Friday, January 13, 2017

UMA ENTREVISTA DE MÁRCIO CALAFIORI COM GILBERTO MENDES EM BOFETADA DO PASSADO





Nessa entrevista realizada em junho de 2001, o maestro, compositor erudito e idealizador do Festival de Música Nova, Gilberto Mendes -- falecido há pouco mais de um ano, no dia 1 de Janeiro de 2016, aos 93 anos de idade -- fala sobre a importância do Clube de Cinema de Santos que, segundo ele, trouxe para a cidade as discussões ideológicas e estéticas que movimentavam o panorama cultural e político da época. “Havia um gosto pelo debate que se perdeu. A gente se reunia e discutia, discutia ideias e defendia a sua posição. Hoje, ninguém é nada.” Ao se referir às dificuldades que enfrentou com a realização do Festival de Música Nova, no gênero o mais antigo do mundo, Mendes disse: “A elite santista não tem o direito de ser ignorante.”




Márcio Calafiori — Quando o senhor se integrou ao Clube de Cinema de Santos?

Gilberto Mendes — Logo quando foi formado. O ano eu não lembro.



Segundo as minhas pesquisas, o clube começou as atividades em 16 de outubro de 1948.

Então foi nessa data.

Ou seja, o senhor fez parte da fundação do Clube de Cinema de Santos.
Sim, fiz.



Por que a iniciativa de fundá-lo?

Sou de uma geração em que a gente era, digamos, escritor ou músico ou pintor, mas tinha um gosto de estar a par, igualmente, de todas as outras artes. É uma coisa que hoje não existe mais. Por causa da chamada especialização, os caras só entendem de uma determinada coisa. Então, naquela época, a gente gostava de tudo. Desse interesse em relação à arte é que nasceu o desejo de se fundar um clube em Santos que debatesse e incentivasse o gosto pelo cinema de arte. Fundamentalmente foi isso.



Essa iniciativa se formou a partir de que grupo?

Não vou me lembrar de todo mundo, mas lembro dos poetas Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa, e do Demar Peres, que era engenheiro, e, mais tarde, chegou a ser presidente do clube. O Demar foi um dos presidentes mais ativos, mais interessantes...



O Maurice Legeard fazia parte desse grupo inicial?

Não.



O senhor...

Desculpe-me por interrompê-lo. Se eu não estiver enganado, a sessão inaugural do Clube de Cinema de Santos foi no Cine Bandeirantes, com a apresentação do filme Le Corbeau [1943], do Henri-George Clouzot, um diretor francês que estava na moda e que depois dirigiu um filme que ficou muito famoso, O Salário do Medo [1953]. Esse diretor era casado com uma brasileira, a atriz Vera Clouzot. Então, o clube foi lançado com esse filme. Vieram personalidades de São Paulo para a inauguração. Uma delas foi o Lourival Gomes Machado, que era professor da Universidade de São Paulo, um historiador de arte que escrevia nos suplementos literários da época, especialista no barroco mineiro. Ele fez a palestra de inauguração do Clube de Cinema, pois entendia de tudo, de cinema e de todas as outras artes.



Além dos nomes que o senhor já citou como fundadores do clube, tenho outros anotados. Por exemplo: Rubens de Almeida.

Sim, eu lembro dele.



Carlos Alberto Barros Ferreira?

É, lembro dele também.



Zilá Mendes Rosa...

Zilá era a mulher do Roldão Mendes Rosa. Participou também.



Nelson e Armando Sales...

É, exatamente, Nelson e Armando Sales, eram irmãos.



O senhor lembra quando o Maurice Legeard começou a frequentar o clube?

Eu não tenho certeza, mas pode ter sido por volta de 1954.



A data que eu tenho é 1953.

Então, está batendo. (risos).



Por que Maurice Legeard foi chamado para o Clube de Cinema?

Eu não me lembro, mas ele gostava dessas coisas e começou a frequentar o clube. Eu me lembro de ver um cidadão lá, um francês — ele era francês, nasceu em Paris, só que viveu sempre aqui, desde criança. Na época, ele era bonitão e charmoso. Não era aquele bicho feio que ficou depois de velho (risos). Resumindo: o Maurice tinha aquela pose. O Brasil sempre teve um certo respeito por quem é estrangeiro, não é mesmo? (risos). Ele logo se impôs pelo fato de ser francês e era batalhador. Ia buscar os filmes em São Paulo, se mexia, fazia isso e aquilo, se interessava pela entidade.



