Tuesday, April 5, 2016

HORÁCIO (uma crônica de Carlão Bittencourt)



Horácio andava calmamente pela calçada com a namorada quando ouviu a freada, brusca, violenta. Antes que pusesse olhar para o lado, ouviu a frase, dita como uma sentença:

"Tá morto, Horácio!"

Só teve tempo de empurrar a garota para o outro lado. As balas pegaram em cheio no peito. E foram muitas. Morreu antes que seu corpo caísse no chão. Terminava assim uma vida que começara bem. E prometia ser ainda melhor.

Filho da classe média baixa santista, mesmo assim Horácio estudou numa boa escola. Seus pais se esforçaram, fizeram sacrifícios, tudo para que ele pudesse cursar o ginásio no Tarquínio Silva, tradicional colégio de classe média alta da cidade praiana. Onde, mais do que por seus nomes de batismo, os alunos eram chamados pelos sobrenomes. Pomposos. Arrogantes.

Horácio Xavier de Santos não tinha nada para exibir. Ou esconder. Era um menino comum, como muitos outros, criados no pacato bairro do Campo Grande.

Menino de rua. De ralar o dedão do pé, correndo atrás de bola, nos paralelepípedos do caminho por onde passava a linha do Bonde 17. Menino de empinar papagaio, jogar peão, bolinha de gude e botão. De abafar figurinhas e fazer carrinho de rolimãs. Mais um, como tantos, naquela Santos do começo dos anos 60. Uma criança igual às outras. Absolutamente normal.

No colégio, aprontava das suas. Que moleque é moleque. Não era santo. Nem demônio. Mas tinha um dom nato: um timing perfeito para a gozação. Ninguém sabia, como ele, aproveitar uma situação para tirar um sarro na cara de alguém. Fosse aluno, professor ou qualquer outra pessoa. Horácio perdia o amigo, mas não perdia a piada.

Certa vez, numa aula de desenho geométrico, deu mais uma prova dessa qualidade natural para o humor. Para entendermos a sacada, vamos imaginar o clima instalado naquela classe, a cada aula do temido professor Honório.

Honório era descendente de japoneses. E sabe Deus quanto se orgulhava disso. O dito mestre se considerava um moderno samurai. E sua classe, uma extensão do dojo. Ou seja, naqueles intermináveis cinqüenta minutos, tudo era marcial, rígido, severo. Não havia espaço para conversas ou perguntas. Para nada a não ser desenho geométrico. E perfeição.

A entrada do professor na sala já era uma solenidade digna de impressionar até diplomata de carreira. Honório se vestia de branco. Todo. Exceção feita aos sapatos, pretos e tão brilhantes, que seria possível que alguém fizesse a barba olhando para eles. Um espelho.

Assim que adentrava o recinto, com seu imaculado terno de linho branco, com paletó jaquetão, a classe inteira se levantava. Muda. Em sinal de respeito. E medo. Honório, então, dava a primeira ordem. Imperativa.

"Apague a lousa, rapaz!"

E seu ritual continuava. De braços cruzados nas costas, o professor desfilava entre as fileiras de carteiras. Quem respirasse um pouco mais alto, levava um puxão de orelha. Na hora.

Outro detalhe importante na figura do mestre era os cabelos. Impregnados da pasta para cabelos Gumex, penteados atrás no melhor estilo “asa de pombo”. E na frente, num topete de dar inveja ao próprio Elvis. Desta forma, a cabeleira negra do professor ofuscava até as lâmpadas da sala. Tamanho o seu brilho.

Limpo o quadro negro, a tortura psicológica continuava. Honório pegava um giz, em sua caixa pessoal, e desenhava figuras geométricas absolutamente perfeitas. Sem usar esquadro, régua ou compasso. Apenas a mão. O sádico desalmado.

A classe já sabia o que viria a seguir. Algum aluno, o pobre coitado da vez, iria ser chamado à frente para imitar a perfeição do mestre samurai. Em vão, lógico. Para o delírio silencioso dos colegas. Que choravam de rir sem, no entanto, emitir um único ruído. As lágrimas escorriam pelos rostos infantis.

