Thursday, April 14, 2016

ILEX PARAGUARIENSIS (por Marcelo Rayel Correggiari)




Uma das principais preocupações dessa Mercearia, bem como do nobre blog que a hospeda, é evitar a todo custo apologias sobre o que for. Em especial as relacionadas com ervas.

Toda erva é boa? Como tudo nessa vida, há o lado bom e ruim das coisas. Alguns diriam que tudo depende da dose, algo que dá boa margem para controvérsias. Como na natureza, há situações e até mesmo pessoas ao longo da vida que, se não transformadas, são altamente tóxicas.

Tudo dependeria do gosto, de como o organismo reage a determinado princípio ativo, da predileção e do que Kant chamaria de ‘inclinação’. Bom... entende-se? Não sabemos, ao certo. É bem raro se ter exata noção do porquê gostamos daquilo que gostamos.

Nesse passeio pelos ‘mistérios da vida’, talvez encontrássemos belas justificativas para o nosso mau-caratismo; ou para todas aquelas coisas que julgamos inexplicáveis e que atrapalham pacas. Sim, aquele universo de padrões que se repetem e não damos conta para um ‘basta’ na tragédia pessoal.

Quando a dor interna é gigantesca, lá estamos nós enfiando os pés pelas mãos. Como seres racionais, não deveria ser assim. Porém, acontece: ervas, bebida, comida, trabalhos intermináveis, práticas esportivas à exaustão, sexo, viagens, agressividade, diversas substâncias, auto-flagelo. Se colocássemos na ponta do lápis o custo (e o impacto!) da operação, entraríamos para um monastério beneditino e nunca mais poríamos a cara na rua.

De repente, saímos de casa para vermos se nós mesmos estamos na esquina. Em geral, não estamos. Mas vale o passeio: fatalmente encontramos alguma ‘tchurma’ que nos ajuda a passar o tempo nesse fio terminável entre a maternidade e o cemitério.

Entre perdas e danos, quando essa ‘dorzinha’ é bem dilacerante, nos entregamos a esses passatempos que encurtam o fio. Uns mais nocivos, outros mais benevolentes. Talvez isso explique certas ‘inclinações’ (alô, Kant! Aquele abraço!). Tem filosofia de bar, mas também tem filosofia regada a Ilex Paraguariensis.


Ilex Paraguariensis é o nome científico de um determinado tipo de erva que faz a cabeça de qualquer civilização entre o estado do Paraná e a Terra do Fogo. Sim, a erva mate! Só para se ter uma idéia (maldita resistência essa, a minha, contra a nova ortografia da Língua Portuguesa!), se você chegar para um argentino e dizer que ele perdeu o emprego, está com uma doença terminal, que a mulher dele distribui ‘pro geral’... vida que segue. Mas se você avisar que ‘no hay el mate’, pode se preparar que até Deus será destituído do posto de Si mesmo.

A versão das praias santistas é a da folha torrada e moída. O que deve causar um enorme transtorno para as civilizações entre o Paraná e a Terra do Fogo quando se instalam na cidade ou vieram curtir ‘el verano’ nesse ponto remoto dos mares-do-sul. Deve ser algo parecido com maionese na pizza... mas, tudo bem.

Nessas humilíssimas praias, o elo entre o vício do gaúcho (que não é somente um morador do Rio Grande do Sul) e a verve transcendental dos indianos (chineses, japoneses e toda aquela galera do Extremo Oriente): a folha torrada e moída na infusão. O bom e velho chá.

Se o matogrossense pode enfiar o pé na jaca com o ‘tereré’, por que os santistas também não podem gelar a beberagem?! Assim, nasce uma marca dos tempos modernos de algumas praias entre Espírito Santo e Paraná: o tal ‘mate gelado’!

Tal refrescância é uma marca local. Sendo Santos uma ‘cidade de passagem’, das várias importações feitas de outras culturas, a do consumo de mate gelado talvez seja a que nos caracterize melhor. Não é um cultivo caiçara ‘de raiz’, mas já que está todo mundo partindo para a ‘resignificação caiçara’, de repente, eis um traço desse ‘caiçara urbano’.