Mas por que o Maurice Legeard acabou sendo identificado com o Clube de Cinema?

Ah, porque ele se integrou, trabalhou muito, se salientou. Nesses eventos aquele que trabalha, que mais se dedica, é que se salienta. Eu, por exemplo, ia lá ver os filmes, debatia, mas não ia além disso. Eu era mais um sócio, ativo no sentido dos debates. Uma coisa muito importante que hoje não se faz mais. Talvez, o culpado disso seja o golpe de 1964, o golpe militar. Por muitos anos, a ditadura tirou o gosto pelo debate, pela discussão. Hoje em dia não se debate e não se discute nada. Naquele tempo, os debates eram ferozes. Depois de cada filme, a gente ia tomar um cafezinho lá na esquina e voltava para debater os filmes. Eram discussões ásperas, em que só faltavam as bofetadas.



Essas discussões tinham convidados especiais ou os convidados eram esporádicos?

Era de quem ia ao cinema, de quem quisesse participar. Nesse tempo, não havia televisão. A tevê não tinha a força que tem hoje. Então, as pessoas iam muito ao cinema. Por causa disso, o Clube de Cinema tinha muitos sócios. Dos debates participavam umas vinte pessoas ou mesmo trinta. Era uma discussão feroz, mas uma discussão estética. Era um tempo de muita polarização de esquerda, direita e centro. Tinha o lado comunista e socialista. Esses lados tinham uma visão dos filmes e discutiam dentro dessa visão. E tinha um outro lado, que era, vamos dizer, mais direitista. Ou de centro, digamos, que via as coisas mais pelo ângulo da estética. E os da esquerda viam do ângulo da coisa mais engajada. Nessa época, os filmes eram muito engajados.



De que lado o senhor ficava nessas discussões?

Eu estava na esquerda. Era o meu lado da vida, ao lado do coração, à esquerda.



O senhor era filiado a algum partido?

Eu era bastante próximo do Partido Comunista Brasileiro, assim quase como todo mundo ali no Clube de Cinema.






As sessões do clube enchiam?

Não, as do Clube de Cinema não enchiam As sessões eram aos sábados, às três da tarde, que eu me lembre. As sessões não enchiam porque o Cine Bandeirantes era muito grande. Mas comparecia um público razoável, bastante bom. O interessante, sobretudo, eram os que ficavam para o debate. E se debatia mesmo. Discussões acaloradas, de alto nível. Era gente letrada, gente com muita ideologia. O pessoal da esquerda e os grupos católicos, mais ligados à Igreja, ao pensamento da Igreja.



O senhor lembra de alguma discussão que o tenha marcado? [Nessa pergunta, Gilberto Mendes pensa por quase dez segundos]

Eu não me lembro... Havia um gosto pelo debate que se perdeu. Hoje não há mais discussão. Naquela época, a gente se reunia e discutia, discutia ideias e defendia a sua posição. Hoje, ninguém é nada. Quem é comunista, não é comunista. Quem é católico, não é católico. Ninguém é nada. O que caracteriza o mundo de hoje é que ninguém é porra nenhuma.



Qual a importância do Clube de Cinema para Santos?

O Clube de Cinema de Santos teve uma longa duração. Em termos de fundação, é um dos clubes de cinema mais antigos do Brasil. Pena que foi diminuindo o caráter da atividade que tinha. Por quê? Porque Santos é uma cidade pequena. Então quando acontece uma coisa, toda aquela pouca gente interessada se une ali. Sempre existiram movimentos que interessavam as pessoas e a cidade ficava polarizada num certo movimento. Naquele momento, foi o Clube de Cinema, e por volta de 1955 em diante foi o Clube de Arte.



O que era o Clube de Arte?

O Clube de Arte foi uma entidade que formamos para incentivar as artes. Essa é outra história. Foi um movimento muito forte que também polarizou, irmanado com o Clube de Cinema. Havia colaboração entre as duas entidades. Quando começou o Clube de Cinema se passava muito filme comercial, com tela grande. Mas em contato com embaixadas e consulados começaram a aparecer lá os filmes 16 mm. Assim, o Clube de Cinema usou muito o Clube de Arte.



