Tuesday, April 12, 2016

A LUZ (um conto de Márcio Calafiori)



Para Marta, minha irmã




Falando em acampar, o Barata conhecia uma fazenda a mais ou menos uma hora de Brasília:

“Alguém tem barraca?”

“Barraca? Não.”

“Sem problema. Quando fiz o curso de sobrevivência na selva aprendi a improvisar o acampamento usando um paraquedas”, emendou Barata.

“Paraquedas?”

“É. A gente amarra a ponta dele numa árvore e abre. Funciona igual a uma barraca, e até melhor.”

“Mas onde vamos descolar um paraquedas?”

“O teu velho não consegue, João?”

Primeiro-tenente e topógrafo, o pai do João Maioni vivia fazendo incursões pelo Centro-Oeste. Provavelmente, já acampara debaixo de um paraquedas. Mas mesmo que não, pra ele seria fácil arrumar um.

“O que mais é preciso levar?”

“Coisas em lata. Arroz. Calcula meio quilo pra cada um. Dá e sobra. Arroz rende. É fácil fazer. Sal. Leite Ninho. Leite condensado. Nescafé. Bolachas doce e salgada. Chocolate. Pão de forma. Margarina. Fósforo. Coisas de primeiros-socorros como analgésico, esparadrapo, gaze, Merthiolate, pomada com antibiótico e repelente. Em vez de sabonete, sabão grosso. Serve também pra lavar a louça. Lanterna e fogareiro eu tenho. Melhor anotar”, atentou Barata.

Com exceção dele, que cultivava o espírito de aventura, nenhum de nós possuía apetrechos dignos de um acampamento. Além de ter uma mochila e outros acessórios militares, Barata gostava de usar peças de uniforme. Como à noite venta muito em Brasília, ele não saía sem a japona verde-oliva, um pouco disfarçada, claro. A 103 era residência dos oficiais do exército. Ali, corríamos o risco de sem mais nem menos um coronel que estivesse passeando com o cachorro ordenar que a gente despisse — agora! — o que fosse de uso exclusivo das Forças Armadas.

O pai do João Maioni conseguiu um paraquedas velho, branco encardido. Acho que nem mesmo o Barata tinha a ideia exata da dimensão daquilo. Era um equipamento imenso. Precisávamos verificar se não havia rasgos nele. O esticamos no gramado da entrada da quadra, na ponta do Bloco A. Juntou gente pra assistir. Depois da inspeção, Barata dobrou-o com perícia e o amarrou como se fosse uma mochila. Na antevéspera, reunimos os mantimentos para a checagem. A coisa toda parecia um armazém tosco de beira de estrada.

“Em vez de cobertor não seria melhor levar colchonete?”

“Colchonete faz muito volume. Uma manta ou um cobertor velho é o ideal. Cada um leva o seu. É só pra forrar o chão. Esquece o conforto. Um acampamento precisa ter o espírito da vida selvagem. Se não for assim não tem graça”, argumentou Barata.

O pai do João Maioni nos transportou no velho Aero Willys. Quase uma hora e meia de viagem até a fazenda, que naquele trecho não se parecia com uma fazenda, ou pelo menos não cumpria o estereótipo que fazíamos de uma. Não havia cerca, arame farpado ou animais à volta. Só o cerrado e a estrada de terra vermelha. Três cachorros. Uma casinha com fumaça saindo pela chaminé. O caseiro e a mulher. O rio ficava depois da parte alta. Seguimos até onde deu. Daí em diante, o carro não conseguia mais avançar. Impossível. Era um local inclinado coberto de vegetação rasteira, arbustos e árvores empoeiradas e esparsas, com parte das raízes à mostra.

Com chapéu de selva, óculos escuros, camiseta e calça camufladas, coturnos, cantil, mochila e o facão meio enferrujado que puxou da bainha acoplada ao cinturão de lona, Barata seguia na frente, subindo, batendo, às vezes decepando. No encalço, Camelo, João Maioni, Milk e eu parecíamos donas de casas atormentadas com as sacolas e as tralhas. Sol forte. Na caminhada, revezávamos o botijão portátil do fogareiro, três garrafões de vinho tinto e um garrafão vazio, que ficamos de abastecer com água logo que chegássemos à fazenda. Mas ninguém se lembrou disso. As coisas pesavam como montanhas de chumbo. Os cobertores presos às costas enganchavam nos galhos alongados e baixos que interceptavam o caminho. Os tênis e os jeans manchados de terra vermelha. Quase não transpirávamos por causa do ar seco.

