Saturday, July 4, 2015

POEMINHA DE DOMINGO (por Márcio Calafiori)


Velha com Cachorro

Lá em cima o animal arranha os tacos, 
como o diabo em O Exorcista;
o dia inteiro o dia todo e a noite sonâmbula 
pra lá e pra cá o dia todo
a velha que é a dona deixa cair tudo, 
coisas que pesam toneladas:
bumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbum
Quando o telefone toca, 
ela corre do quarto para a sala 
— como um cavalo, o cachorro pula da cama [dormem juntos]; 
ele quer ser o primeiro a chegar: 
trimtritrimtritrimtrimtrimauauauauauauuauauauauauauauatrimtrimtrimtrim
Como pode essa senhora ter voz tão potente? 
Ela se enraivece: “Cala a boca, Cauã!”; 
“pelo amor de Deus, caaaaaaaala a boca, Cauã, eu quero falar no telefone!” auauiiiiiiiauauauaiiiiiiiiiiuauauauauauiiiiiiauauauuauaiiiiuauuaiiiiauu
O latido esganiçado é o de um cão mimado. 
Quero rachá-lo ao meio com uma boa paulada;
imagino um taco de beisebol,
 igual àquele que o português bruto do boteco
amassou os dedos do bêbado chato:
auauauiiiiiiiiiiiiuauauauauaiiiiiiiiiauauauauauauauaiiiiiiiiiauauauuauauiii 
Aconselhada por uma parente sensata, 
a senhora parou de dar comida na boca do cachorro;
era uma garfada pra ela e outra pra ele, 
o mesmo prato e o mesmo talher. 
[No sítio da minha avó, no caminho pra Jaguarão,
os cães e os gatos eram proibidos de entrar em casa. 
O mundo era assim: bicho era bicho; gente era gente.] 
Cauã agora faz a refeição primeiro, 
e a velha logo depois; 
mas atormentado pelo antigo hábito ele não para: uiiiiiiauaauauauauauaiiauauiiiiiiiiiiauauauuaiiiiii
“Cala a boca, Cauã, você já comeu! 
Agora é a minha vez! Tenha paciência!
Cala a boca, Cauã, cala a boca! 
Deixa eu almoçar em paz? 
Cala a boca, Cauã!”
Todos os dias a dupla do barulho: bumbumbumbumbumauauauaiiiiiiuauiiiiiuuuu
“Cala a boca, Cauã!” auauiiiiauauiiiiiauuuuuauuuuiiiiiiiiauuauauauauuuiiiiiiiiiii
No entanto, a velha e o cachorro têm o direito sagrado de viver.

Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Márcio é um bom amigo de 
LEVA UM CASAQUINHO



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