O Clube de Arte funcionava onde?

Num casarão velho da avenida Ana Costa, próximo onde hoje é o Extra. Essa casa, que estava meio abandonada, tinha uma grande entrada de jardim e também um varandão. Fizeram um preço bom no aluguel e a casa então foi alugada para o Clube de Arte, que foi um negócio dos mais importantes da história intelectual de Santos, juntamente com o Clube de Cinema.



Quanto tempo durou o Clube de Arte?

Durou muitos anos e depois passou para outras mãos, mas com o caráter que o marcou. Ele surgiu dos clubes de gravura que existiam no Brasil. Aqui em Santos havia um Clube de Gravura, que era do Mário Gruber [1927-2011], o pintor santista. O Clube de Gravura se transformou no Clube de Arte. 



Foi o Mário Gruber quem idealizou o Clube de Arte?

Não. Ele, Gruber, idealizou e fundou o Clube de Gravura de Santos. Na linha dos diversos clubes de gravura que estavam se formando no Brasil. Esses clubes tiveram início no Rio Grande Sul, em Porto Alegre, com aquele gravurista de lá, o Carlos Scliar, que morreu há pouco tempo. Era outro clube de esquerda, só tinha comunista. O Scliar esteve na Segunda Guerra pela FEB. Oficialmente, o Clube de Gravura ensinava gravuras, a prática da gravura. Com a incorporação do Clube de Arte, se abriu para outras atividades.



De que modo o senhor frequentava o Clube de Arte?

Eu ensinava música lá. Mas no clube o que teve uma atuação muito importante foi o teatro. O nascimento do bom teatro amador em Santos teve início ali. Tanto que uma das animadoras lá era irmã do Paulo Autran, a Gilberta Autran, que era casada com um médico e dramaturgo de Santos, Oscar Von Pfuhl. Eles faziam lá um teatro amador muito bom. Através do próprio Paulo Autran, ambos tinham esse relacionamento com o mundo teatral de São Paulo. Vinha muito diretor de teatro a Santos para fazer palestra no Clube de Arte. Muita escola de arte dramática vinha a Santos e se apresentava no Clube de Arte. O Alfredo Mesquita [1907-1986. Fundador do Grupo Experimental de Teatro, em São Paulo, que deu origem ao Teatro Brasileiro de Comédia, TBC. Também criador da Escola de Arte Dramática] vinha muito para essas coisas. Trazia o grupo dele, fazia palestra, representações de teatro de vanguarda, as peças de Eugène Ionesco etc.



Voltando agora ao Clube de Cinema. Qual é o período que o senhor considera o auge da entidade?

Foi do começo, em 1948, até mais ou menos 1960. O auge foi no tempo do Cine Bandeirantes, onde havia os debates. Uma coisa que era interessante no Clube de Cinema é que esses debates eram sempre dirigidos por alguém. Um de nós ficava de frente para a plateia e fazia um pequeno apanhado do filme. Ele mesmo discutia algumas coisas, lançava algumas ideias. Ai começava o debate. Você viu o filme do Etore Scola, Nós Que Nos Amávamos Tanto [1974, Itália]. Tem uma cena lá muito boa, num clube de cinema. É uma discussão muito grande sobre o filme do Vittorio de Sica, Ladrões de Bicicleta [1948]. Os debatedores chegam a se agarrar. Não sai tapa lá, mas um ofende o outro. Uma discussão do ponto de vista católico. Mas católico intelectualizado, não esse católico babaca que vai à igreja hoje em dia. É um grande filme esse do Ettore Scola. Tem aquela força muito característica dos debates que fazíamos no Clube de Cinema. Mas isso pertence ao passado. Hoje em dia se a gente propõe um debate não fica ninguém na sala. Não sabem nem discutir. Não sabem ter uma opinião a respeito do filme e de nada.



O senhor acha que o Maurice Legeard teve alguma importância cultural para Santos?

Teve. O Maurice é aquilo que a gente chama de animador cultural. Ele nunca fez um filme propriamente dito. Ele não era um cineasta criativo, não era também um produtor. Então, ele não trabalhou com cinema, mas foi um animador de cinema. Um cara que desenvolveu o gosto das pessoas pelo cinema, isso porque tinha paixão pelo cinema.



