Wednesday, May 4, 2016

BOLEIROS DE AREIA (por Carlão Bittencourt)



A Orla de Santos é um espetáculo. Perto de nove quilômetros de jardins tão lindos que encantaram até ao Guiness Book, o livro dos recordes. Com merecimento.

Pouco além dos jardins, fica a praia, não menos bonita. E famosa. Uma faixa de areia das mesmas dimensões generosas da área verde, mas com uma diferença: o que brota ali não são flores, mas craques de futebol.

E são muitos. Incontáveis. Como grãos de areia. Por isso, esta história vai falar de alguns deles. Onze, para sermos mais exatos. Uma seleção. Um time de boleiros de areia do passado. Mas vale a pena conhecê-los. Veja a escalação:

Julinho, Lúcio, Baianinho, Papagaio, Celsinho, Dereto, Carlinhos Metralha, Luís Antônio, Zezé, Nélson Primo e Gigi.

Todos estes caras sabiam jogar bola. Muita bola. Acredite. Eram fenômenos. De verdade. Entretanto, nenhum deles virou profissional. Por quê? Simplesmente porque eles gostavam demais de jogar bola. Adoravam o futebol de praia. Do fundo da alma. Só isso. Por paradoxal que pareça.

Para explicar esse mistério, vamos por partes. Ou melhor, por craques. Fera por fera. Boleiro por boleiro. Jogador por jogador.

Julinho, por exemplo. Era bem nascido, de classe média alta, estudava em bom colégio. Loiro, forte, estatura mediana, quinze anos, sorriso pendurado no rosto, Julinho parecia um surfista, mas seu esporte era a bola. Conhecia tudo e mais um pouco. Jogava no ataque. Em qualquer ataque. E posição.

Prova disso é que, a cada começo de temporada, era assediado pelos principais times que disputavam o Campeonato Santista de Futebol de Praia. Alguns punham até grana na jogada. Ofereciam mundos e fundos. E Julinho, nada. Não aceitava as propostas. Não fechava com nenhum dos clubes. Inexplicavelmente. Só jogava pelada. Livre como um passarinho.

Nossa escalação continua. Com Lúcio.

Mulato, encorpado, 1,70 de altura, Lúcio era não era apenas um jogador. Era um malabarista. Meio campista, destro, fazia mil e umas com a bola. Punha a redonda onde queria. Quando queria. Como queria.

No seu inesgotável repertório de dribles, um se destacava. Lúcio ia correndo com a pelota colada ao pé direito. Passada a passada. De repente, pisava nela e girava o corpo em 180 graus. Depois, arrancava em direção ao lado contrário do campo. Coisa de louco.

Não foram poucos os beques que saíram de campo, pensando correr atrás dele, enquanto Lúcio já estava do outro lado, cara a cara com o goleiro. O efeito era infalível. Ridículo. Hilariante. Garrincha não faria melhor. Nem o Carlitos, de Charles Chaplin.

Um craque deste potencial deveria ser profissional. Certo? Errado. Lúcio recusou todas as propostas que recebeu (e foram muitas!) para treinar no Santos FC, na Portuguesa Santista, ou no Jabaquara. O motivo? detestava calçar chuteiras, que impediam que ele sentisse a bola.

Assim, sua carreira começou e terminou nas areias do José Menino, junto do Canal 1. Aquela era a sua praia. O seu campo. Ponto final.

Vamos passar a bola para Baianinho e Papagaio. Dois outros craques da areia, nascidos e criados no famoso bairro do Marapé. O primeiro era ponta esquerda. O segundo goleiro. Que artistas!

Baianinho tinha dois dons absolutamente natos. Driblar e correr. Era virtualmente impossível tomar a bola de seus pés. Ou acompanhar sua desabalada carreira até a linha de fundo.

Magro, pernas tortas, baixo, cara amarrada de nordestino, Baianinho só jogava “fumado”. Ou seja, só entrava em campo depois de acabar com um baseado de maconha. Inteiro. E, a julgar pelo efeito devastador de seus dribles, centros e chutes, muito time profissional deveria adotar a canabis.

Papagaio. O apelido se explica. O goleiro voava. Isso mesmo. Voava de uma trave até a outra para defender um chute. Aquilo era um desafio às leis da gravidade, da física e da sanidade mental.

Nunca se soube seu nome verdadeiro. Papagaio chegou. E Papagaio ficou. Para sempre. Principalmente na memória dos santistas que assistiam ao futebol de areia nos sábados à tarde.

Alto, magérrimo, meio índio, meio branco, 30 e poucos anos, canhoto, Papagaio foi o melhor goleiro da praia. Em todos os tempos.

Na hora do pênalti, avisava o batedor que iria pegar. E pegava. Mesmo. Só não agia assim com Gigi, porque aí a conversa era outra. Como veremos adiante. Que goleiro. Papagaio!

A seleção continua. Com Celsinho.

