempre. É por isso que há cada vez mais gente a voltar a filmar
em película a preto-e-branco, que continua a ser fabricada e continua a ser
revelada, e que existe hoje exactamente no mesmo formato que à hora da sua
invenção – os Lumière também filmavam em 35mm. O filme é o mesmo e como sempre
gostei de filmar a preto-e-branco, três em cada quatro dos meus filmes são
assim. Também filmo a cores, mas adoro a relação do preto-e-branco com o
imaginário. Tudo o que é preciso ao detalhe mudar para que os tons combinem
numa determinada cena a cores, numa cena a preto-e-branco fica simplesmente
perfeito, nada há a mudar, não há dilemas de bom ou mau gosto. Adoro o
preto-e-branco por isso, sinto-o como mais imediato, mais fácil, mais próximo
de mim.
Está a trabalhar num novo filme, L’Ombre des Femmes (A Sombra das
Mulheres, 2015). O que procura ainda no cinema?
Procurava uma reflexão filosófica sobre a relação entre a
sexualidade escondida dos homens e a sexualidade escondida das mulheres.
Contrariamente ao que, mesmo hoje, se tende a julgar, não há qualquer
simplicidade no plano da sexualidade feminina: uma mulher é tão complexa como
um homem, mas de formas completamente diferentes. Julgo que falta ainda à
perplexidade dos homens compreender o que se passa sexualmente com as mulheres
– e era disso que eu queria falar. O próprio Freud, responsável pela descoberta
e formulação de toda uma teoria do inconsciente, no final da sua vida assumiu a
única coisa que lhe ficou por descobrir: afinal, o que quer uma mulher?
À SOMBRA DE DUAS MULHERES
(L' Ombre des Femmes, 2015, 73 minutos, PB)
Direção
Phillipe Garrel
Roteiro
Jean-Claude Carrière
Elenco
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