O senhor acha que ele despertava mesmo o interesse pelo cinema?

Despertava, ele era um homem que tinha o dom. Tinha um charme, estava sempre rodeado das pessoas que o idolatravam. Em várias gerações havia grupinhos em volta dele. Existem santistas de grande nome no teatro hoje em dia que lembram: “Ah, aquele tempo quando eu era rapaz em Santos e vivia atrás do Maurice”. São atores famosos, críticos de cinema...



O que me chama a atenção é que ele virou uma referência cultural em Santos.

É. Então, ele ia fazer as coisas e sempre ia com dois, três moleques. Aqueles com quinze anos, dezesseis anos. Então, ele despertava nessa gente o interesse pelo cinema e indiretamente pela arte teatral. Alguns iam para o teatro, depois iam para São Paulo. Mesmo hoje quando são entrevistados, quando falam de Santos, lembram do Maurice. Um cara que foi ligado a ele era o Plínio Marcos. 



Plínio Marcos?

Sim, o Plínio Marcos. Eu mesmo participei de uma peça dele. O Plínio Marcos foi o ator e mais ou menos já encenou a coisa, mas era do Maurice a responsabilidade da direção. Eu fiz a música. Naquele tempo eu fazia a música para todas as peças do Plínio Marcos, quando ele ainda era do teatro amador, aqui em Santos. Eu também fiz o profissional, quando ele começou a fazer teatro profissional em São Paulo. O Plínio gostava muito do Maurice.



O Maurice mesmo trabalhou como ator numa peça dirigida pelo Oscar Von Pfuhl, Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O'Neill...

Isso eu já não sei. Você pesquisou?



Pesquisei.

Não estou lembrado.



O senhor acha que o Clube de Cinema...

Só para não esquecer... Eu também fiz música para uma peça do Oscar Von Pfuhl, O Incêndio de Roma, que foi dirigida e representada pelo Plínio Marcos. Ao todo, eu fiz uma meia dúzia de peças. Duas na capital e as demais para as peças do Plínio Marcos, aqui em Santos.



O senhor não acha que...

Fiz também música para Homens de Papel [peça de Plínio Marcos], já no teatro profissional, em São Paulo.



O senhor não acha que a ditadura militar acabou com o Clube de Cinema, ou vamos dizer assim, com a importância dele?

Olha, a ditadura militar atrapalhou e prejudicou todo mundo.



O senhor acha que o Clube de Cinema foi vítima da ditadura?

Acho que foi vítima sob esse aspecto. A ditadura militar silenciava as pessoas, todo mundo tinha medo. Tinha medo de falar, de ser preso. Então, o debate acabou. Como é que você ia debater um filme se todos os filmes de arte são muito livres? A ditadura não deixava passar esses filmes que considerava obscenos. Não se podia discutir as coisas.



E depois da ditadura?

Silenciou, acabou. Eu estou dizendo: quem acabou com o gosto pelo debate no Brasil, eu não tenho a menor dúvida, foi a ditadura militar.



O senhor gosta de cinema até hoje?

Ah, sim. Eu sempre quis ser músico ou escritor. E acima de tudo gostaria de ter sido cineasta. Por isso, gosto muito de cinema.



Os grandes filmes não vêm para Santos, não é?

Mas o Clube de Cinema, mesmo quando não estava mais com o Maurice, trouxe coisas muito boas para cá. Exibiu Um Homem Com Uma Câmera [Rússia, 1929, Dziga Vertov]. Lembro até que no centenário da Revolução Francesa, em Paris, eles anunciavam: “Venham a Paris. Os grandes festejos da Revolução”... Eles anunciaram também: “No Centenário da Revolução tenha a oportunidade de ver Um Homem Com Uma Câmera...”. Eu estava na França com a minha mulher e ela comentou: “Acabamos de ver esse filme na semana passada no Indaiá”. E eram cinco pessoas em Santos vendo o filme. Vi muita coisa sem precisar sair de Santos. Uma coisa importante dos anos 1950 é que o Clube de Cinema não se limitava só a trazer filmes e discuti-los: trazia diretores, fotógrafos, músicos, professores...



Pessoas ligadas à arte?

