Thursday, April 14, 2016

DEIXA COMIGO (por Ademir Demarchi)



“As coisas pelas quais vivemos são como o brilho distante das asas de um inseto sob a luz de um sol mortal”. A frase é alusiva, cabe para tudo nesta vida, tanto para a possível inutilidade de escrever esta crônica quanto para abrir como epígrafe o livro de um escritor do tipo maldito, desses que são cultuados apenas por outros escritores dessa mesma espécie, que formam uma pequena seita de amantes de livros e escritores esquisitos de livros raros, pequenas tiragens. A frase foi roubada do escritor de romances policiais Raymond Chandler pelo escritor uruguaio Mario Levrero, em seu primeiro romance traduzido, aqui publicado pela Rocco na Coleção Outra Língua sob o título “Deixa comigo”. Só o conheciam no mundo hispânico e quem o traduziu e criou essa coleção foi um desses escritores estranhos, o Joca Reiners Terron, que já teve uma microeditora que faliu como maldita publicando escritores e poetas dessa seita como o Valêncio Xavier, o Manuel Carlos Karam e outros. Levrero é desses raros que se divertem escrevendo e que são buscados com avidez por quem gosta de literatura e usa amigos para contrabandear livros em viagens. Um desses, e que confessa ter usado uma amiga para fazer contrabando de Levrero é o ótimo mexicano Juan Pablo Virallobos, felizmente com todos os livros publicados no Brasil. Terron conseguiu a proeza de publicar pela Rocco 14 livros desses esquisitos, na qual se incluem Cesar Aira, Copi, Arlt, Julio Ramon Ribeyro... Devorei Levrero e agora já estou tentando convencer um amigo a ficar menos tempo numa churrascaria uruguaia e entrar em uma livraria para buscar o póstumo “Um romance luminoso”, de 2005, que Terron chamou de “clássico instantâneo”. E, sim, póstumo, pois Levrero morreu aos 64 anos em 2004 depois de ser uma espécie de jornalista de fundos de redação, pois ganhava a vida escrevendo palavras cruzadas e artigos de todo tipo de assunto para encher os cadernos de variedades. Em “Deixa comigo” é muito divertida a forma como o narrador, um escritor de 50 anos, um extraviado, se debate com outro personagem que é nada mais nada menos que seu superego... Na forma de uma novela policial, ele viaja para uma pequena cidade chamada Penuria, situada próximo de Miséria..., para tentar encontrar outro escritor que enviou um livro para a editora sem endereço e pista para encontrá-lo. Como descobrem nesse um gênio que interessou aos suecos, esse escritor capenga fazendo as vezes de detetive se embrenha na cidadezinha lidando com os tipos mais esquisitos que existem em cidades do interior, como barbeiro, dono de banca, dono de bar e uma prostituta de hora marcada, pela qual ele se apaixona perdidamente. É num diálogo com ela, por exemplo, que se pode ver o tipo de narrador que brinca de gato e rato enganando o leitor, que está nesse livro. A prostituta, já uma espécie encenada de amante, vem pela última vez encontrá-lo e o avisa disso dizendo que foi o marido-cafetão que determinou. “Quero falar com ele, insisti, obstinado” diz o escritor. “O olhar dela era de verdadeira angústia”. “Vai matar você – disse com uma simplicidade acachapante – Você não sabe como ele é”. Eis como o narrador ilude o leitor desviando de assunto: “Não, não sabia como ele era, e de repente tampouco queria saber. Eu também podia mata-lo. E provavelmente ficaria satisfeito em fazê-lo. Baixei a cabeça e me interessou muitíssimo uma manchinha branca sobre meu sapato direito, certamente uma salpicadura de pasta de dentes. Seria fabricada a partir do que, tão branca e pegajosa? Em casa eu tinha um dicionário técnico: quando chegasse em Montevidéu procuraria “pasta de dentes”. Ou melhor “dentifrício”. E por aí vai, até que que a mulher grita: “Ei!” E ele levanta a vista e se pergunta: “Ela estava ali. Como havia entrado?” E ele, com isso, tem continuar seguindo com a estória até inventar outro desvio...




Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho




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