“Falta muito pra chegar, Barata?”

“Mais um pouco, depois é só descida. Moleza.”

Lá embaixo, o terreno plano e coberto de cascalho fino, como se aquele braço de rio já tivesse ocupado mais espaço e depois recuado. A vegetação ressecada, a areia mais grossa, cinza-clara. A única árvore ficava num barranco. Parecia morta, inclinada um pouco para a esquerda, no sentido da correnteza. Barata a golpeou com o facão. O tronco retumbou com um estalo seco: “Vamos empurrar, fazer pressão pra ver se ela aguenta.” O que restou da árvore estava bem fixado. O ajudamos a subir, pois não havia onde se agarrar, a não ser no tronco bifurcado lá em cima: “Ela aguenta bem. Vamos acampar aqui.”

Enquanto Barata, Camelo e João Maioni amarravam e abriam o paraquedas, Milk e eu entramos no rio. A água era tão pura, tão cristalina, que a primeira reação que tive foi bebê-la. Logo adiante havia um tronco de árvore submerso e depois a cachoeira, que formava uma piscina gelada. Lá em cima, ao redor, a vegetação verde, úmida.

“Que cenário, meu! Parece um filme do Tarzan. E essa água? É uma obra-prima”, exclamei.

“Mas não bebe, seu louco-pateta”, avisou Milk.

“Por que não? É água mineral, puríssima.”

“Água mineral? Acho que não... Aqui parece que a mente descomprime. Tá sentindo? Tô muito a fim de fumar um e nadar.”

Seguindo as instruções do Barata, organizamos o acampamento. O paraquedas proporcionava um bom espaço, confortável para cinco. O fogareiro foi montado lá fora. Os garrafões de vinho foram amarrados pelas alças e mergulhados no rio para que se conservassem frios. Camelo e João Maioni fizeram o caminho de volta. Foram abastecer o cantil e o outro garrafão com água potável.

Barata fez dois copos de arroz com quatro de água. Fogo baixo. Não precisa tampar a panela. Quando a água começa a ferver, põe um pouco de sal. Secou, tá pronto. Pra acompanhar, os entalados de ervilha, feijão preto, legumes, milho, presuntada Swift e sardinha. Cada um tratava da própria louça. O cozinheiro do dia cuidava da panela, que precisava estar sempre limpa, à disposição. “Primeiro esfrega com um pouco de areia grossa, depois lava bem com o sabão e a esponja; agora põe os talheres dentro, enche a panela até a metade e deixa a água ferver. Assim fica tudo esterilizado”, disse Barata.

Agora o rio refletia uma longa estrada de sol; o horizonte, com as árvores tristes recortadas ao fundo, ia se firmando em tons dourados de azul-amarelo-branco-laranja-lilás-vermelho-violeta-azul, uma essência melancólica e silenciosa de cores. O efeito era tão intenso que só um louco tentaria superá-lo com palavras. Aos poucos, como se retornasse de uma viagem ao início do mundo, fui percebendo a presença de uma voz:

“be.....ber......vi.....nho .... e....fu... mar.... um... tá.... fi.....can....do.... es....cu...ro........ trouxe pilha pra lanterna, Barata?”

“Vamos fazer uma fogueira.”

De manhã, o banho nos arredores da cachoeira, se secar ao sol e em seguida a excursão pela mata, a partir da outra margem do rio. Ali, a vegetação parecia um trecho de Mata Atlântica. Antas, cervos, lobos-guará; gambás, macacos-prego, quatis; tamanduás-bandeiras? Só pássaros e insetos. Não avistamos nenhum outro animal, mesmo nos embrenhando. Ou estavam extintos ou então preferiam habitar a selva mais densa.

“Os bichos devem ter se afastado, é isso. Não podemos esquecer que aqui é uma fazenda”, arriscou Barata.

“Sério? Eu queria ver um gato selvagem ou um cachorro-do-mato”, disse Camelo.

