Monday, April 18, 2016

PERFUME DE MARESIA (uma crônica clássica de Joaquim Ferreira dos Santos)


Publicado originalmente em O GLOBO
em 01 de Dezembro de 2014



Há muitas maneiras de se viajar pela cidade e uma delas, como sabem os que têm sentido a floração do abricó de macaco às margens da Lagoa, é se deixar guiar pela ponta do nariz. É subir uma ladeira às cegas, procurar as referências para identificar a rua e, pelo que entra nas narinas, pelo doce da fragrância vindo por todos os lados, chega-se à conclusão que aquela ali não pode ser outra – chegamos ao alto da Maria Angélica, no Jardim Botânico, o paraíso natural da dama da noite.

Uma cidade não é feita apenas de concreto, monumentos e paisagens naturais, mas também da geografia organizada pelo olfato. É o aplicativo humano que ao descer do avião, ao pôr os pés na pista do aeroporto, recebe os cumprimentos de uma monumental lufada de maresia dizendo, welcome, você está no Aeroporto Santos Dumont. É apenas a primeira prise alucinatória da cidade. Logo o visitante estará viajando dentro da nuvem de maconha, o espanto que no GPS olfativo identifica a chegada ao Posto 9. No almoço de domingo, ao se aproximar um sopro embebido em picanha, esteja certo: Estação Baixo Gávea.

O Rio de Janeiro cheira. Às vezes bem, às vezes mal – mas há controvérsia sobre o que seja uma categoria ou outra. Há quem torça o nariz para a fragrância personalizada dos shoppings, seja o cítrico do Rio Sul ou o adocicado do Leblon, e desfaleça seduzido pelo odor do churrasquinho de gato na esquina de Botafogo. As feiras são um festival de perfumes a cada barraca, abacaxis e frangos misturados. Aproveite, porém, porque o politicamente correto ameaça passar um desses desodorantes sem cheiro e higienizar a cidade. Na contramão, um carioca radical pede, de quando em vez, uma rápida mortandade de peixe na Lagoa.

Todos os perfumes, inclusive os mais selvagens, são bem vindos. Uma cidade se faz com eles também. Do cheiro dos macacos sobre as árvores do Jardim Botânico ao frescor da chuva de verão batendo na terra do Aterro. A Juliana Paes usa Insolence, da Guerlain – mas é difícil chegar perto. Sem preconceito. Abra suas asas, solte suas narinas e deixe as gotas de Chanel nº 5 apenas para a hora de dormir.

Na geografia dos aromas, a brisa marinha bate na murada da Urca e as maçãs verdes dão o tom na entrada do Copacabana Palace. A Lapa é bafo de chope; o Horto vibra os gomos de jaca embaixo do sol de 40 graus. Em alguns quarteirões de Copacabana os mais antigos ainda sentem, na esquina de Barata Ribeiro com Constante Ramos, o éter cheirado por um mendigo classe média, mais tarde personagem de poema de Abel Silva.

Os sovacos das garotas do bloco Suvaco do Cristo são modernamente acobertados pela nova linha de desodorantes sem perfume, mas, na profusão de suores e marchinhas do decorrer do desfile, dizem os que chegarem mais perto, rescende dali uma essência diabolicamente carnavalesca e entorpecedora dos sentidos. Tem ainda as flores mortas do São João Batista, o xixi no amanhecer da Farme de Amoedo e as fornadas, cada vez mais raras, escondidas no fundo das lojas, das bisnagas da padaria. Nas noites de sexta-feira, a rua Miguel Couto é banhada pelo fabuloso azeitado das sardinhas fritas de seu corredor de bares.

Já se catalogou o Rio por todos os quesitos, do patrimônio religioso ao afetivo, mas urge documentar também, sem falsos pudores, toda a sua gama de odores. O botequim que fundou a tradição carioca de cultuar a espécie do pé-sujo chamava-se “Mau cheiro”, na entrada do Arpoador, e já anunciava no nome não estar disposto a afetações. Leila Diniz, adepta da água de colônia, ia lá. São aromas aparentemente idos, mas eis que aparece Carlos Drummond de Andrade, morador das proximidades, na Rua Conselheiro Lafaiete, 60, e diz que não. De tudo fica um pouco: “Abre os vidros de loção e abafa o mau cheiro da memória”.

Foram-se, a propósito, os cheiros que pontuavam a Avenida Brasil e permitiam aos passageiros dos ônibus, indo do subúrbio para o Centro, saber onde estavam sem tirar os olhos da leitura do jornal. Primeiro passava-se pelo Curtume Carioca, na altura da Penha, depois pela Fábrica de Sabão Português, em São Cristóvão. Eram experiências olfativas poderosas, hoje apagadas fisicamente, mas para sempre – ninguém abafa – no vidro de loção da memória carioca.

Resiste, e assim se espera que por muito tempo, a nuvem embebida em cafeína que paira há anos sobre os transeuntes da Rua Marechal Floriano, na calçada do Café Capital. Na contramão do expresso, a loja usa o coador de pano e isso sacode o perfume do pó longe. Imediatamente, na cabeça dos mais antigos, Dóris Monteiro começa a cantar o jingle: “Tomo um, tomo dois, tomo três, porque bom mesmo é Café Capital outra vez”.

Um perfume – sabem os que deram prise de lança no cangote de alguma paquera carnavalesca dos anos 1950 – tem poderes que a madeleine de Proust nem imagina. Materializa namoradas envoltas no patchouli dos anos 70, evoca vitórias do Fluminense no tempo em que a torcida saudava o time com uma viril nuvem de pó de arroz. A pipoca na porta do Metro Copacabana, o Angu do Gomes na carrocinha do Largo da Carioca. Um perfume desenha uma cidade.



Joaquim Ferreira dos Santos
é carioca da gema 
e um dos cronistas mais notáveis
que o Brasil já produziu

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