Tuesday, November 10, 2015

OS CEM ANOS DA "METAMORFOSE" DE KAFKA

por Chico Marques


Lembro exatamente de quando li "A Metamorfose", de Franz Kafka, pela primeira vez. Eu era menino, 11 ou 12 anos. Meu pai tinha em casa vários volumes da série BUP (Biblioteca Universal Popular) da Editora Civilização Brasileira. Eram edições pequenas, de bolso, publicadas na segunda metade dos Anos 60.  Presumi que, na medida em que não estavam guardados na estante da sala, e sim dentro do armário dele -- junto com exemplares da lendária revista masculina FAIRPLAY -- deviam ser leitura para adultos. E, sendo leitura para adultos, deviam ser muito mais interessantes do que os clássicos da literatura juvenil que me empurravam para ler.

Comecei a ler os livros escondidos no armário. Li vários de Graham Greene, como "Nosso Homem en Havana" e "Um Caso Encerrado". Li também "O Velho e o Mar" de Ernest Hemingway, "A Morte de Ivan Ilitch" de Leon Tolstoi, "Contos Húngaros" de Paulo Rónai e uma coleção de "Contos Norte Americanos" que era um primor. Fiquei fascinado com eles. Guardo comigo até hoje a maioria desses livros. Uma grande sacada do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, que ajudou a popularizar o melhor da literatura mundial para toda uma geração.



(tempos depois fiquei sabendo que meu pai guardava seus livros da Civilização Brasileira no armário não para evitar de que nós lêssemos livros inadequados a nossa idade, mas com receio de que algum eventual visitante em nosso apartamento visse os livros na estante e o denunciasse com simpatizante das esquerdas naqueles anos mais bicudos de ditadura militar. Era muito comum os livros da Civilização Brasileira serem recolhidos das livrarias pela Polícia Federal na época. Meu pai, na verdade, nunca foi esquerdista, até porque tinha uma família numerosa para criar e nunca se deu ao direito de ser um idealista iconoclasta. Era admirador do Franco Montoro, era democrata cristão. Mas nunca negou fogo sempre que alguém pediu dinheiro a ele para ajudar militantes de esquerda escondidos e necessitados)


Bom, mas voltando a Franz Kafka e "A Metamorfose", lembro de devorar o livro com rapidez, bastante assustado com o pesadelo em vida de Gregor Samsa. Obviamente, fiz uma leitura bem literal e superficial do romance, como se estivesse vendo um filme de terror. Quando terminei suas pouco mais de 70 páginas, estava muito assustado, mas não sabia exatamente porquê. Fui descobrir o porquê somente quando reli "A Metamorfose" na edição das Editora Brasiliense, já dos Anos 80, na tradução primorosa de Modesto Carone, que não sessegou enquanto não deu por encerrado o projeto de sua vida de traduzir toda a obra de Kafka para o português direto do alemão. É que a maioria das traduções que existiam por aqui -- a da BUP, inclusive -- haviam sido feitas de edições americanas.

"A Metamorfose", para quem nunca leu, possui uma peculiaridade muito interessante: tem, provavelmente, o parágrafo de abertura mais impactante da Literatura Mundial do Século XX. É um verdadeiro soco no estômago. E é absolutamente irresistível. Tão envolvente que fica impossível desgrudar do livro até o final.

Como pode um texto tão gelado e desprovido de paixão como o de "A Metamorfose" ser tão envolvente a ponto de deixar o leitor em estado de choque? Está aí a magia de Franz Kafka. Aqui, o pesadelo de Gregor Samsa é narrado de forma realista. O fato dele ter-se transformado numa barata asquerosa é a dura e triste vida real sendo cuspida na cara do leitor. É uma experiência terrível ler "A Metamorfose". Mas é uma experiência inevitável também, para quem quiser conhecer o horror do Século XX. Todos os fatores que levaram a Europa à Primeira e à Segunda Guerra Mundiais estão lá, para quem quiser ler.

Franz Kafka tem algumas peculiaridades interessantes. 

Apesar ser o autor checo número um em todos os tempos e ser hoje um ícone turístico em Praga, ele nunca foi exatamente popular por lá, pois os nacionalistas checos nunca perdoaram Kafka por escrever em alemão, e não em checo. 

Por conta disso, o centenário da publicação de "A metamorfose" teve pouca repercussão na República Tcheca. Para não dar o braço a torcer, dizem que a rejeição é decorrente de sua prosa ser difícil. Então tá...

Foi em outubro de 1915 que o texto de "A Metamorfose" apareceu publicado em alemão na revista "Die Weissen Blätter" ("As folhas brancas") de Leipzig, na Alemanha. 

A primeira edição em formato de livro data de dezembro desse mesmo ano, por meio da editora alemã Kurt Wolff.

Por incrível que pareça, "A Metamorfose" só foi traduzida para o checo 14 anos depois de ter sido publicada na Alemanha.


O sucesso mundial de Franz Kafka começou não na Europa, mas nos Estados Unidos. 

Editores americanos visionários publicaram e divulgaram sua obra nos Anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Estranhamente, a imensa maioria dos europeus só foi dar atenção a ele depois do final da Guerra, e depois dos aamericanos o terem publicado. 

Após a 2º Guerra Mundial e a instauração da ditadura comunista, a obra de Kafka foi proibida, e ele foi considerado pelos comunistas um autor "reacionário" e inútil ao Sistema. 

Só em 1990, quando foi derrubado o sistema socialista, se estabeleceu a Sociedade Franz Kafka de Praga, com o objetivo de reviver a tradição cosmopolita do início do Século que tornou possível o fenômeno da literatura germânico-praguense do qual ele surgiu.


Kafka morreu de tuberculose em 1924, um mês antes de completar 41 anos. Trabalhou em uma empresa de seguros a vida inteira e deixou uma obra publicada muito curta. 

Sua obra póstuma, no entanto, é bem mais extensa. 

Pouco antes de morrer, Kafka pediu que ela fosse destruída. Por sorte, não respeitaram seu último pedido. Graças a isso, ela foi editada e hoje é saudada como literatura de primeiríssima grandeza.


Kafka dizia que “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo conversar sobre literatura”. Levou sua vocação literária às últimas inconsequências numa obra curta e espetacular, que marcou a ferro e fogo o início do Século XX.


Hoje, 100 anos depois da publicação de "A Metamorfose", tido por alguns como o primeiro grande texto de ruptura do Século XX, fica no ar a pergunta: 

Quando teremos no Século XXI alguma obra literária que consiga ser tão intensa e divisora de águas quanto "A Metamorfose" (1915) de Franz Kafka ou "Retrato de um Artista Quando Jovem" (1916) de James Joyce? 

Será que essa obra já existe, e nós ainda não conseguimos percebê-la?





A METAMORFOSE
(Brasiliense, 1984)
(Cia das Letras 1992)*

Autor
Franz Kafka

Tradução
Modesto Carone

Preço: R$ 23,00*
104 páginas*


2 comments:

  1. Eu também li A Metamorfose quando era bastante jovem. Ainda hoje guardo a primeira aflição: é pior a consciência de estar se transformando em uma barata ou a transformação definitiva e imersão completa na consciência de barata?

    ReplyDelete
  2. Eu também li A Metamorfose quando era bastante jovem. Ainda hoje guardo a primeira aflição: é pior a consciência de estar se transformando em uma barata ou a transformação definitiva e imersão completa na consciência de barata?

    ReplyDelete