“Esse acampamento já tá enchendo o saco!”, gritou João Maioni. Ele esquecera que dia da semana era aquele.

“O quê, demente-deprimido? Criatura do além! DOIDO!”

Um buraco de tatu.

“Entra aí, Camelo. Tem uma gata selvagem te esperando lá dentro.”

“Olha esse buraco, que incrível! A natureza tem as suas próprias e imutáveis regras... Cara, sabe como eu me sinto aqui? Como se a gente estivesse estabelecendo uma aldeia no meio da mata. Tive essa sensação quando cheguei à Asa Norte. Brasília tinha só dez anos. Eu vi a transformação. Iam pipocando construções modernas em meio à vegetação. De um lado, as superquadras com blocos de seis andares, elevadores, ruas asfaltadas. E aí eu atravessava a rua e entrava numa mata de cerrado ainda intocada, com bichos e plantas estranhas.”

“Os irmãos Villas-Bôas teriam orgulho de você, Camelo.”

“Vocês viram que aqui a vegetação é diferente?”, disse Barata.

“Diferente de onde? Da 103?”

Exploramos a mata fazendo um semicírculo até atingir a nascente da cachoeira. Calculamos uns cinco metros de altura. Acendemos o base que Camelo levou. Lá embaixo, a piscina natural tinha quatro faixas de cores bem definidas, do azul-claro ao verde-escuro ao tom enferrujado ao transparente. Se fosse uma competição, cada nadador escolheria a cor de sua preferência. Saltamos. Menos Camelo, que não sabia nadar. Olhei pra cima. De tão sólida, a água jorrava como uma muralha.

Nadamos em direção ao acampamento.

Era o quarto ou o quinto dia? Tínhamos programado dez. O espírito da vida selvagem. Isso abria o apetite. Na hora do almoço, de dois passamos a fazer quatro copos de arroz. Mas Barata interveio:

“Faz três copos só, Milk. Tô achando que o arroz não vai dar.”

“Que merda de curso de sobrevivência na selva foi esse que você fez? Errou o cálculo, esquizofrênico-anormal?”

“Errei o cálculo? Errei o cálculo? Fuma menos, meu! Se toca.”

O leite condensado era pra adoçar o café da manhã. A lata em uso era embrulhada com plástico e presa com cordão na alça do garrafão de água na beira do rio. Isso afastava as formigas. A estratégia articulada pelo Barata durou pouco. Tão logo liquidamos os biscoitos recheados e as barras de chocolate, começamos a cobrir as bolachas salgadas com camadas de leite condensado. Até que o estoque de bolachas salgadas acabou e surgiram os sanduíches de pão Pullman com leite condensado. Do nada, o João Maioni inventou uma papa de leite em pó com... leite condensado. Não era exatamente uma invenção. Se não fosse o Maioni, outro teria tido a mesma ideia. Mas o mérito foi todo dele.

Barata tentou nos refrear. No entanto, percebendo a inutilidade da coisa, ele próprio se descontrolou. O mingau fantástico idealizado pelo Maioni arrasou de vez com os suprimentos do leite em pó e do leite condensado. Logo, os enlatados usados como acompanhamentos passaram a ser consumidos como gulodices. Sanduíches de presuntada e sardinha. Quando o estoque disso acabou, sanduíches de margarina, milho e ervilha, e os de seleta de legumes. Agora na despensa do acampamento só havia Nescafé, duas latas de feijão preto, um garrafão de vinho quase cheio e fumo.

“Vamos até o caseiro”, disse Barata.

“Já que tem garrafão sobrando traz mais água. Não esquece.”

Arroz, mandioca e um pouco de açúcar. Foi só o que eles conseguiram. Em vez de mandioca não podiam ter descolado batata? Qualquer cozinha tem batata de sobra. “Os caseiros são gente pobre”, justificou-se Camelo. O arroz era marrom-avermelhado, tinha até casca. “O lance é cozinhar a mandioca primeiro, aí lava a panela e aí faz o arroz. Esse arroz aí precisa cozinhar mais. De manhã, idem. Aí lava a panela, e depois ferve a água do café”, disse Barata.

“E frutas? Será que a gente não consegue?”