Nascido e criado na divisa de Santos com São Vicente, Celsinho foi contemporâneo de Carlos Alberto Torres. E quase tão moderno quanto ele. Embora jogasse na praia. Na areia, defendia como poucos. E apoiava como nenhum.

Branco, 1,80 de altura, 70 quilos, destro. Foi um craque. Quieto, atento, implacável. Em segundos cortava uma bola no seu campo e disparava pela direita em busca do lançamento, que viria em seguida.

Centrava com perfeição, em cima da marca do pênalti, onde invariavelmente a bola encontrava a cabeça de um companheiro. Celsinho jogava muito. E foi titular em todos os times de praia por onde passou. Absoluto.

Agora, vamos virar o jogo, para a ponta esquerda. Para o Sr. Carlos Alberto Pires, o Dereto.

O cara vestia a camisa 11 sempre para fora do calção. Mania. Assim como o drible. Seco. Debochado. Inapelável. Dereto acabava com qualquer lateral. Sem dó nem piedade.

Moreno, magro, pernas finas e tortas, canhoto, Dereto parecia se divertir com seus marcadores. E como. O lance era sempre o mesmo. Igual. Parecia replay. Ele partia para cima do lateral. Oferecia a bola. O outro esticava a perna. Pronto. Dereto já tinha escapado e cruzado a bola na área. Gol!

E foram muitos. Principalmente pelo time do Santa Mônica, do Canal 1. Que ponta!

Recuando até a defesa, a bola chega aos pés de Luís Antônio. Esse foi o Mauro Ramos de Oliveira da praia. Na bola e na aparência. Sem exagero.

Branco, alto, elegante, de classe média alta, destro, Luís Antonio Di Giaymo poderia ter jogado, e bem, em qualquer das onze posições. Do gol à ponta esquerda. Mas ele preferiu a zaga, onde impôs sua categoria.

De uma frieza assustadora, Luís Antonio era capaz de matar uma bola no peito no meio de sua área e sair jogando. Naturalmente. Para desespero dos seus companheiros. E espanto total dos adversários.

Jogava o fino da bola. Mas não enfeitava para aparecer. Nada disso. Apenas porque aquele era o seu jeito de jogar. O seu estilo. Clássico.

O grande zagueiro do passado Luís Antonio, hoje joga tamboréu na praia do Boqueirão. E tênis, no Tênis Clube de Santos. Esportes nos quais continua craque. E elegante.

Agora a bola está no meio de campo. Com Zezé. Que raça. Ele jogava como se o mundo fosse acabar quando o juiz desse o apito final. Mas sem correrias ou afobação. Zezé era de um raro talento. Embora, quem o visse na rua, não pudesse imaginar que aquele rapaz alto e forte, fosse um médio volante de uma técnica impecável. E de uma garra capaz de agradar às exigências do próprio Zito, o eterno volante do Santos FC. e da Seleção Brasileira. Mas José Carlos Picado era assim.

Canhoto, dominava a bola melhor do que aqueles que usavam os dois pés. Tinha mais do que visão de jogo: antevia as jogadas. Sabia se colocar tão bem em campo que a bola raramente passava onde ele não estivesse.

Além disso, cobrava faltas e escanteios com uma precisão absurda. Zezé chutava como ninguém. Batia forte ou colocado, dependendo da posição. E ainda era exímio cobrador de pênaltis.

Com tantas qualidades, foi convidado a treinar na Portuguesa Santista, a querida “burrinha”, onde seu pai, Adelino Picado era vice-presidente. No coletivo, comandado pelo legendário Papa, Zezé foi escalado na zaga, muito embora tivesse dito que era volante.

Não adiantou. Papa mandou que ficasse lá atrás, na defesa, lugar de jogador alto, grandão.

Zezé não gostou, mas cumpriu a ordem. E bem. Cortou quase todos os cruzamentos na área. Desarmou os atacantes, se antecipando. Fez e aconteceu. Mas, para ele, aquilo foi pouco. Afinal, o treino estava zero a zero. Era preciso ajudar o ataque, fraco, sem criatividade.

Veio, então, a jogada fatal. Um lançamento para o centro avante do outro time. O rapaz correu, mas a bola chegou antes ao pé esquerdo de Zezé. Resultado: um chapéu no camisa nove!

Com o campo subitamente aberto à sua frente, Zezé saiu jogando. Driblou um, cortou outro e mais outro. Quando viu, estava na entrada da área adversária.

O zagueiro saiu afobado, chutando o que tinha pela frente. Zezé tocou a bola entre as pernas dele e pegou do outro lado. Aí, a redonda quicou na grama e subiu um pouco. Perfeita para um chute. Pimba! Ele pegou na veia, da entrada da área.

Foi gol. Antológico. Magistral. De placa. Num simples treino de “peneira”, aquilo deveria ser a consagração. Mas Papa não quis.

