Thursday, September 24, 2015

JE SUIS O TOURO (estreia espetacular de Ivan Lessa no Jornal da Tarde, 28 Setembro 1986)




Diante de óbvia e arrogante excelência, sempre tive um único impulso natural: pegar distância, mirar, desembestar em direção da bruta e tacar-lhe uma cabeçada firme. Esta minha propensão tornou difícil, e traumatizante para os mais próximos, uma idazinha ao Louvre, Prado ou Vaticano. Mais terceiros-mundano que mundista, simpatizo com o boliviano de canivete na Mona Lisa, o paraguaio tocando bala na Pietá. A qualidade superior não me impressiona: irrita. Com a espalhafatosa chegada do Outono a Londres (3 e 20 da manhã; 20 de Setembro. Wham. Que foi? Mais uma explosão lá em Paris? Não. Todas as folhas da cidade caindo ao mesmo tempo), 0lho em torno e começo a pegar distância. Outro touro me pressente e escavaaca com suas patas as famosas areias ensanguentadas de Piccadilly.


Manie de Picasso com touro. Touro, mulher e pouca vergonha. Tá lá o corpo estendido no chão. Exposição de seus cadernos na Real Academia. Picasso meio São Paulo: não pára nunca. Nem acaba. Nome da exposição: Je Suis le Cahier. Parece uma lição de francês dando errado. 45 cadernos de rascunho, de "anotações". Como diziam os cubistas: acho tudo isso muito quadrado. Se é para faturar, tudo bem, um abraço na família, que patrocina, "caixinha, obrigado" (os cadernos estão dentro das caixinhas, não dá para testá-los, lato senso). Se é para mostrar semente de gênio ou alma nua, sifu em lá maior. O gostoso do -- posso lhe chamar de Je Suis? -- taotá: evento, é o ar da informalidade, o traje passeio: feito o take de Charlie Parker que não virou matriz, o bate-bola antes do apito inicial. Há muito vidro, muita proteção, muito refletor. Quase um Aeroporto Charles de Gaulle.


Depois que vocês deram o Jabuti de Ouro para a Glenda Jackson por seu desempenho em O Diário do Tucano (uns bichos assim), ela ficou impossível. Trincou uma rosa nos dentes e só vai de castanhola. Está no papel título de A Casa de Bernarda Alba, do Garcia Lorca. Quer dizer: faz a casa e não a mãe das cinco mocinhas. Ela tem o tal ar de autoridade que me põe a bufar. Parece-me mais indicada a disputar o amor de Tarcísio Meira (ainda tem?) entre 8 e 9 da noite em televisão brasileira do que casar bem a filha em palco de Hammersmith. Enfim, Joan Plowright -- sra. Dona Lorde Olivier, na vida real -- como Poncia, a criada, varre ela da casa, do palco, do bairro, da cidade. Direção de Nuria Sabiá. Ou Espert. Por aí.


Londres setembrina mandando todo mundo para dentro de casa. Ah, os prazeres da televisão inglesa, eles tem um certo pudor de falar nisso. A televisão é um engenho de segunda importância ainda em fase experimental. Como disse o Noel deles, o Coward: televisão a gente aparece, televisão a gente não vê. Como sou estrangeiro, mostro logo os documentos. Eu vejo. Vejo até que um pouco demais. Vejam vocês a semana que começou no dia 15. Está aqui anotado. O ciclo de tebas, do Sófocles, na BBC2 em três noites alternadas. Os Possessos, registro do espetáculo, já legendário, dirigido pelo itinerante Iuri Iublimov. True West, do Sam Shepard. Édipo em Colono, versão Gospel. Isso em termos de teatro. Que nunca pega bem na tevê. Falta aquela sensação de se respirar o mesmo ar que os atores. (Pensando bem, qual a vantagem de respirar o mesmo ar que a Glenda Jackson respira?). Falta a chatice de fazer fila, pegar condução, derramar o copo de vinho no intervalo, conter a tosse, fingir que não cochilou. Teatro tem que ser chato. Essa zorração toda do Iublimov, da nova tradução do Sófocles feita por Don Taylor. Odeio "Sófocles, nosso contemporâneo", Édipo de terninho branco, coro de motoclicleta, Jocasta num trapézio. Isso é coisa de polonês. Os gregos antigos eram supersticiosos e não entendiam nada de carpintaria teatral. Volta e meia consultavam os deuses. Um inferno, o Olimpo, ninguém conseguia dormir. Respeitemos os gregos antigos já que os modernos usam óculos escuros em buate.


Num ponto, estou com os ingleses: a televisão, mesmo a melhor possível, barateia as coisas. O equivalente às minhas famosas cabeçadas. O que não a impede de ser o melhor entretenimento. Só perde pra livro. E livro escrito por inglesa afeita a crime hediondo: P. D. James, Ruth Rendell. Milan Kundera? Não freqüento esse terreiro. Não folheio nem desfolheio fenecidas margaridas francesas, tipo Duras ou Yourcenar. 

Rumo a Outubro, vou levando. Estamos aqui e não aí. Manhã, onze da matina, indo pro pub, sou mais um boizão que touro. Quase que escuto a voz: "Êéé, boi", um boi chamado Caxambu.

               



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