Thursday, January 19, 2017

EMPENHO - O ADEUS AO GRANDE CAPITÃO (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



O ‘merceeiro’ dessa pensativa Mercearia, em crise ou apenas observando-a, sequer teve sossego para celebrar sua data natal: na manhã do mesmo dia, desapareceu um ídolo.

Ano passado, foi David Bowie. Nesse, o sociólogo e pensador polonês. Frio na Europa, pelo jeito, deve ser mortal.

Zygmunt Bauman encerrou sua passagem entre nós numa segunda-feira, dia 9, aos 91 anos. Deixou vasta e referencial obra, além de uma penca de vídeos disponíveis na internet.

Ou seja, não tem como não aprender com o Grande Mestre.

Haverá um vácuo. Há nomes que poderiam ocupar esse espaço, como o de Terry Eagleton, por exemplo, mas serão ‘outros sabores’. Nada parecido com ele.

Polonês de origem judaica, partiu para o Reino Unido em 1968, deixando uma carreira positiva para trás, em sua terra-natal. Por conta de posições diante dos conflitos árabe-israelenses que ‘fermentavam’ certa cultura antissemita na época, foi parar na Inglaterra, onde se tornou chefe do Departamento de Sociologia da Universidade de Leeds, tornando-se posteriormente professor emérito da mesma instituição.

É de Bauman a expressão “modernidade líquida”, e foi dele a melhor leitura da virada do milênio: um período em que, ao invés de vivermos as glórias e benesses da evolução, estaríamos afundados desnecessariamente nas inconsistências e incertezas de uma involução evitável.

Suas observações sobre ‘pós-modernidade’ (expressão cuja autoria, segundo alguns filósofos, teria sido dele, Bauman) foram, entre os anos 1990 e 2000, de considerável impacto dentro das áreas de estudo da Sociologia, Antropologia e Filosofia. Bauman sempre deixava claro que o aspecto de um certo ar ‘fugidio’ em torno da vida nesses novos tempos seria um contrapeso para o fim do alicerce da modernidade: o ‘materialismo instrumental’.

Contudo, para Zygmunt Bauman, nenhum dos dois cheirava bem.

Em sua obra principal e seminal, “Modernidade Líquida”, Bauman já nos avisa de uma certa ‘hospedagem de acampamento’ onde estariam lotadas todas as principais interações de cunho afetivo: um certo descaso em relação ao sentimento ‘do outro’, facilitando uma equação naturalmente complexa pelo simples ‘clique’ no botão ‘follow-unfollow’ de uma rede social. Segundo ele, não precisaria ser algum ‘gênio’ para saber que as resultantes de tal expediente seriam dolorosamente deletérias.

Numa ‘hospedagem de acampamento’, não há a necessidade de grandes discussões quanto à filosofia de gerenciamento do camping com o diretor-proprietário do espaço. Não há fundamentais exigências: um lugar limpo, com algumas tomadas por perto, banheiros limpos e água quente para o banho é tudo o que se precisa.

Essa ‘ausência de discussão’ quanto à pertinência de certas petições é o que jogou o mundo, a partir da globalização, na ‘baía das reivindicações rasas’, cenário fértil para tudo o que estamos a assistir nesse momento: tudo é etéreo, tudo é rápido, tudo pode, sem se medir o que há de se resultar da completa falta de lastro do que se decide nesse momento.

Uma ‘cultura de acampamento’, sem conforto algum, ambiente desejável para mensagens frias onde não se precisa gastar muito ‘fosfato’ para decodificá-las.

É de Bauman a relação ‘segurança e liberdade’, elementos sem os quais não se é possível a vida ser boa. Ideal em quantidade iguais, 50/50, mas onde o aumento do espaço de uma diminui o calibre da outra: quanto maior a porcentagem de segurança, menor a de liberdade; quanto maior a de liberdade, renunciar-se-á a segurança.

“Só segurança e nenhuma liberdade, é escravidão. Só liberdade e nenhuma segurança, é o caos”, dizia Bauman.


O mestre Zygmunt Bauman matou a charada um pouco antes de seu falecimento: é muito difícil, para qualquer ser humano, empenhar seu próprio futuro. A decisão de agora pode significar a perda do aproveitamento de oportunidades mais a frente porque o futuro já está empenhado pela escolha que fazemos nesse momento.

A compreensão do Mestre é generosa: realmente é muito penosa a qualquer ser humano uma escolha e/ou decisão cujo o comprometimento do futuro é certo. É uma equação um tanto macabra, onde se faz necessário antever potenciais ameaças e recuos que precisam entrar nos cálculos para uma boa condução das coisas.

Dá trabalho! E, talvez, esse é o ponto da grande crítica de Zygmunt Bauman: as pessoas não querem mais empenhar seus futuros a partir de uma escolha do presente e, o que é pior, dotadas hoje de uma certa ‘preguiça’ em fazer esses cálculos. Não há mais sequer o desejo de se sentar com a outra parte para estabelecer termos de um acordo, de um consenso, que permita exatamente o equilíbrio entre segurança e liberdade.

Sua principal queixa repousava numa espécie de covardia bastante comum e encontrada na quase totalidade das pessoas hoje em dia, onde a escolha desse ‘agora’ já vem desprovida de qualquer compromisso futuro: a ausência de compromisso nesse ‘agora’ é a garantia de que o futuro não será empenhado com absolutamente nada, mesmo que as resultantes desse gesto aniquilem o bem-estar e, consequentemente, a própria vida.

Para tal, a ‘rede’, as associações ‘em rede’, ao invés de interações comunitárias. Na rede, amizades podem se desenrolar por interesse e servidão, permitindo serem (des)(re)ligadas a qualquer momento de acordo com as necessidades formuladas por uma contingência. Bem diferente da ‘comunidade’, onde a convivência é ‘ao vivo’ e ‘em cores’, corpo a corpo, cara a cara, a lida com ‘movimentos de alma’ e, logo, com choque de interesses.

Em comunidade, o desligamento pressupõe certo ‘fôlego dissertativo’: é preciso embasar, justificar, explicar o porquê de uma separação, de um corte, de um afastamento. Faz-se iminente ‘estar com o outro’ para o esclarecimento de como será daquele ponto em diante. Algo impensável nesses tempos de ‘rede social’ em que, por exemplo, um relacionamento amoroso com alguma frequência é brutalmente interrompido por intermédio de 150 caracteres em um mensageiro instantâneo.

Pedra cantada pelo sociólogo polonês que nos deixou há 10 dias: tudo foi para a ‘hospedagem de acampamento’. Os afetos não valem mais o bastante para que se empenhe o futuro, permitindo o presente ser a morada da mediocridade.

Foi de Bauman a visão mais precisa deste tempo: afetos e civilidade imersos em indigência cuja principal característica é a covardia.

Estamos órfãos. Perdemos, com sua passagem, a visão exata de que nem toda transformação é inabalavelmente para melhor.

R.I.P., o’ great Captain.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO






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