Wednesday, October 5, 2016

O RAY-BAN (uma crônica publicitária de Carlão Bittencourt)


"É muito difícil saber não trabalhar”
(Jorginho Guinle)


Bóris Fetcher teve várias profissões antes de se decidir por criar anúncios. Muitas. Até mesmo dono de circo. Mas era, antes de tudo, um grande redator. Na opinião de muita gente de peso, como Noé Sandino, Tom Figueiredo e Bjarn Norking, ele foi o melhor de sua geração.

Bóris era mesmo brilhante. E não só na propaganda.

Nascido na Rússia, rodou o mundo até vir morar na aprazível Vila Sonia, bairro popular na periferia de São Paulo. Essa incrível trajetória foi sua escola de vida, seu curso superior. Um P.H.D. em política de boa vizinhança, muito sereno e jogo de cintura.

Inteligente, culto, rápido no gatilho, Bóris falava várias línguas. Mas conhecia mesmo era a língua do povo, grande segredo do seu sucesso como redator. Fosse qual fosse o veículo de comunicação, ele sabia como poucos falar a língua do homem comum.

Era também um gozador. Um brincalhão nato, escondido atrás dos cabelos brancos, dos olhos azuis e dos óculos pesados. Tinha o senso de humor aguçado, sempre pronto para uma sacada rápida, de matar de rir quem estivesse presente. Bóris, porém, nem imaginava que a próxima vítima de uma piada seria ele.

Foi no começo dos anos 70, na melhor agência paulista da época, a Almap (Alcântara Machado, Periscinoto Comunicação). Um dos clientes da filial carioca recusou pela enésima vez uma campanha. Resultado: lá se foi Bóris, a toque de caixa, trabalhar uma semana no Rio de Janeiro para apagar aquela fogueira.

Na pressa da partida, viajou sem levar seus indefectíveis óculos escuros. Estava desarmado. Mas percebeu assim que desceu do avião. Alto verão, a temperatura decretava 40 graus, à sombra. O sol ardia na pele e nas retinas.

Bóris sentiu a barra: não poderia encarar o astro-rei sem um tira lombra de raça. Precisava passar numa ótica. Ou num camelô. O que visse primeiro. Deu sorte. Do lado do hotel, em Copacabana, tinha uma. Entrou na loja.

Escolhe daqui, experimenta dali, acabou levando um Ray-Ban clássico, de lentes verdes escuras e armação dourada. Só não gostou do preço: os olhos da cara. Mas fechou negócio.

Ao sair da loja era outro homem. Estava tão feliz com sua nova aquisição, que resolveu atravessar a rua e dar uma volta pelo calçadão da orla.

Na esquina, parou junto ao meio-fio, na faixa de pedestres. Ficou esperando o sinal fechar. Nisso, veio passando o lotação. Bóris nem notou o braço se esticando para fora de uma das janelas do coletivo. Vapt, vupt!

Num passe de mágica, o lanceiro puxou os óculos sem sequer tocar em seu rosto. Com mão de gato, delicadamente. Uma obra de arte da rapinagem urbana.

Atônito junto à beira da calçada, e meio tonto com a luz do sol, Bóris só se deu conta do acontecido, quando viu o ônibus indo embora com seu ex-óculos escuros novinho.

Sorrindo, com o Ray-Ban novinho na cara, tronco para fora da janela, o malandro mandou a gozação, no mais legítimo sotaque carioca:

“Abre o olho, paulisssssta!!!”



Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.


1 comment:

  1. Grande lembrança, belo e divertido texto, Carlão! Deu saudade do Boris, que na minha lista de ramais da Almap era Boris/Deilon.

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