Rodando aqui e ali, sul da Bahia, litoral catarinense, montanhas paulistas, interiorzão ‘show-de-bola’, Vale do Jequitinhonha, Vale do Rio Doce (que não é a corporação, mas unicamente a topografia, aliás, linda de morrer!) e as Alterosas¹, foi muito raro (para não dizer ‘nunca’) encontrar o tal ‘mate gelado’. Definitivamente, se a bebida é popular em algum lugar do Brasil, esse local é Santos.

Uma técnica aprendida com os indianos: mesmo seca e torrada, quanto maior o tamanho da folha (quanto mais ‘integral’), mais leve é o sabor. Se a folha for muito picada ou moída, mais acentuado esse sabor se torna (a bebida fica mais escura, inclusive, após o processo de infusão). Entre outros aspectos, a oxidação da folha ‘in natura’ também conta para um gosto mais ‘marcado’ do chá.

Sem querer desmerecer a Isa (dos sucos, que brevemente também será alvo dos olhares dessa Mercearia), quando o ‘coraçãozinho’ aperta, o seu vizinho do Mate da Barra também pode ser uma legítima opção para se ‘espantar a crise’. Capitaneado pelo falante (e quase lendário) Marquinhos, o pit-stop ali pode ser tremendamente estratégico.


A praia do Joinville, para quem não é da cidade, é uma porção da praia do Boqueirão que vai do canal 3 à Av. Conselheiro Nébias (sentido São Vicente-Ponta da Praia). Recebeu esse nome pela referência feita pelos ‘locais’ com à mítica doceria Joinville, à Av. Pres. Wilson (um desses patrimônios imateriais de Santos que ninguém consegue explicar). O Joinville é frequentado por pessoas mais jovens (nem que seja de espírito), belíssimos corpos sarados, vida saudável (pero no mucho) e positividade (de alguma maneira): uma espécie de ‘trading topics’ para qualquer um com intenção de se tornar ‘transadíssimo’.

Ali, o Sr. Marcos assenta seu carrinho de mate, onde também são encontradas generosas tigelas de açaí, suco de abacaxi (que também pode ser servido com açaí e guaraná), além de aluguel de pranchas para o SUP². Dependendo do horário, além de um bom papo com o próprio Marquinhos, o(a) freguês(a) também pode presenciar o proprietário se lançar ao mar para suas costumeiras (quase diárias!) ‘remadas’.

A vantagem de se viver em centros urbanos ladeados por praias: certamente surgirá algum ponto-de-encontro (bem diferente da Fátima Bernardes). O Mate da Barra é um deles. Aliás, e é bom que se diga, dos vários espalhados ao longo das praias de Santos. Cada morador da cidade tem o seu, a sua ‘tchurma’, dos que praticam vôlei aos que jogam ‘beach tennis’, dos que abraçam lindamente a caipirinha (reza a lenda que é uma criação local!) aos que passam o dia inteiro na canoa havaiana. Democrático: dos futebolistas aos que levam seus filhos para empinar pipa e brincar a tarde inteira.

O ser humano: esse bichinho tido como ‘social’ (pero no mucho). Em tempos de polaridades um tanto canhestras, ainda se estende a bandeira branca para simples refrescâncias e conversas desinteressadas. A vocação brasileira para Irlanda do Norte (o brasileiro ainda desconhece esse seu ‘lado’!) dá uma trégua: é possível deixar certas ‘incandescências’ juntas com a pasta-de-dente para se ter algum sossego. Essa modesta Mercearia, a cada dia, acredita mais e mais nisso.

E, certamente, depois de uma simples visita a esses pontos-de-sobrevivência, voltamos para casa com a alma um pouco mais leve e a cabeça um pouco mais organizada.

No caso do mate do ‘Marquito’, tudo isso regado a Ilex Paraguariensis, seco, moído, infuso e posteriormente refrigerado. Com limão ou sem. Em tempos de se redefinir o ‘caiçara contemporâneo’, moderno e urbano, numa avalanche de resignificações, cabe sugerir uma marca local que não se encontra muito por aí. Um refrigério para os ensandecidos dias quentes, mas que pode salvar uma vida.


(¹) Alterosas: nome carinhoso dado à região metropolitana de Belo Horizonte, que engloba a própria capital do Estado de Minas Gerais e as cidades vizinhas.

(²) SUP: acrônimo para ‘Stand-up Paddle’, modalidade de surfe onde o(a) praticante fica de pé sobre um ‘long-board’ e se utiliza de um remo para locomoção.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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