Buenas!
Era uma vez, longe em nossa memória, um lugar lá para
as bandas de Santana do Livramento, nas bordas da fronteira do
Rio Grande do Sul com o Uruguai. Uma terra de gente brava, dura, empedernida. Gente acostumada a lutar. Desde que o mundo
é mundo.
Naquela parte esquecida do Brasil, a lei sempre foi a do mais
forte. Portanto, aquele povo já nasceu peleando. E peleando seguiu
pela vida a fora. Sem descanso. Sem trégua. Sem paz.
De um lado, os castelhanos. Do outro, o governo imperial.
Nesse fogo cruzado ninguém tinha vida fácil. Pelo contrário.
Pergunte ao pó dos milhares e milhares de colonos e de imigrantes que escolheram aquele chão para viver. E morrer.
O tempo não era melhor. O tempo e o vento. O primeiro
passava demasiado lento, demasiado quieto, demasiado
angustiante. O segundo era ainda mais perverso. Não respeitava poncho, batina ou farda. Soberano do pampa, o velho minuano rasgava a tudo e a todos como a fria lâmina de uma adaga.
Dava “de talho”, como se dizia. Rápido e mortal como a implacável resvalosa, a temida arma branca castelhana que fez quase tantas viúvas quanto a guerra.
Guerra. Este foi um capítulo à parte. O capítulo de um livro escrito com sangue. De branco, de negro, de índio. Tanto foi
o sangue derramado, que algo raro, incomum, floresceu dessa
mistura de plasmas que irrigou o pampa. Aos borbotões. Desse
visgo, rubro, nasceu o gaúcho. Filho legítimo da terra, o gaúcho prescindiu de etnia. Ele foi além. Criou a própria. Por isso, tornou-se um ser à parte. Único. Vital. Sua força veio da terra, da chuva, do minuano. E da perpétua lida da vida que decidiu viver.
Mas não se deixe levar pela lenda. O gaúcho não tinha
coragem. Nada disso. O que ele não tinha era medo. De nada.
De ninguém. Nem mesmo da morte. Porque para ele, morrer
era apenas mais um rito de passagem. O ciclo final da natureza. Aquele que iria devolvê-lo às entranhas de sua mãe, a terra,
para tempos depois ser mais uma vez parido. Em forma de
gente, em forma de bicho, em forma de pampa.
Júlio Moreira Bittencourt nasceu nessa terra. Cresceu
e foi criado nesses códigos. Severos. Rígidos. Inflexíveis. Honra
e orgulho. Uma herança genética a ser seguida para sempre.
Na vida ou na morte. A heróica saga dos farrapos.
Júlio aprendeu essas lições desde guri, dentro de casa.
Seu pai, naquela época, era Chefe do Departamento de Repressão
ao Contrabando. Um cargo totalmente incompatível com os
princípios de uma pessoa de bem. Porque para exercê-lo, sem correr riscos, a prudência recomendava que o candidato fechasse os olhos ou olhasse para o outro lado. Prudência, canja de galinha e suborno. Que receita!
O velho Alfredo Machado Bittencourt, porém, fez o contrário. Primo de Pinheiro Machado, era honesto, sério, decidido. Preferiu impor o rigor da lei naquela fronteira abandonada. Para desespero
de contrabandistas de ambas as partes. E de sua própria família.
Confrontar tamanhos interesses, custou um preço alto ao velho. Em chumbo. E atentados e tocaias e ciladas. Um preço quase alto demais. Mas, ele sobreviveu. E quando achou que a hora era chegada, simplesmente mudou de emprego. Foi trabalhar em outra coisa. Nesse dia, o povo dizia que houve festa na fronteira. “Boatos, ao certo”, comentava, com uma ponta de orgulho.
A verdade é que esse exemplo, definitivo, não passou despercebido ao filho. Essa gana, que vem das tripas, marcou
o caráter do jovem Júlio. Como uma cicatriz de navalha.
E transformou-se em referência, na bússola que ele usaria por toda a vida para traçar seus caminhos. Sem se desviar da linha dos seus ancestrais. Nunca.
Foi assim quando chegou à idade de trabalhar. Aí, o sangue gaúcho mostrou sua força. O mundo é muito grande. Grande demais. O rapaz sabia disso. Encilhou o cavalo e partiu. Pegou a estrada.
Na mala, uma carta de apresentação para seu padrinho, Eduardo Barreto, então, Superintendente da Cia. Docas de Santos. Sua outra opção seria trabalhar no café. Mas Júlio preferiu ficar
ao lado do velho amigo de seu pai. Semper fidelis.
Tinha tudo para fazer uma carreira brilhante nas Docas.
Boa educação, preparo intelectual, caráter. Mas o destino interferiu. Para pior. Seu padrinho sofreu um enfarte e faleceu. E a maré virou
na beira do porto. Invejosos e desafetos, até então, desconhecidos, mostraram suas garras. Júlio passou a ser perseguido. Sistematicamente.
Os amigos de verdade sugeriram que mudasse de emprego.
Que fosse trabalhar em outra coisa. Era honesto, inteligente, tinha estudo, poderia se encaixar em outra área. Novamente, o sangue gaúcho falou mais alto. Preferiu encarar a barra. Até o fim.
Até morrer.
Júlio Bittencourt, conhecido por Gaúcho, trabalhou toda sua
vida nas docas do cais do porto de Santos. Sem reclamar. Sem titubear. Sem faltar um dia. Como seu pai teria feito. E o seu avô, antes dele. E toda sua árvore genealógica. Sem dúvida alguma,
recuar não estava no sangue daquela gente.
“Joana, desce daí! Você parece uma macaca...”.
