Sunday, October 25, 2015

POEMINHA DA SEMANA (por Geraldo Carneiro)



OLHOS DE RESSACA
Geraldo Carneiro

minha deusa negra quando anoitece
desce as escadas do apartamento
e procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente

eu fico na cama pensando na vida
e quando me canso abro a janela
enxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente
penso na morena do andar de baixo
e no meu destino cego, sufocado
nesse edifício sórdido & sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores

e a minha deusa corre os esgotos
essa rede obscura sob as cidades
desde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas dos encanamentos

eu escuto o samba mais dolente & negro
e a luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca

e a minha deusa, a pantera do catre
consagrada à fome e à fertilidade
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes os olhos onde a lua

eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo o álbum de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua

se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria a herói como você, meu caro
pra fazer barulho e preservar os cabarés.




Geraldo Carneiro nasceu em Belo Horizonte em 1952, 
mas vive no Rio de Janeiro desde os três anos de idade.

É poeta, roteirista de cinema e TV e teatrólogo.

Participou ativamente da geração de poetas da chamada 
poesia marginal (da qual sempre se considerou marginal).

Estreou em livro quando ainda era estudante de Letras
na PUC-Rio em 1974, ao lado dos poetas Cacaso, 
Francisco Alvim, João Carlos Pádua e Roberto Schwarz.

Publicou mais tarde os livros "Verão Vagabundo" (1980), 
"Piquenique em Xanadu" (1988), "Pandemônio" (1993), 
"Folias Metafísicas" (95), "Por Mares Nunca Dantes" (2000), 
"Lira dos Cinquent’anos" (2002), "Balada do Impostor" (2006) 
e "Poesia Reunida" (2010).

Publicou os livros de prosa "Vinicius de Moraes: a Fala da Paixão" 
(Ed. Brasiliense, 1984) e "Leblon: a Crônica dos Anos Loucos" 
(RioArte-Relume-Dumará. 1966), e traduziu sonetos de Shakespeare
na coletânea "Sonhos da Insônia" (1977), ilustrado pelo ator 
e humorista Bento Ribeiro, filho do escritor João Ubaldo Ribeiro.




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