Thursday, April 21, 2016

É RUIM, É FEIO, MAS É A SUA CARA (por Marcelo Rayel Correggiari)



“(...) Hoje não arde o óleo das lanternas
Aqui, o frescor da majestade exala doces aromas
E a luz da sala imita o brilho de quem bem governa
Rito encenado para o ouvinte atento
ao sentido que a palavra evoca,
bem mais que aos comedores de pipoca
que infestam as plateias destes tempos.
Que notícias apareçam,
já no título
Aos senhores, nenhuma novidade.
Parecendo real, nada é verdade.
Musa igual, do real e do ridículo.
Quando puder, sem nos causar problema,
que a cena espelhe a vida, e a vida, a cena (...)”


O desconhecimento da cultura britânica faz com que todos reverenciem o dramaturgo William Shakespeare, que daqui a dois dias, no sábado, completa 400 anos de seu desaparecimento.

‘Loas’, palavras ornadas com vozes empostadas em algum ‘café com livro’ mais próximo de nossas casas. Shakespeare no café, no almoço e na janta. Quem sabe, na ceia. O desconhecimento da cultura britânica faz com que todos reverenciem o enfant terrible de Stratford-upon-Avon.

Essa Mercearia, na fatigante, mas trepidante, missão de bem servir sua freguesia, lembra que o conhecimento da cultura britânica faz com que todos lembrem que Shakespeare, à época, não era somente o único ‘rostinho bonito’ da dramaturgia. Ele tinha seus adversários, companheiros de escrita e encenação, um universo de escritores tão ou até mais brilhantes do que ele.

Shakespeare não foi o único a endereçar ‘a consciência do real’ para a platéia de seu tempo. Ele tinha pares em seu encalço. Aliás, que pares!


O trecho acima, que abre a Mercearia no dia de hoje, é da peça “The Staple of News”, traduzido para o português como “O Mercado de Notícias”, do também dramaturgo inglês Ben Jonson (Westminster, 11 de junho de 1572 – Westminster, 6 de agosto de 1637).

Sim, imaginem nosso atraso. Entre índios escravizados e um tremendo saque de pau-brasil em terras tupiniquins (qualquer semelhança com os tempos atuais é por conta do(a) freguês(a)), os sujeitos lá na ilha voavam baixo com provocações de uma qualidade insofismável.

A peça foi resgatada num documentário de 2014, do cineasta gaúcho Jorge Furtado, também com o nome de “O Mercado de Notícias”. Jorge tinha o desejo de fazer um filme sobre as transformações que ocorrem na imprensa nos dias de hoje. Ao pesquisar sobre o tema, ‘trombou’ com a peça de Jonson, fundamentalmente (e bem a grosso modo) uma história que conduz alegremente a plateia pelas peripécias da abertura de uma agência de notícias.

Datada em torno de 1623, é de assustar a atualidade dos ‘pormenores’ apresentados pelos personagens da peça: nada lá muito diferente do que encontraríamos agora. ‘Id est’, o ser humano caminhou muito, mas não saiu do lugar.

Jânio de Freitas, Mino Carta, Cristiana Lobo, Renata Lo Prete, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, José Roberto Toledo, Luis Nassif entre muito, e muitos, e muitos, são alguns dos nomes que participam do filme. Na berlinda, a profissão de jornalista, de repórter, as artimanhas do poder com o ‘quarto’ poder, um espaço (ou atividade profissional) que, como na vida, tem de tudo: de gente doida, ou aqueles que aspiram galgar os mais elevados postos da memória histórica, até uma horda de picaretas.


Jorge Furtado procurou leveza em seu filme. Nos depoimentos, nada de muito assustador ou extraordinário. De fato, nada do que nós, mortais anônimos, já não saibamos. Em tempos de quantidades consideráveis de políticos assumindo paternidade (ou não!) de filhos com jornalistas, essa ‘superfície de convergência’ entre política e jornalismo é de mitigar a relevância cultural do ‘bumba-meu-boi’ no cenário folclórico do Maranhão.

O ‘plus’ desse documentário é a encenação da própria peça por atores locais de Porto Alegre na condução dos temas abordados pelo filme. Cenas da encenação são intercaladas com os depoimentos dos jornalistas, conferindo ao trabalho seu traço de leveza e, ao mesmo tempo, encanto difícil de conter.

“(...) Todo mundo mente. Quando não mente, omite. (...)”. Essas palavras da Renata Lo Prete, na parte do filme que fala sobre ‘as fontes’, mostram bem a barafunda onde uma população em épocas de crise, na titânica tentativa de permanecer viva, está enfiada. Tudo é pantanoso. Como bem disse Ben Jonson: “(...) Parecendo real, nada é verdade. (...)”.

Segundo Jânio de Freitas: “(...) Cedo eu entendi que a informação de político é uma informação viciada por interesse dele, por menos que ele faça isso intencionalmente. Mas ele não trai o seu interesse... que não é o meu! (...)”. O que nos levaria a entender que quantidades abissais de tempo e energia são necessárias na filtragem do que um homem/mulher de vida pública enuncia.

Talvez seja isso (além de filhos) que coloca ombro-a-ombro as duas atividades: uma espécie de afinidade para a irrealidade (e o excesso dela!) na hora de lidar com pontos cruciais que afetam direta e brutalmente a vida de milhões. É, no mínimo, para se ter algum pé atrás quando os dois entram em campo.

É difícil encontrar algum trabalho muito ruim do Jorge Furtado. Tem de fazer força! “O Mercado de Notícias” é mais um de seus excelentes trabalhos. Podem ir sem medo: é diversão na certa.


Se os políticos são ‘a nossa cara’, e o jornalismo possui certa intersecção com a política (pelo menos em lidar muitas vezes com o que há de mais sórdido na natureza humana), observar tanto um quanto outro pode ser um saudável exercício de se saber em que pé nos encontramos como civilização ou projeto nacional. A população hoje, em uníssono, é quase categórica: “Tá osso!”.

No último domingo, foram horas na mão dos dois: desde coberturas questionáveis a representantes dedicando sua escolha à família, à mulher, aos filhos, à pátria, nomes históricos pelo viés mais pernicioso: de revolucionários sanguinários a militares torturadores.

Foi ruim, foi feio, mas, de repente, é bem a nossa cara.

Não sei se cabe reclamar: a porta de tais postos públicos não estava aberta para qualquer um entrar.

Quem sabe, no último domingo, estivemos frente-a-frente com o nosso inconsciente. Contudo, nos casos de reclamação, o(a) caro(a) freguês(a) pode procurar nosso SAC. Ou ligar para o 0800.

O MERCADO DE NOTÍCIAS
Brasil/2014
95 minutos
Data de lançamento: 07 de agosto de 2014.
Produção: Jorge Furtado
Produção Executiva: Nora Goulart
Direção: Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Fotografia: Alex Sernambi e Jacob Solitrenick
Montagem: Giba Assis Brasil

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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