Thursday, January 5, 2017

UM GRANDE LIVRO, QUE ESCAPOU DA MINHA LISTA DE MELHORES LANÇAMENTOS DE 2016



Tirando Rubem Fonseca e João Gilberto Noll, não consigo pensar em nenhum autor de língua portuguesa do Século 20 capaz de iniciar romances, contos ou crônicas com tanta atitude e tamanha desenvoltura literária quanto Clarice Lispector.

Como todos sabemos que santo de casa não faz milagre, Clarice nunca contou com o reconhecimento da maioria dos setores da crítica literária brasileira, que a consideravam "estrangeira demais", "angustiada demais" e "experimental demais" -- mas também nunca se importou com esses lugares comuns que essa gente adora cultivar, e sempre tocou sua vida e seu trabalho adiante.

Por essas e outras, chega a ser uma crueldade vê-la tão mal compreendida por leitores apressados e(ou) deslumbrados, que vira e mexe a transformam em bandeira de causas que ela, quando viva, provavelmente jamais endossaria.

Agora, cruel mesmo é ver pessoas que nunca leram uma única linha dos textos de Clarice distribuindo pelas Redes Sociais "santinhos" com uma foto dela e alguma frase idiota que jamais saiu de sua boca, ou de sua máquina de escrever.


Desde a morte de Clarice Lispector em 1977, seus livros começaram a ser reeditados e descobertos por jovens leitores, e ela transformou-se, de uma hora para outra, num grande ícone literário.

Sua literatura -- que antes era considerada difícil por alguns e intransponível por outros -- virou referência obrigatória para dezenas de novos escritores em busca de uma nova voz literária urbana.

Curiosamente, em meio a todo esse sucesso editorial, seu catálogo de livros passou por várias editoras brasileiras nas últimas décadas, e nenhuma delas ousou republicá-la de forma criativa, diferente do formato adotado nas edições originais.

Uma infinidade de textos que ela produziu para jornais nunca foram coletados e organizados, e seus contos, que estão espalhados por vários volumes, nunca receberam uma edição condizente com sua importância.


Não até agora.

Acaba de sair pela Rocco Todos os Contos, calhamaço organizado pelo bravo biógrafo americano Benjamin Moser, autor de Clarice, Uma Biografia (Editora Cosac Naify), que reúne pela primeira vez em um só volume todos os textos curtos de Clarice Lispector.

Lançado ano passado nos Estados Unidos com o título The Complete Stories pela editora New Directions, o livro foi um sucesso editorial, extremamente bem recebido pela crítica, e acabou selecionado pelo jornal The New York Times como um dos 100 melhores livros do ano.

Curiosamente, ele chega ao Brasil um ano depois de aportar nas livrarias americanas.

São 85 contos reunidos, desde o primeiro, publicado aos 19 anos, "Eu e Jimmy", até a implosão intelectual e sexual da artista à medida que se aproximava da morte.



No prefácio, Benjamin Moser explica como organizou o volume e como acha Clarice Lispector vital como escritora:

“Esta literatura não é para todo mundo: até mesmo alguns brasileiros bastante cultos ficam perplexos com o fervoroso culto que ela inspira. Mas para aqueles que a entendem instintivamente, o amor pela pessoa de Clarice é tão imediato como inexplicável."

"A sua arte é uma arte que nos faz desejar conhecer a mulher; e ela é uma mulher que nos faz querer conhecer a sua arte. Este livro fornece uma visão de ambas."

"Clarice Lispector não respeitava os limites entre os gêneros. Muitos de seus textos foram apresentados como jornalismo, mas são claramente ficcionais, ao passo que muitos daqueles que foram publicados como ficção podem ser classificados de ensaios ou relatos memorialísticos.”



Clarice era judia, e nasceu em Chechelnyck, na Ucrânia, em 10 de Dezembro de 1920.

Chegou ao Brasil com dois anos de idade, e sempre que lhe perguntavam sua nacionalidade, ela respondia: "pernambucana".

É que ela foi criada entre Maceió e Recife, cidades de onde guardava lembranças preciosas.

Clarice veio para o Rio somente aos 14 anos.

Estudou direito na Universidade do Brasil, mas pegou um desvio e acabou virando jornalista.



Trabalhou na Agência Nacional com o grande escritor Lúcio Cardoso, por quem se apaixonou, mesmo sabendo que ele era homossexual.

Foi Lúcio quem orientou a montagem do primeiro romance de Clarice, Perto do Coração Selvagem, escrito aos 20 anos de idade a partir de rascunhos e textos esparsos.

Foi Lúcio também que, ao farejar a pegada joyceana da jovem escritora, escolheu como título para o romance de estreia dela uma passagem de Retrato de Um Artista Quando Jovem.


Clarice desenvolveu uma carreira brilhante como romancista, contista, poeta e cronista.

Mas nunca foi uma escritora popular enquanto viva, pois, de certa forma, o frequência emitida por sua literatura sempre foi alta demais para poder ser captada pelo gosto popular.

Sua obra derradeira, a novela A Hora da Estrela, é uma tentativa de mergulhar neste universo popular, mas não agradou nem a crítica e nem seu público habitual na ocasião de seu lançamento -- e só foi devidamente reavaliada quando a cineasta Susana Moraes o levou às telas do cinema.


Clarice viajou pelo mundo inteiro entre 1941 e 1959 ao lado do marido diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos.

Mas quando descobriu que seu filho mais novo, Pedro, sofria de esquizofrenia e ficava muito atrapalhado sempre que a família mudava de um país para outro, decidiu separar-se de seu marido e voltar para o Rio, e assim dar uma base fixa para o filho.

Voltou a trabalhar como jornalista, e, para não misturar as estações com a Clarice autora, escrevia colunas nos jornais usando o pseudônimo Helen Palmer.

Até topou ser ghost-writer de sua amiga Ilka Soares numa coluna para o Diário da Noite.


É público e notório que Clarice Lispector estava longe de ser a pessoa mais bem humorada do Rio, mas era capaz de atitudes inusitadas, além de surpreendentemente espirituosa.

Clarice era uma mulher exuberante. Adorava circular pelo Leme com suas belas pernas expostas.

Fascinada por ocultismo e pela tradição cigana européia, foi tratada como louca pela "intelligentzia" brasileira por participar de Congressos Internacionais de Bruxaria e fugir dos Congressos Literários, dos quais tinha verdadeiro horror.

Seu amigo Otto Lara Rezende ironizava sobre isso, afirmando que "o que Clarice faz não é literatura, e sim bruxaria".


Todos os Contos proporciona aos leitores de Clarice Lispector um passeio único por sua vivencia literária através de sua obra supostamente "mais ligeira."

E revela, para quem ainda não sabia, que, mesmo em textos mais curtos, Clarice consegue posicionar-se sem estranhamento algum no mesmo patamar literário dos Dublinenses de James Joyce, Uma Casa Assombrada de Virginia Woolf e O Aleph de Jorge Luis Borges.

Resista à contista Clarice Lispector, se puder.



TODOS OS CONTOS
de Clarice Lispector
um lançamento Rocco

Título original
THE COMPLETE STORIES

656 Páginas

Capa Dura

Preço
R$69,50




Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO











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