Em meados dos anos 1980, um comercial de TV muito popular anunciava um shampoo anti-caspa que parecia remédio, mas era muito mais do que isso. Não era um simples produto, o mais da mesma coisa: esse era diferente, muito melhor. Parecia remédio, mas não era.
O bordão do comercial ganhou o imaginário da população geral. O nome Denorex passou a ser utilizado para tudo aquilo que não era o que aparentava ser. “Parece... mas não é”.
Se para Nietzsche havia singular diferença entre o que se dizia e a verdade atrás de tanto palavrório, façam as contas nos dias de hoje. Virou profissão. Enfim... ‘abraça’ quem quer. O discurso continua um livre pássaro a desbravar o horizonte azul. Nada mais romântico. Já a crença, ...
Num momento onde retornamos à repetição da história, onde a forte impressão é a de involução, não há como deixar de lembrar de certos alfarrábios. É o caso da obra máxima de Guy Debord, “A Sociedade do Espetáculo”, datada de 1967. Ainda que não haja nada muito inovador, ‘revolucinário’ ou inédito no citado trabalho, vez e outra, certos trechos da obra (ou a obra inteira) acabam voltando à memória.
Em que pese “A Sociedade do Espetáculo” possuir um viés mais voltado para o que então recebia o nome de ‘luta de classes’ (habilmente substituído nos tempos contemporâneos por ‘colaboração de classes’) e tom mais próximo do panfleto ou manifesto, tal obra promete ser um clássico porque também se atém a uma natureza mais ‘do inconsciente’ que ser humano algum tem a ousadia de assumir.
Como o momento é de ‘superfície das coisas’ (produzindo as ‘gritarias’ e cisões que habitam o coração da depredação do espaço do debate público nos tempos atuais), torna-se razoavelmente difícil verificar o eixo psicológico que a obra pode oferecer. Um ponto importante, mas que se perde: “A Sociedade do Espetáculo” não trata da ‘espetacularização’ de tudo, ou da vida, mas dos aspectos inconscientes de nossos gestos que mostram as falhas de nossas intenções em direção a algo.
“A Sociedade do Espetáculo” é um livro/filme que evoca um retorno àquilo que é, sem a tal ‘mediação das imagens’ ou ‘mediação das representações’, troço abundante até mesmo na maneira como seguramos a xícara de nosso café. Qual é o ponto onde somos reais, onde representamos, onde produzimos uma imagem tornada pública, onde investimos no ‘imagético’ por conta da inviabilidade de sermos reais?
É uma obra de divisões quase didáticas, alguns aforismos breves e profundos, outros mais extensos e de igual impenetrabilidade. Em certos trechos, análises que indicam uma idéia de sociedade que erra mais do que acerta, independente da cor preferencial (ligeiramente anárquica pelo sentido clássico) de Guy Debord. Ele indica uma crise humana que se avizinha (lamentavelmente!) e que começa a se materializar com imensa força nos dias de hoje.
Guy Debord desejava relações humanas (ou de força, ‘poder’, mesmo num sentido mais foucaultiano do conceito) universais onde as pessoas fossem livres e iguais: ninguém tendo relação assimétrica ou hierárquica com as demais pessoas.
Como desejo, muito nobre (e tremendo trabalho de vulto!). Como efetivação, ...
A releitura da obra, em presente momento, é cabível. Uma utilização para lá de excessiva de todos os recursos de imagem para uma espécie de ‘capital moral’ anda passando dos limites: não somos nós mesmos. Damos ao outro certo acesso somente pela mediação controlada da imagem que nos representa.
Deve-se avisar ao(à) querido(a) freguês(a) dessa modesta Mercearia que o motivo de sugerir tal releitura está na quantidade de desequilíbrio (o pessoal especialmente) em momentos chave dos encaminhamentos históricos quando o sangue deveria estar gelado. Busca-se um protagonismo que pode danificar a vida de milhões, mas não se suporta a pressão que tal responsabilidade naturalmente gera.
O resultado das eternas tentativas de reificação, algumas já notadas historicamente por muita gente, é a condução da vida a medidas de unidades. O que é produzido não se incorpora no ser e as narrativas que nos alcançam não conseguem apagar a ‘prova de honra’: as costumeiras privações.
‘Entorta-se’ a história, uma voz narrativa que em muitas vezes não existe e arrota distorção. Ao primeiro sinal do pau-de-luz, o descontrole desse ser mediado por sua representação vem à tona: uma performance semelhante a alguém tomado por uma entidade supra terrena, a descompensação em situações críticas no lugar de alguma serenidade.
Paixões, nos períodos adequados, são até bem-vindas. Em outros, tal elemento fere qualquer autoridade para petições morais. Em meio a esse sentimento incendiário, vem a surdez. Não se ouve mais o outro, o diálogo se apaga e até mesmo os laços afetivos mais resistentes desaparecem imersos em profundas mágoas.
“A Sociedade do Espetáculo” é leitura que se deveria fazer naqueles momentos em que impera o silêncio. Talvez não seja o caso desse período atribulado que enfrentamos todos os dias. De qualquer forma, vale a visitação. Numa época em que membros de uma mesma família deixam de se falar por convicções quase sempre vazias e sem grandes lastros, um tempo em que ‘o que eu acho’ é mais importante de ‘o que nós somos’, vale passear por essa leitura. Guy Debord se imbuiu de uma vontade. Nós, do jeito que a banda anda tocando, estamos nos esforçando em enrubescer Torquemada.
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