Às vezes, o Clube de Cinema trazia um filme e alguém ligado ao filme. Uma vez trouxemos sabe quem? Alberto Cavalcanti [1897-1982]. Esteve aqui, no Cine Bandeirantes. E mostramos dele O Canto do Mar [1954].



Ele foi para a Inglaterra depois, não é?

Sim. Ele é um homem importantíssimo na história do cinema europeu. O Brasil é que nunca ligou pra ele.



Era documentarista também.

Documentarista, e fez alguns filmes excelentes. Ele fez um dos melhores filmes de terror que eu vi na minha vida. [Nota: o filme a que Gilberto Mendes se refere é Na Solidão da Noite, 1945, Inglaterra. No original, Dead of Night. São cinco episódios dirigidos também por Charles Crichton, Robert Hamer e Basil Dearden. Cavalcanti dirigiu dois episódios. O roteiro é de John Baines e Angus MacPhail.]



As discussões no Clube de Cinema acabaram em 1968 ou antes?

Acabaram em 1964, quando começou a ditadura.



Para Santos a ditadura foi terrível, não?

As ditaduras têm um lado curioso, elas fomentam muito a arte. Mas é uma arte de protesto e subterrânea. A arte continua; às vezes, pega até com mais vigor, como ocorreu na União Soviética. Lá, a grande arte circulava entre pessoas, mas não era oficialmente aceita. No Brasil, vamos dizer assim, as melhores coisas da música popular brasileira, dessa geração do Chico Buarque de Holanda e do Caetano Veloso, foi feita durante a ditadura. Mas é melhor não fazer coisa boa e não ter ditadura.






Tem uma frase do Narciso de Andrade, que eu tirei de uma crônica dele, que diz que existem duas coisas de que o público santista deveria se orgulhar. Uma é o Clube de Cinema, e a outra é o Festival de Música Nova. Qual a sua opinião?

O Festival de Música Nova fui eu que inventei. Isso em decorrência do movimento de Música Nova de São Paulo, ao qual eu estava ligado. Lançamos um manifesto, que tomou uma posição frente ao que a gente achava de errado na música erudita brasileira e eu, morando em Santos, tive a oportunidade de organizar um festival de música em 1962. O então presidente da Comissão Municipal de Cultura falou: “Gilberto, se você quiser fazer alguma coisa aqui, aproveita que eu estou aqui na Comissão”. A gente tinha feito um concerto muito bom em São Paulo. Na 5ª Bienal apresentamos obras históricas. Inclusive uma peça minha. E eu falei: “Eu poderia trazer esse concerto para Santos?” Ele disse: “Pode, pode, mas não traz só o concerto. Traz uma semana de atividades de música contemporânea”. E eu fiz. Trouxemos a Orquestra de Câmara de São Paulo, que fez esse concerto no Teatro Independência, que agora virou...



Uma sala de bingo...

Você quer dizer cassino, né? De jogatina e tudo. Um grande espaço que Santos perdeu. Ele era um teatrinho magnífico.



O senhor levou alguma coisa para o Teatro Independência?

Em 1962, o Festival de Música Nova foi ali. Eu trouxe a orquestra que deu um concerto ali. E também organizei umas três palestras. Assim, fiz uma semana de música. No ano seguinte, fui à Europa. Quando voltei de lá eu estava nomeado membro da Comissão de Cultura, pois a anterior havia mudado. Pela primeira vez em Santos foram chamados para mexer com cultura as pessoas realmente ligadas à cultura: o Narciso de Andrade, o Roldão Mendes Rosa, eu e outras pessoas. Foi então que consolidei o Festival de Música Nova.



O senhor enfrentou dificuldades com o festival?

Cheguei a fazer um terceiro festival, em 1964, mas já com enorme dificuldade, isso por causa da ditadura. Os clubes de Arte e de Cinema nos ajudaram. Mesmo com pouco dinheiro, o Maurice Legeard arrumou filmes de arte sobre música para passarmos no festival. Mas de 1965 a 1967 não teve mais o Festival de Música Nova. O evento ficou parado. Só o retomamos em 1968 graças ao prefeito Sílvio Fernandes Lopes. Ele botou o Evêncio da Quinta para ser o presidente da Comissão de Cultura. Até então, não existia Secretária de Cultura. Era uma Comissão de Cultura. E veja bem: ninguém ganhava salário na Comissão, nem o presidente nem os membros. Nem um dinheirinho pra pagar o bonde, comer um sanduíche, nada. O serviço cultural a gente fazia absolutamente de graça. Agora é uma secretaria, com todo mundo ganhando, mas fazendo muito menos do que a gente fazia. 