Para manter sua imagem de durão, Papa expulsou Zezé do treino, dizendo que ele não havia feito o que mandara. Nervoso, Zezé foi embora. E, com ele, um médio volante fora de série saiu dos gramados. Grande perda.

Ele poderia ter sido profissional. Facilmente. Mas não foi. Nem precisava. Zezé continua titular absoluto no time da memória daqueles que o viram jogar.

Lá vai o Carlinhos Metralha, voando pela ponta direita! Centrou. Gol! É praticamente impossível calcular quantas vezes isso aconteceu na praia do José Menino. Carlinhos era rápido e liso como um quiabo.

Baixo, franzino, destro, o garoto superou os melhores laterais da sua época. Com facilidade. Simples. Metralha era a própria imagem da superação. Perdeu o pai aos 14 anos. Cedo foi trabalhar. Para ajudar em casa. O futebol, então, era a sua válvula de escape.

No campo, diferentemente da vida, ele tinha controle absoluto, total, da bola e do jogo. E como. Carlinhos era um malabarista, e tão rápido no raciocínio quanto na corrida. Percebia a jogada antes dela se desenhar. E tirava vantagem dessa esperteza.

Com a camisa 7, pintou e bordou nos campos da Orla. E, como se saber jogar futebol fosse pouco, Carlinhos também era um craque na sinuca. Que talento!

Nélson Primo. Antes de chegar aos pés dele, a bola pedia licença. Acredite. Ele sabia tratar a pelota. Batia de leve, tocava com elegância, passava com precisão. E tinha o fôlego de sete gatos.

Com tantas qualidades, além de um preparo físico inumano, Nélson foi o melhor quarto zagueiro das areias de Santos. Disparado.

Jogar ao lado dele era o paraíso. Você nem precisaria correr. Nélson estava em todos os cantos da defesa. Em toda parte do meio campo. E ainda aparecia, de surpresa, para cabecear no ataque do seu time.

Para ser profissional, bastaria que um grande time o convocasse. Só isso. Nélson poderia entrar em campo e enfrentar qualquer atacante de sua época sem problemas. Ou dificuldades. Que jogador!

Branco, destro, 1,70 de altura, magro, Nélson Primo foi perfeito. O maior de todos, em sua posição. Era uma espécie de Roberto Dias da areia.

E quem viu o grande Dias em campo, envergando a camisa do São Paulo FC., pode imaginar o quanto Nélson jogava. Craque. Indiscutível.

Nossa seleção está chegando ao fim. E, como quem ri por último ri melhor, deixamos o Pelé da Praia para o fim. O nome dele é Gigi.  
Branco, 1,85 de altura, encorpado, ambidestro, Gigi foi excepcional. Como o Rei do Futebol. Era atacante. Jogava com a camisa 9. E como a posição recomenda, fazia gols. Muitos gols. De todas as formas, de todos os jeitos, de todas as posições. E em todas as partidas. Parece exagero. Mas não é.

Gigi transformava qualquer pelada de praia numa final de campeonato brasileiro. Num clássico. Bastava entrar em campo. E pegar a bola. Juntava gente para vê-lo jogar. Multidões. E, quanto maior era a torcida, mais ele jogava.

Certa vez, num jogo contra o time do Alvorada FC, fez um gol magistral. Antológico.

Gigi recebeu um lançamento longo, pelo lado esquerdo do seu ataque, e correu. Quando a bola pingou na areia, Gigi notou que estava marcado de perto. Por dois beques. Com o pé esquerdo, deu um tapa na bola, por cima dos zagueiros e, antes que ela chegasse ao chão, chutou de direita, no ângulo.

Gol. De Pelé. Ou melhor, de Gigi. A torcida invadiu o campo. O juiz apitou fim de jogo. E de papo. Porque uma jogada daquela encerra qualquer partida. Ou assunto.

Gigi foi o maior de todos. Tanto que um olheiro do Santos FC foi à praia, convidá-lo para treinar na Vila Belmiro.

Vestindo a camisa 9, pouco antes de entrar em campo, Gigi sorriu e apontou para baixo, para os pés. O outro fez que não entendeu. Gigi foi definitivo, ao dizer que não gostava de jogar de chuteiras. Só descalço. Inacreditável. Verdade.

Assim, Gigi continuou sua carreira na praia. E só na praia. Para alegria e admiração de todos os que não perdiam um jogo de futebol de areia. E foi único. Fora de série. Excepcional. Como Pelé. No campo.

Sobre aquela pendência com o goleiro Papagaio, o negócio foi o seguinte. Houve um pênalti. Gigi foi bater. Papagaio avisou que iria pegar. Gigi não gostou, mas sorriu.

E, na hora da cobrança, para surpresa geral, bateu de chaleira. No ângulo. Papagaio voou, como sempre. E poderia ter pegado a bola. De fato. Só não pegou por um pequeno detalhe: ele saltou para o lado errado!

Mas que o vôo foi lindo, isso foi. Maravilhoso.    

Carlão Bittencourt - 03-05-2016



Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo

e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.

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