A menina tinha apenas onze anos, quando foi aprender
corte-e-costura no atelier de Madame Escaravelli, o mais famoso
da época. Corria o ano de 1921, na plácida e tranqüila cidade
de Santos.
Era uma criança. Todas as tardes, na hora do lanche,
subia numa árvore do enorme quintal para comer pão com banana
e açúcar. Um petisco que adorava.
“Cedo, fui aprender o ofício. Precisava ajudar em casa”,
diria, tempos depois, aos netos.
Joana Pasquarelli Di Rosato teve a quem puxar. Era filha
de Casemiro, imigrante italiano da Bruscia, alfaiate de mão cheia.
Um homem conhecido pela calma e, muito especialmente,
pela elegância dos ternos que cortava.
Casemiro, casemira. Em sua família, costurar era tradição. Todas as moças seguiram o exemplo paterno. Ernestina. Rosa.
Ofélia. Anita. E, depois, Joana. Todas fizeram da costura seu honesto ganha pão. Desde pequenas.
Joana era esforçada. Tinha talento. Tratava a Singer com esmero, carinho, amor. Como se, bem no fundo do seu coração
de menina, já palpitasse uma verdade. A certeza íntima de que, através daquela máquina, conseguiria alinhavar uma vida de relativa segurança. A agulha do destino mostraria o quanto Joana estava certa.
Ela descendia de italianos, mas carregava dentro de si a velha “sabença” mineira. Afinal, Joana havia nascido em Uberaba, Minas Gerais, onde o italiano Casemiro possuía a maior alfaiataria da cidade.
Infelizmente não foram somente os imigrantes que vieram
para o Brasil. Certo dia, a terrível gripe espanhola também aportou aqui. O efeito foi devastador.
Os mortos eram tantos, que passaram a ser colocados nas ruas, a céu aberto, esperando que os carros da saúde pública passassem e os recolhessem. O comércio fechou. Os hospitais não davam conta do número de pacientes. Por fim, a economia entrou em colapso.
A casa dos Rosato também pagou a sua parcela de dor.
Em dobro. Casemiro e Dona Tereza, sua esposa, perderam dois
filhos para a peste. Perderam também a alfaiataria. Só não perderam a esperança, apesar dos tempos duros, difíceis. Decidiram mudar para Santos.
Uberaba ficou para trás. A família foi morar na cidade praiana,
no Centro, como era costume na época. Casemiro tornou a abrir uma alfaiataria. E, logo, tinha como clientes alguns dos melhores sobrenomes da elite santista.
Joana trabalhava em casa. Como as irmãs. Tinha ela catorze anos de idade quando costurou o primeiro vestido de noiva.
Um sucesso. A moça sabia o que fazia. Era interessada. Esperta. Viva. Bastava folhear as poucas revistas de que dispunha
(Burda, principalmente), soltar a imaginação e pronto.
Assim, de molde em molde, de pedalada em pedalada,
de vestido em vestido, Joana e sua velha Singer conquistaram
um bom número de freguesas. Habituais. A agulha do destino mais uma vez confirmou que ela estava certa. Como antes. Como
sempre.
“Confete, pedacinho colorido de saudade...”
O carnaval naquela época era diferente. Ainda não era modo
de vida, profissão. Nada disso. Apenas uma ingênua expressão
de alegria popular. Por isso, não havia nenhum vestígio de interesse financeiro no ar. Apenas uma deliciosa atmosfera de folia, acelerada pelo olor dos lança-perfumes, usados quase que exclusivamente para molhar as pernas das “melindrosas”.
As únicas batalhas que aconteciam no reinado de Momo
eram as “batalhas de confete”. E de serpentina. Havia também fantasias de todos os tipos. E o famoso “corso”, um desfile de
carros – as “baratinhas” – lotados de foliões.
Joana adorava aqueles três dias. Seu espírito jovem,
irrequieto, se identificava com a festa que se alastrava pela cidade.
E como seus irmãos Hanleto, Uberaba e Ítalo brincassem
o carnaval, tinha um álibi perfeito para ver os cordões.
Casemiro sabia desse gosto. Assim, todos os anos, quando
chegava aquele sábado especial, fechava a alfaiataria um pouco
mais cedo e levava as filhas para assistirem à fuzarca. Era uma
festa.
“Quanto riso, ó, quanta alegria...”
Dançando, no meio do cordão, Júlio notou a linda colombina,
na calçada. Em segundos, transformou-se num pierrô apaixonado.
Joana foi ainda mais rápida. Tinha visto bem antes, o jovem alto
e de cabelos pretos, fantasiado de pierrô. Para ela, a cena foi uma espécie de alumbramento.
Uma velha marchinha, dizia que “amor de carnaval desaparece na fumaça”. Não foi o caso deles. Para alegria geral, Júlio e Joana permaneceram juntos por muitos e muitos carnavais.
Casaram. Enfrentaram dificuldades. Seguiram em frente. Unidos. Como o confete e a fantasia. O Pierrô e a Colombina. Juntos. O apito dos navios e o matraquear da máquina de costura. Para sempre. Tocando a vida. Como podiam. Como Deus mandava.
Vieram os filhos. Elisa, primeiro. Depois, Elza. Por último, Júlio. Para perpetuar aquela história real, de amor e luta pela vida. Para selar de vez o compromisso entre o sangue dos pampas e o sangue das Geraes. Um compromisso com a resistência. E com a eternidade.
Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve todas as quartas-feiras em LEVA UM CASAQUINHO
Belo texto, Carlão! Grande abraço.
ReplyDeleteFora de série ! Texto belíssimo e muito agradável de se ler ! Parabéns Carlão !!!
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