Acompanho a carreira de Paul Auster há já uns bons anos e gostei demais de "Sunset Park", seu romance mais recente, publicado em 2012.
É um livro absolutamente fascinante, onde quatro jovens na faixa de trinta anos de idade decidem ocupar ilegalmente um imóvel vazio em Sunset Park, bairro de novos imigrantes do Brooklyn.
Curiosamente, os quatro tem um background de classe média, tiveram educação artística, possuem algum gabarito intelectual, mas não tem dinheiro para pagar nem mesmo os baixos aluguéis da região.
Tudo se passa na crise americana de 2008, quando o crédito imobiliário quebrou, provocando uma hecatombe econômica que levou a economia americana ao colapso, e só agora começa dar sinais de recuperação efetiva.
Desnecessário dizer que as ocupações desses imóveis abandonados no Brooklyn fazem alusão direta às ocupações de Wall Street que aconteceram na mesma ocasião.
O personagem principal de "Sunset Park" é Miles Heller, que, ao se apaixonar por uma adolescente chamada Pilar, vê a luz no fim do túnel depois de anos de isolamento decorrentes de um trágico acidente pelo qual se sente culpado.
Só que, infelizmente, tudo ao redor de Miles está tomado pela melancolia e pelo abandono, tornando difícílimo para ele conseguir sustentar seu otimismo e sua fé no futuro em meio a tanta decadênciao e tanto desalento.
"Sunset Park" impressiona por trabalhar de forma tão intensa contrapontos entre vida e morte, obsolência e erotismo, magia e desalento, amor e abandono, luz e escuridão.
Sempre com a delicadeza e a densidade existencial que estamos habituados a encontrar desde sempre na melhor prosa produzida por Paul Auster.
Um romance magnífico, talvez o melhor de todos os que já escreveu.
Gostei tanto de "Sunset Park" que confesso que fiquei meio desanimado quando a Companhia das Letras publicou, nos anos seguintes, uma coleção de poemas de Auster e um segundo volume de suas memórias chamado "Diário de Inverno".
Comprei os dois, como sempre faço com os lançamentos de Auster, mas coloquei-os direto na estante, sem ler.
A sensação que me veio na ocasião era de que Auster tinha voado alto demais em "Sunset Park", e qualquer outro texto de caráter mais trivial vindo dele logo a seguir seria inevitavelmente decepcionante.
Mas eu, felizmente, estava errado.
Em "Diário do Inverno", lançado em 2014, que só agora tomei coragem e decidi ler, Paul Auster fala consigo mesmo num tom extremamente confessional, como quem conversa com um velho amigo, mas consegue passar ao largo de todos os clichês de autoanálise comuns a livros assim.
Auster contempla seu passado do alto de seus 64 anos de idade -- segundo ele próprio, o Inverno de sua vida -- e põe-se a escrever um livro autobiográfico sobre todas as estações do ano que precederam esse Inverno, com uma abordagem sublime e delicada, de uma lucidez aguda que acaba sendo emocionante.
"Diário de Inverno" possui 3 blocos bem distintos.
O primeiro fala das mais de 20 casas em que ele viveu ao longo de sua vida, desde pequeno, e do papel distinto que cada uma delas teve em sua vida, cada uma o levando a tomar um rumo distinto num determinado momento de sua vida.
Essa obsessão por casas permeia toda a obra de Paul Auster, é o tema principal de "Sunset Park", mas aqui ficamos sabendo detalhadamente porque essa busca por um abrigo é tão vital para Paul Auster. Se bem que quem leu "O Inventor da Solidão" sabe o porque.
Já o segundo e o terceiro blocos de "Diário de INverno" tratam das mulheres que mais marcaram sua vida: sua mãe e sua mulher Siri, com quem vive há mais de 30 anos.
Em relação a sua mãe, ele praticamente reconta a mesma história de seu primeiro livro de memórias, "O Inventor da Solidão", em que ele mergulha fundo na maneira de ver o mundo de seu pai, com quem tinha uma relação extremamente turbulenta. Aqui, no entanto, a história é contada pela ótica de sua mãe, e ganha contornos delicados, generosos e extremamente carinhosos.
Em relação a Siri, fica difícil não se emocionar profundamente com o amor e a gratidão contidas nas passagens que ele dedica a ela, ainda mais depois de uma vida amorosa difícil e repleta de altos e baixos.
Foram anos difíceis para Paul Auster, sem sombra de dúvida. Se hoje ele tem seu público fiel, com certeza foi a duras penas. Não foi algo que tenha vindo fácil. Foram tantas as mudanças a que se submeteu e tantas as viagens que teve que fazer que pode-se dizer que elas poderiam preencher diversas vidas.
Claro que afirmar que ele tenha gostado de passar por tudo o que relata em "Diário de Inverno" é obviamente um exagero e até um contrassenso. Mas por outro lado é inegável que tudo o que passou ajudou muito a compor o imaginário urbano fantástico de seus livros.
O mais bacana de "Diário de Inverno" é ver um autor de romances como Paul Auster deixando sua carpintaria habitual de lado e seguindo seus instintos conduzido por uma prosa aparentemente solta, sem uma rota muito clara, que não cansa de atingir pontos de chegada surpreendentes, tanto para o autor quanto para o leitor.
"Diário de Inverno" é um auto-retrato absolutamente cativante de um autor que encontra sua alma ao descobrir qual o seu papel na vida das mulheres com quem convive desde sempre.
DIÁRIO DE INVERNO (2014)
Winter Journal (2012)
216 páginas
Autor
Paul Auster
Tradução
Paulo Henriques Britto
Lançamento
Companhia das Letras
Preço
R$ 44,00
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