Thursday, January 5, 2017

POR QUE O CAVALO? (por Ademir Demarchi) (publicada originalmente em 13/08/2015)





Aos oitenta anos, incansável, a atriz Maria Alice Vergueiro está excursionando com uma nova peça de teatro em que dirige e protagoniza uma velha, numa metáfora de si mesma que, à espera da morte, morre e a peça se transforma no seu velório. Com cinquenta anos de palco, ela atua em uma cadeira de rodas, devido à artrose que atinge seus joelhos, mas fica em pé e caminha, ainda que com dificuldade, sendo ajudada pelos atores do grupo Pândega de Teatro, com destaque para o parceiro constante Luciano Chirolli, mais Alexandre Magno, Carolina Splendore e Robson Catalunha. “Why the horse? (Por que o cavalo?)” foi criada sob medida para encenar seu derradeiro momento de vida e morte, visto com a sua sempre marcante irreverência que a faz dizer que “com sorte pode ser que eu morra em cena. Se não, estaremos de volta no dia seguinte”... A peça é caótica, inspirada na estética anárquica de Jodorowski cuja tônica é sempre reencenar a liberdade, explorar os limites estéticos e de representação sem linearidade e com humor grotesco. Em busca da “tomada de inconsciência” jodorowskiana, Maria Alice personifica uma velha grávida, faz homenagem a Hilda Hilst e ironiza a velhice física para elogiar a jovialidade que anda a cavalo num corpo que tem um fim anunciado. Incansável, ela já foi professora de teatro incompreendida na USP por não se enquadrar no modelo de hierarquia prevalecente; foi atriz do grupo Oficina com Zé Celso e a responsável por traficar durante a ditadura os rolos do filme “O Rei da vela”, no qual também atuou, levando-o às escondidas para a Espanha, depois para Portugal, onde foi montado para mostrar um Brasil que os militares não queriam que fosse mostrado; outra fase notável de Maria Alice foi fundar com Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia o grupo Teatro do Ornitorrinco, que fez fama pela esbórnia crítica nos anos 1980; uma das suas mais notáveis performances foi a de protagonizar um filme disponibilizado no Youtube, “Tapa na Pantera”, criado por Rafael Gomes, Esmir Filho e Mariana Bastos em 2005, que teve mais de cinco milhões de visualizações na época. Nesse curta impagável de engraçado ela personificava uma velha que dizia fumar maconha todos os dias havia 30 anos e não era viciada... Essa experiência a transformou numa celebridade nacional “redescoberta” como se nunca tivesse existido antes, como é praxe na mídia que vive de um presente eterno e ignora a história. Sua vida poder ser lida em tom bem humorado no livro “Tapa na Pantera na íntegra – Uma biografia não-autorizada”, publicado pela Ficções Editora em 2008. Eis que retorno ao final da peça, com que iniciei esta crônica: depois de encenar de forma variada o “estado de inconsciência” a velha, finalmente morre, os atores deitam a cadeira flex que ela usa em alternância com a cadeira de rodas, essa cadeira vira uma plataforma para o defunto, eles jogam flores de tecido sobre ela, puxam um enorme véu que a encobre mas não a oculta e então, contrafeitos, desaparecem do palco e a deixam só, com os espectadores. A peça vira então um velório e a plateia, educada pelo teatro convencional, demora a reagir e entender que mais uma vez Brecht se une com Jodorowski e a encenção exige a participação deles para o teatro continuar. Enquanto aquelas duzentas pessoas ficam olhando umas para as outras sem entender, me levanto, subo a rampa para o palco e consigo chegar em segundo, pois uma mulher, aos prantos, já a cercava e depois me explicou que não podia ver defunto, que chorava... Me aproximei do corpo da atriz e falei em boa voz: “Maria Alice, Santa Putana, obrigado por fazer meus dias sobre a Terra mais alegres...!” Bastou o adjetivo de Santa Putana e a defunta se riu feliz, satisfeita por mais aquela encenação em que, outra vez, sairia viva. Enquanto isso, uma parte da plateia conseguira sair da anestesia e chegava para participar da encenação velorial, que durou mais uns muitos minutos, até que numa salva de palmas Maria Alice ressuscitou e se retirou para descansar do trabalho, ainda não da vida...






Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
são publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho














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