E o Evêncio?

Ele ficou como presidente da Comissão de Cultura e me chamou: “Ô, Gilberto, faz um festival de música de vanguarda, bem bonito.” E eu fiz para ele um festival bem bonito, um dos melhores que tinha música de vanguarda. Teve uma cobertura até do Estadão. E que cobertura! Esse festival que fiz para o Evêncio foi chamado de Festival de Música de Vanguarda. No ano seguinte, 1969, com dinheiro do governo Estado, a gente fez outro festival, mas aí com o nome oficial de Festival de Música Nova. E daí pra frente foi assim. O evento só foi interrompido naqueles três anos que já citei. 



No ano passado, o então secretário de Cultura de Santos, José Gondim, afirmou que o senhor disse a ele que não precisava de dinheiro para fazer o festival. Que as pessoas não se interessam por esse tipo de música. É verdade?

[Enfático] Eu nunca disse uma coisa dessas! Como eu ia dizer uma coisa dessas? Posso ter dito para ele que um festival é difícil de ter público. Essa é uma realidade, mas daí a dizer que a gente não quer dinheiro! Isso é o ponto de vista dele, secretário, que quer satisfazer o patrão dele, que é o prefeito, e gastar o mínimo possível. Eles põem um secretário para dizer não aos pedidos... Eu me envergonharia de ser secretário, cuja função é ver um belo um projeto, e dizer: “Não, não é possível, porque não temos dinheiro”. Esse é o motivo. Você apresenta um belo projeto e eles te dizem: “Não, nós não temos dinheiro”.



Pois é, não...

Eu estou ganhando e tenho assessores e vários funcionários, toda uma máquina, para dizer não! Para achar que devem ser as empresas que devem fazer isso. Então seria bem coerente: acabem com a Secretária de Cultura. Acabem com a secretária e façam outra... Ou então se ponham a campo, eles, para pegarem dinheiro com as empresas. Nós temos que ir atrás, eu tenho que compor, tenho de criar coisas, tenho de fazer teatro, e mais isso e aquilo, agora tenho que ir atrás de dinheiro? Eles que se virem, esses miseráveis! O negócio deles é não gastar dinheiro, não gastar dinheiro! Quer dizer, gastar dinheiro com as coisas deles, os túneis, as pontes, tudo aquilo que dá o caixa... Não vou falar mais.



Eu queria que o senhor comentasse a segunda parte da questão. E a importância do Clube de Cinema?

O clube foi muito importante porque desenvolveu durante anos um gosto pelo bom cinema, magnífico cinema. E pegou por sorte, pois foi a época do grande cinema, do Fellini, do Antonioni, do Visconti, do Godard, do Bergman, do cinema japonês, o Kurosawa. Toda essa gente, a melhor gente que fez cinema da história do cinema. Então, o auge do Clube de Cinema... Santos, em particular, é uma das primeiras cidades do mundo a ter valorizado Bergman.



Como assim?

O Bergman quando surgiu não foi muito bem recebido. É sabido historicamente que o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a grande importância do Bergman. Os clubes de cinema do Brasil, e a crítica de cinema feita aqui, antes dos europeus e dos americanos, começaram a valorizar o Bergman. Quando aqueles primeiros filmes do Bergman começaram a passar, o Brasil era fã. Tinha um crítico do Estadão, o Rubem Biáfora, que tinha paixão pelo Bergman. Ele chegou a fazer um filme, esse crítico, bem bergmaniano. [Mendes se refere ao filme Ravina, de 1958]. Quando passamos o filme, o Biáfora veio a Santos. Debateu com a gente, veio até para minha casa. O Clube de Cinema de Santos era muito interessante.



Deixando de lado a sua geração, que o fundou, o senhor diria que o Clube de Cinema chegou a formar alguma geração interessada em arte ou política aqui na cidade?

