Tuesday, April 19, 2016

CANTO DE PÁGINA SAÚDA O BELO DISCURSO DE MÁRIO VARGAS LLOSA AO GANHAR O NOBEL

por Chico Marques


Poucos escritores são tão premiados quanto Jorge Mário Pedro Vargas Llosa. Já recebeu por sua vasta obra o Prêmio Biblioteca Breve, o Prêmio Romulo Gallegos, o Prêmio Príncipe Asturias de las Letras, o Prêmio Planeta e o Prêmio Cervantes. Todos eles, ítens importantíssimos na carreira de qualquer escritor de língua espanhola.

Então, seis anos atrás, veio finalmente o prêmio que o ilustríssimo Marquês de Vargas Llosa -- título que recebeu recentemente do Rei Juan Carlos da Espanha -- mais esperava ganhar: o Nobel da Literatura, "por sua cartografia das estruturas de poder e suas imagens mordazes da resistência do indivíduo, sua rebelião, sua derrota", para citar as palavras utilizadas pelos acadêmicos suecos que o premiaram.

Autor de romances extremamente densos, que viraram clássicos do chamado "realismo mágico latino-americano", como A Casa Verde, Batismo de Fogo e Conversa na Catedral, Mário Vargas Llosa gosta de alternar sua seriedade com tramas farsescas extremamente divertidas como Pantaleão e as Visitadoras e Tia Júlia e o Escrevinhador. Sem contar sua investigação sobre Canudos através de uma releitura muito interesante de Os Sertões de Euclides da Cunha, que se chama A Guerra do Fim do Mundo, e que foi um grande sucesso editorial aqui no Brasil nos Anos 1980.

Aos 80 anos, esse grande mestre nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, segue firme escrevendo ensaios semanais para vários jornais e publicando pelo menos um livro por ano, seja um novo romance ou novas coleções de contos ou de ensaios. Curiosamente, acaba de chegar às livrarias brasileiras um volume extremamente simpático com a íntegra do discurso de Vargas Llosa ao receber o Nobel. Trata-se de Elogio Da Leitura, da Editora Simonsen, com base em Santos, SP.

Ao longo de 48 páginas desta bela edição de capa dura, Vargas Llosa passeia por seu passado no Peru, por seus tempos em Londres e Barcelona, pelas preferências literárias que mais influenciaram sua formação como escritor e, claro, por suas inclinações políticas.

Aos 80 anos de idade recém completados, o Marquês de Vargas Llosa segue como um impávido colosso da literatura mundial, para o orgulho de todos nós, seus contemporâneos -- e para mmim em particular, pois tive o imenso prazer de ser seu aluno em aulas memoráveis na Universidade de Brasília em meados dos Anos 1980, quando perma neceu na capital por alguns meses na condição de professor visitante.

Para encerrar, fiquem com um trecho de Elogio À Leitura, só para dar água na boca.


De todos os anos que vivi em solo espanhol, os mais fulgurantes de minha recordação foram os cinco que passei em minha querida Barcelona, no começo dos anos setenta. A ditadura de Franco ainda estava de pé e ainda fuzilava, mas já era um fóssil em farrapos e, especialmente no campo da cultura, era incapaz de manter os controles de antes. Abriam-se nesgas e fissuras que a censura não conseguia tapar e por elas a sociedade espanhola absorvia novas ideias, livros, correntes de pensamento, valores e formas artísticas até então proibidos como subversivos. Nenhuma cidade aproveitou tanto ou melhor do que Barcelona esse começo de abertura, nem viveu uma efervescência semelhante em todos os campos das ideias e da criatividade. Ela se converteu na capital cultural da Espanha, o lugar onde era preciso estar para se respirar o prenúncio da liberdade que estava por vir. E, de certo modo, era a capital cultural da América Latina, pela quantidade de pintores, escritores, editores e artistas procedentes dos países latino-americanos que ali se instalaram ou que iam e vinham de Barcelona, pois lá era onde precisava estar quem quisesse ser poeta, romancista, pintor ou compositor em nosso tempo. Para mim, aqueles foram anos inesquecíveis de companheirismo, amizade, conspirações e fecundo trabalho intelectual. Assim como havia sido Paris, Barcelona era uma Torre de Babel, uma cidade cosmopolita, universal, onde era estimulante viver e trabalhar, e onde, pela primeira vez desde o tempo da Guerra Civil, escritores espanhóis e latino-americanos se misturavam e confraternizavam, reconhecendo-se donos de uma mesma tradição, aliados em uma empresa comum e com uma certeza: que o final da ditadura era iminente e que na Espanha democrática a cultura seria a grande protagonista.

Embora não tenha ocorrido exatamente daquele jeito, a transição espanhola, da ditadura à democracia, foi uma das melhores histórias dos tempos modernos, um exemplo de como, quando o bom-senso e a racionalidade prevalecem e os adversários políticos põe de lado o sectarismo pelo bem comum, podem ocorrer eventos tão prodigiosos quanto os dos romances de realismo fantástico. A transição espanhola, do autoritarismo à liberdade, do subdesenvolvimento à prosperidade, de uma sociedade de contrastes e desigualdades econômicas a um país de classe média, sua integração à Europa e sua adoção, em poucos anos, de uma cultura democrática admiraram o mundo inteiro e precipitaram a modernização da Espanha. Para mim, foi uma experiência muito emocionante e instrutiva vivê-la de muito perto e, em certos momentos, desde dentro. Faço votos de que os nacionalismos, a praga incurável do mundo moderno e também da Espanha, não estraguem esta história feliz.

Detesto toda forma de nacionalismo, uma ideologia – ou melhor, religião – provinciana, míope, excludente, que recorta o horizonte intelectual e dissimula em seu seio preconceitos étnicos e racistas, pois converte em valor supremo, em privilégio moral e ontológico, a circunstância fortuita do lugar de nascimento. Juntamente com a religião, o nacionalismo foi a causa das piores carnificinas da história, como as duas guerras mundiais e o atual banho de sangue no Oriente Médio. Nada contribuiu tanto como o nacionalismo para que América Latina tenha se balcanizado, se ensanguentado em conflitos e disputas insensatas e desperdiçado recursos astronômicos com a compra de armas, em vez de construir escolas, bibliotecas e hospitais.

Não se deve confundir o nacionalismo de viseiras e sua rejeição ao “outro”, sempre semente de violência, com o patriotismo, um sentimento saudável e generoso de amor à terra onde viemos ao mundo, onde viveram nossos ancestrais e se forjaram nossos primeiros sonhos – paisagem familiar de geografias, entes queridos e acontecimentos que se transformam em marcos da memória e escudos contra a solidão. A pátria não são bandeiras, nem hinos, nem discursos laudatórios sobre heróis emblemáticos, mas um punhado de lugares e pessoas que povoam nossas recordações e as tingem de nostalgia, a sensação cálida de que, não importa onde estejamos, há um lar para onde podemos voltar.


ELOGIO DA LEITURA
(In Praise of Reading and Fiction, 2015)
Mário Vargas Llosa
tradutor
Larry Fernandes
editora
SIMONSEN
48 páginas



Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO

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