Aconteceu que, naquele dia, a classe não conseguiu conter as risadas. Nem seria possível. O aluno escalado para a tarefa era desajeitado demais. Fez uma elipse no que deveria ser uma circunferência. A gargalhada foi coletiva, digna de uma claquete de programa de auditório. E explodiu como uma bofetada na cara do professor.

A reação foi imediata. E exagerada. Rubro de cólera, Honório passou uma longa descompostura em todos. Um discurso inflamado, que acabou na pergunta fatal:

"Afinal, o que vocês pensam que eu sou?"

De algum ponto não identificado da classe, a irresistível resposta:

"Pasteleiro!"

Foi Horácio. Um ser humano com tanto senso de humor, inteligência e jogo de cintura deveria se destacar na vida. Naturalmente. Mas deu zebra. Qualquer coisa misteriosa acabou por desviar a sua rota. E levou o rapaz a fazer uma estranha travessia. Um caminho sem volta.

Com vinte e poucos anos, Horácio sumiu da casa dos pais. Sem motivo aparente. Apenas foi embora. Vinha de quando em vez.

De carro novo, roupas caras, relógio de marca. E sempre acompanhado por uma bonita mulher. Aquilo impressionava.

Os vizinhos mais antigos, diziam que trabalhava com vendas. E que era bom profissional. Excelente. Outros, por implicância, viam algo de suspeito por trás de tanta prosperidade.

O fato é que Horácio mudou. Muito. Primeiro da rua de sua infância. Depois, de temperamento. Deixou de ser como era. Pouco sobrou do menino brincalhão, simpático. Ou quase nada. Ficou estranho.

Virou um homem nervoso, assustadiço. Por qualquer motivo olhava para trás. Desconfiado. Agora andava armado. Sempre. Um ex-colega de escola, mais tarde delegado, foi procurá-lo. Sugeriu que fosse embora de Santos. Para longe. O mais rápido que pudesse.

Horácio perguntou por quê. O outro foi claro. Direto. Disse que tinha ouvido de um informante que ele estava com a cabeça a prêmio. Condenado. O tráfico não perdoa. Mata. Droga de vida.

Horácio ouviu o conselho calado. Desconversou. No fim, agradeceu. Foi embora. O policial ficou olhando o amigo se afastar. Sorriu ao notar que ele ainda conservava o mesmo gingado malandro de andar dos tempos de Tarquínio Silva. Depois, ficou sério.

Quinze dias mais tarde, Horácio foi visitar a mãe. Estacionou o carro em frente ao portão da sua velha casa. Ao descer, se deu conta de que estava sem cigarros. Com a namorada ao lado, foi a pé até a vendinha da esquina.

O lugar mexeu com ele. Lembrou-se do tempo de criança. Quantas vezes tinha entrado correndo, esbaforido ali, em sua infância? Impossível precisar. Lembrou da voz da mãe:

"Filho, dá um pulo lá no Seu Manuel e traz um quilo de farinha de rosca. Diz que é pra por na conta!"

Horácio acendeu o cigarro e saiu. Pensou numa tarde em que o time de futebol do colégio iria jogar no Campo do Americana, ali perto, onde depois ergueram o Colégio Primo Ferreira.

Era uma quarta-feira. E fazia sol. Um dos garotos falou alto:

"O jogo é calçado!"

Os meninos sempre se referiam daquele modo a qualquer partida em que o uso de chuteiras fosse obrigatório. Horácio adorava as suas chuteiras, que eram da marca Drible. Um presente de aniversário. O fino. E ficava horas cuidando delas, passando sebo de carne de boi.

Sentiu uma sensação boa, enquanto retornava pela calçada à casa da mãe, lentamente, abraçado à namorada. A mesma autoconfiança dos tempos de criança. Como se nada tivesse mudado.

Ao se aproximar do velho sobradinho, notou que o portão ainda era o mesmo. E que continuava com a tranca quebrada. De repente, uma frase brusca, violenta, atropelou seu pensamento.

"Tá morto, Horácio!"

O resto você já sabe.


CARLÃO BITTENCOURT / 04.04.2016


Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),

um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.

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