Eu acho que sim porque o Plínio Marcos e outros atores famosos que nasceram e moraram em Santos estão fazendo teatro por aí. Volta e meia, quando eles falam de Santos, sempre lembram do Clube de Cinema, sempre lembram do Maurice e se lembram do Festival de Música Nova também. Um dia desses conheci em São Paulo um economista. Ele me contou que quando era novo vinha a Santos para ver o Festival de Música Nova. Santos é uma cidade curiosa do ponto de vista de música. Esse Festival é seguramente o mais antigo da América Latina. Mas eu diria que é da América toda. Incluindo os Estados Unidos e o Canadá. O Festival de Música Nova figura espontaneamente no anuário mais importante de música que existe nos Estados Unidos, está lá o Festival, nunca pus, nem sabia que existia esse anuário. Um dia desses eu vi esse anuário e comecei a folheá-lo. Aí vi o Festival de Santos. Não fui eu que mandei as informações, inclusive para você estar nesse anuário é preciso pagar. É um anuário internacional. Os artistas querem figurar ali para consulta. Quer dizer, alguém que frequentou o nosso Festival, algum americano ou francês, chegou e disse: “Põe o Festival de Música Nova que é importante”. Há vinte dias eu estava em Petersburgo e depois em Paris. Em Petersburgo, fui participar do Festival da Primavera, várias obras minhas tocadas lá...



Esse último festival aqui foi muito bom, não?

No momento, dos cinco compositores com mais destaque no Brasil, com mais trânsito internacional, desses cinco, dois são santistas. Olha a proporção. Dois são de Santos, desculpa me botar no meio disso, mas sou eu e o Almeida Prado. Nós somos... eu o Almeida Prado, o Jorge Antunes, o Ermínio Filho... Nós somos os compositores do momento mais tocados no exterior, com mais nome no exterior. O Almeida Prado tem uma carreira brilhante internacional, ele mora em Campinas agora. Profissional. Agora está aposentado, como eu também estou. Mas é uma grande proporção. Sorte na música, sorte no teatro também. A galeria de artistas santistas que tem aí no teatro brasileiro, brilhando na televisão, desde os velhos tempos, da Cacilda Becker, de quem eu fui colega no ginásio, no José Bonifácio. Fui colega dela, da mesma classe.



Mas hoje o que o senhor acha que está acontecendo com a cidade?

De uns anos para cá... Santos é uma cidade muito esquisita. Ela tem um lado altamente provinciano, que é representado por aquelas forças tenebrosas que a cidade tem. A cidade, metade dela, é feita por esse caldo de figuras tenebrosas. Que saem das cavernas, essas coisas assim, volta e meia estão no governo da cidade. Como agora. Mas tem um lado tremendamente inventivo e revolucionário. A cidade é bem dividida ao meio. Engraçado, então uma hora predomina uma, outra hora predomina outra. Ao mesmo tempo, Santos não é uma cidade de interior. Era até preferível que talvez fosse uma cidade de interior mesmo do que ter ficado nessa indecisão. Quem é bom aqui vai embora. Vai para São Paulo, para o Rio, esquece de Santos, isso porque Santos não liga pra ele. Não deu apoio nenhum pra ele. Se é um cara ligado à arte, não recebeu apoio nenhum.



É verdade.

Hoje em dia, eu diria que esses últimos governos, a partir do PT, têm apoiado mais o nosso Festival. Mas a miséria que eles deram pra mim durante esses anos todos, como quem diz: “Pega esse dinheiro, vai brincar de fazer Música Nova e não me enche o saco, vai embora”. Compreende? Eles não ligam para as coisas. Agora sim, nesses últimos três governos. Esse que entrou aí, no começo, deu muito trabalho pra gente. Ele não sabia quem eram as pessoas de Santos, nunca ouviu falar no Festival de Música Nova, nunca ouviu falar em mim. Eu sou um cara que mora aqui a vida toda, eu trabalhei... Dei aula aqui, escrevo pra jornal, já fui funcionário bancário aqui, já fiz de tudo aqui. Então, todo mundo me conhece em Santos por um motivo...



E agora com o secretário novo melhorou?

Ah, imensamente. Carlos Pinto é um homem do ramo. Acabei ficando amigo do Gondim também, porque o Gondim é boa gente. Não é que eu seja alguma coisa na ordem das coisas, mas eu sou um cidadão antigo de Santos. Faço um dos festivais mais antigos da cidade, do país e da América. Portanto, a elite santista não tem o direito de ser ignorante. Não tem esse direito.


Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.





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