Para mim nunca foi fácil lidar com pessoas de áreas mais técnicas, formais.
Estava no Rio, na bela praia de Botafogo, para uma reunião de negócios. O motivo era nobre: um livro sobre o Pelé.
Estava cheio de esperança e ao mesmo tempo apreensivo, meses já haviam se arrastado desde o primeiro papo sobre aquele patrocínio.
Fazíamos um livro de fotos e buscávamos uma grande empresa para apoiar aquele projeto real.
Para mim nunca foi fácil lidar com pessoas de áreas mais técnicas, formais. Exatamente a linha daquela equipe. Expressões em inglês também eram muito utilizadas, quase tanto quanto a nossa rica língua portuguesa. Me assombra até hoje, por exemplo, o termo work in progress, algo como "em andamento, inacabado".
O clima era tenso. Talvez pela influência da matriz americana, a negociação era sempre mediada por advogados e, ainda por cima, sempre que eu tinha alguma nova proposta de contrapartida, ela travava entre a mega empresa e o maior jogador de todos os tempos.
É, a vida não estava fácil.
Claro que eu estava ansioso, mas ao mesmo tempo estava animado, afinal os dois lados já haviam mostrado interesse no negócio.
De um lado o Pelé, do outro, a Coca-Cola.
Nesse lindo dia fui dar uma olhada na baía de Botafogo antes de ir ao escritório, caminhava lentamente e pensava em coisas boas, queria avançar rumo à assinatura do contrato.
Chegando ao moderno prédio fui retirar o crachá de visitante e avisar a minha subida à recepcionista.
Recebi a notícia de que o sistema estava fora do ar, ela poderia informar a chegada, mas eu não poderia subir, pois o crachá não abriria a porta do andar.
Já se formava uma boa fila de cariocas, que debochavam da fragilidade do sistema, e eu, tamborilando com os dedos no balcão, aguardava alguma mudança na situação.
Como nada acontecia me dirigi a uns assentos num canto do saguão e resolvi continuar a leitura do livro A Paixão de Amâncio Amaro (Agir), de André Laurentino, escolhido para me fazer companhia na viagem.
Este é um dos livros mais especiais que já li, por uma série de fatores.
Quem me indicou o André Laurentino foi o Milton Hatoum, quando o consultei sobre um bom escritor para convidar para a primeira jornada da Tarrafa Literária, evento que organizo em Santos.
Além da sugestão do Milton, lembrei que não havia reparado no livro porque bons clientes o compraram antes de eu poder conhecer a obra.
Pois eu estava na parte final do livro, que é divertido sem ser humorístico, é romântico sem ser piegas e é nordestino sem ser caricato, como numa novela global.
Enquanto aguardava o sistema voltar, eis que tenho um sinal, para mim premonitório do desfecho daquela tarde.
No meio da trama, o personagem, que era um pequeno empreendedor, havia acabado de investir todos os seus recursos e recebia uma reluzente máquina de fazer garapa quando é surpreendido com a vinda retumbante e impiedosa da...Coca-Cola!
Exatamente no mesmo dia do início do seu negócio, o refrigerante negro, gelado e borbulhante conquista os boquiabertos habitantes do lugarejo.
Era um sinal!
Depois de quase uma hora de espera o sistema volta a funcionar e eu subo confiante para a reunião. Ao ser recebido disparo com aquela voz ligeiramente aguda dos ansiosos.
Você conhece o André Laurentino? Puxa, é inacreditável, li uma passagem em que a coca e a garapa...fui interrompido educadamente com a mão no meu braço.
Vamos reler o contrato? Está work in progress.
José Luiz Tahan, 41, é livreiro e editor.
Dono da Realejo Livros e Edições em Santos, SP,
gosta de ser chamado de "livreiro",
pois acha mais específico do que
"empresário" ou "comerciante",
ainda mais porque gosta de pensar o livro
ao mesmo tempo como obra de arte e produto.
Nas horas vagas, transforma-se
no blues-shouter Big Joe Tahan.
(a ilustração acima é do Seri)
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