Wednesday, January 18, 2017

O MEDO DE KENNY G (uma crônica de Marcus Vinícius Batista)


publicado originalmente no blog
Conversas e Distrações
em 2 de agosto de 2010


Sempre acreditei que a música é o combustível da memória. A música marca os relacionamentos. Tranqüiliza os mais ansiosos. Nasce nos assobios dos sossegados. Sacode na ponta dos dedos que escondem a angústia. Invade os ouvidos dos desconfiados. Machuca os surpresos. Persegue pelos refrões. E ressuscita os traumas que nunca esperávamos ter.

Estava na fila da cantina com dois amigos para o cafezinho do intervalo entre as aulas. Enquanto esperava pelo atendimento, virei o rosto para a TV. Ali estava, com seu instrumento em meio a uma plateia extasiada, o saxofonista norte-americano Kenny G. Era a propaganda do novo CD dele, recém-lançado no Brasil.

As imagens sem áudio me pouparam da música que persegue nos eventos sociais. A música de Kenny G virou o coringa de todos os acontecimentos. Não importa o número de pessoas, o tom da solenidade, o sentimento dos presentes. Acredita-se que tudo pode ter a trilha sonora dele.

Quando tinha 18 anos, ganhei dinheiro com festas de 15 anos. Como trabalhava em rádio, passei a apresentar – com aquele texto brega de minha autoria – as tais primaveras da garota de vestido rosa que se preparava para a valsa. Por que se envergonhar de certos trabalhos, se a remuneração de uma noite ultrapassava o salário do mês?

Meu trabalho se limitava a escrever o texto da cerimônia, além de fazer a locução. Não respondia pelo som. Quem o fazia tinha uma música de fundo preferida: Kenny G. Como todas eram parecidas, funcionava como um sub-gênero musical. Coitado do norte-americano, catalisador do provincianismo.

O repertório do saxofonista se encaixa no mantra dos casamentos. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Recentemente, morreu o pai de um colega de trabalho. Depois do velório, a cerimônia de cremação. Todos sentados em um auditório, com o silêncio respeitoso das circunstâncias. Quando o caixão começou a desaparecer, luz baixa e uma música ao fundo, instrumental.

O saxofone do norte-americano não incomoda tanto em casamentos, pelo menos na Igreja. Lá, valem outros clichês musicais. Mas o contragolpe é duplo. Kenny G reaparece quando os convidados entram no buffet. É justamente no instante em que todos procuram as mesas, loucos pela chegada dos noivos, que autorizam a comilança.

Meses depois, você vai encontrá-lo ao visitar o mesmo casal que abriu o apartamento para a primeira visita. Entre petiscos e bebidinhas, o vídeo maçante do casamento. Uma hora, uma hora e meia de convidados se ajeitando em roupas desconfortáveis, comendo discretamente para não fazer feio em frente à câmera e dançando livres e soltos quando a vergonha se perdeu nos goles de vinho e whisky. Na trilha sonora escolhida pela produtora de vídeo após exaustiva pesquisa, Kenny G!

No início do ano, fui a algumas formaturas de ex-alunos. A colação de grau é um ritual necessário, porém convencional. Há pouca diferenciação na ordem dos acontecimentos, independentemente da universidade. A colação vale para a família, os amigos e talvez aquele último encontro com o professor que cismava em te deixar de exame ou te reprovava na esperança da desistência.

A formatura é previsível, mas não precisava engessar o protocolo. Nas últimas a que assisti, a trilha sonora parecia derivar da mente do mesmo programador musical.

Os formandos atravessavam o auditório aos sorrisos. Envolvidos pela emoção daquele instante, não percebiam que o saxofone único do norte-americano os envolvia. Nunca torci tanto pelos discursos cheios de citações e recomendações.

A música de Kenny G virou símbolo de festa. Deve ter algum significado cabalístico que traz felicidade e prosperidade. São inaugurações, aniversários, solenidades, confraternizações de final de ano, despedidas de colegas de trabalho.

Só não ouvi a música dele em chás de bebê, talvez porque não possa entrar neste clube da Luluzinha. E em aniversários de criança, onde ainda predominam outros vícios da indústria fonográfica, à revelia de quem sopra as velas, impedido de escolher sua própria música.

Não tenho sentimentos negativos pelo músico e seu saxofone. Ele não tem culpa de que banalizaram sua obra. As ocasiões especiais viraram rotina digna de programação de FM.

Se você sentiu vontade de ouvi-lo, não espere pelo próximo casamento, aniversário ou morte. Procure pelo CD dele no fundo do armário ou da prateleira e ouça sem contar para ninguém. Se alguém disser que ouviu, tenha a cara-de-pau de culpar o vizinho.

O exemplar que ganhei (será que comprei?) ficou na casa dos meus pais. Não sofro de investigação arqueológica no momento. A distância é segura para me proteger de qualquer descontrole.



Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
É com muito prazer que saudamos
a chegada de Marcus Vinícius Batista
a nosso time de colaboradores.




1 comment:

  1. É, meu caro Marcus, entender-se-ia, assim, certa predileção musical juvenil de nossos dias pelo duo Valeska Popozuda & Mr. Catra (tem no Você Tubo... procure saber... procure saber...). Deve prevalecer, pelo jeito, certa índole de revolta diante de uma trilha sonora que o senso comum edificou solidamente até hoje. Lembra muito um chiste do falecido Casseta Popular que dizia o Brasil está em suas mãos... e não adianta lavar.

    O mesmo se aplicaria para o Kenny G? Bom... deixemos o artista artear.

    Diante de tantos textos bons, como o seu, fico curiosíssimo como seria sua baba-brega de embalar debutantes. Um mundo que caminhou até aqui com muito amor, com muito carinho, embalado ao som do Kenny. Contudo, convenhamos... it's a sad way to lose the cherry (frase & expressão que nego a traduzir, pois não seria de bom tom entregar sua sempre maravilhosa crônica a expressões de baixo-calão).

    É bom não reclamarmos do futuro: esse que há hoje foi plantado lá atrás, ao som hipnótico do saxofone desse renomado músico.

    Sempre meus loas e no aguardo de mais um texto seu.

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