“Já exploramos o mato e não vi fruta nenhuma, fiquei ligado nisso. A não ser frutinhas já bicadas pelos pássaros.”

“São mais quatro dias até o pai do Maioni vir nos pegar.”

“Pelo menos tem vinho e fumo.”

“Um bom indicativo de que tudo está indo bem.”

“Esquizofrênicos-abobalhados. Acendam logo um, FIRE NOW!

O azul-escuro profundo estava tomado de estrelas tão brilhantes, tão baixas e tão juntas que pareciam o limite duro e intransponível de algo sufocante, incompreensível. “O céu de Brasília”, disse Camelo. Sim, mas não é só isso. O que o homem antigo que habitava o cerrado imaginava olhando esse céu? Há alguma coisa sagrada aqui, eu disse. “É certo que o homem primitivo foi hipnotizado por esse céu e o entendia perfeitamente”, disse Camelo. Então perdemos essa capacidade, respondi. “E dom Bosco? Como é que no século 19 ele teve a visão de Brasília? O berço do terceiro milênio, às margens de um lago? Isso me inquieta”, disse Barata. “Portadores de mentes capciosas e estranhas, ouçam-me: Brasília é outra dimensão. Atendemos ao chamado, não há volta, aceitem isso”, invocou Milk. Essa perspectiva ativava um circuito de aflição e angústia. João Maioni tremia — e a voz dele também.

Eu estava quase dormindo quando uma luz atravessou o nylon do paraquedas. Ali de dentro dava para perceber que a luz abria e fechava. Parecia dia. Um silêncio absurdo, ao redor tudo absorvido pela claridade súbita. Sussurrando, chamei o João Maioni, que dormia ao meu lado:

“Vê isso! Vê, rápido.”

“O quê?... Fica quieto, não se mexe, não se mexe...”

“Mas o que é isso?”

“Não fala nada, não fala nada, finge que tá dormindo. Não olha, não olha...”

“Mas de onde veio essa luz?”

“Esquece, esquece...”

Agora Maioni estava com a camiseta enfiada na cabeça:

“Seja o que for, será uma experiência traumatizante.”

Uns três minutos depois a luz se foi. Chamei os outros.

“Uma luz?”

“Uma luz imensa, que abria e fechava. Parecia dia.”

“Estamos cercados”, disse Milk.

“Cercados? Por quem?”

“É o sinal. Se preparem.”

“Para aí, para aí! Como era essa luz?”, disse Barata.

“Uma luz imensa, que abria e fechava e iluminava tudo, parecia dia.”

“Não é possível”, ele disse, “deve ser alguém com uma lanterna ou um holofote.”

“Mas o que alguém iria fazer com um holofote no meio do mato? Não tem sentido.”

Barata pegou a lanterna e saiu da barraca:

“De que direção a luz veio?”

“De trás de você.”

Ele se afastou:

“Fica olhando aí de dentro. Vou direcionar a lanterna acesa para a barraca.”

A lanterna emitia uma claridade pálida, sem importância. Quando Barata voltou, falei:

“Não tem nada a ver, não se compara. A luz era imensa, abria e fechava, e clareava tudo. Parecia dia, mas um dia artificial.”

De manhã cedo, depois do café horrível, investigamos a área. Passamos um bom tempo indo e voltando, subindo e descendo, atentos aos detalhes. Não havia vestígios de pessoas ou veículos. O espaço do acampamento era inacessível mesmo para um jipe possante. Segundo Barata e Camelo, estávamos de papo-furado. Fiquei sem ação, não tive tempo de pensar, a não ser chamar o Maioni, argumentei. A melhor estratégia foi o silêncio, Maioni respondeu. “Silêncio? Se a gente tivesse testemunhado isso, todos nós juntos, ao mesmo tempo, seria um contato inédito, até mesmo científico. Fomos sondados por mentes evoluídas que provavelmente captaram o medo e se afastaram. Paranoicos-incompetentes”, disse Milk.

Agora, as estrelas pairavam mais baixas e mais brilhantes ainda. Ficamos acordados, bebendo e fumando em silêncio. Talvez a luz viesse nos visitar outra vez.



Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
LEVA UM CASAQUINHO.


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