Monday, May 23, 2016

COBERTOR ENGOMADO (um conto erótico de Branca Maria de Paula)



A casa foi do meu avô. Aquilo tudo foi do meu avô. O jipe vinha aos solavancos pela estrada estreita, só se viam pirambeira e mato raso. Ao sabor de buracos e valetas, sacolejávamos o corpo largado entre malas, sacolas e caixas de mantimento até que, lá embaixo no descampado, o telhado da fazenda se abria como um chapéu. Atrás, ficava o pomar: jambo, abacate, carambola, jaca, manga - todos os tipos de fruta. Um pequeno riacho descia pela serra, mergulhava sob o aglomerado de árvores, corria à sombra por algum tempo e aparecia jorrando água fresca na porta da cozinha. Na frente da casa, o terreiro e o curral.

Quando chegávamos ao pé do morro, um de nós saltava pra abrir a porteira. Nada melhor do que pisar aquele chão. Terra socada e limpa. Ao lado da tulha, balaios barrigudos de milho ao sol, cavalos prontos pro galope - tudo bom e verdadeiro.

Então, alcançávamos a sede: uma casa de pernas compridas e grossas, espetada naquele terreirão. Como pequenas formigas, olhávamos pro alto. A fachada era reta, áspera e branca. Portas e janelas permaneciam escancaradas, como se esperassem o visitante.

Subíamos a escada de madeira sebosa, o coração aos pulos. Os degraus chiavam, mansos. Atravessávamos a varanda, desprezávamos o banco comprido e, do outro lado, debruçávamos no parapeito. De lá podíamos ver o chiqueiro, o galinheiro e o pomar.

Também a casinha ficava por aquelas bandas. E a gente tinha de andar um bocado pra se aliviar. Sorte que, na maior parte do ano, as noites eram frescas e secas. O céu, sabidamente estrelado. Então, vinha dezembro, janeiro e, aí sim, água malhava. Todas as manhãs carregávamos os urinóis cheios e despejávamos ao pé do coqueiro, que generosamente nos agradecia: nunca vi tanta fartura.

Quando meu avô morreu, venderam a casa. Eu era moleque na época. Comecei a roer unha, andei calado pelos cantos. Uma parte de mim foi roubada. Eles me traíram, pensei. E comecei a arquitetar minha vingança: crescer rápido, ganhar dinheiro, ficar rico, tomar de volta o que era meu. O que era meu e que ninguém podia tirar. Esse desejo, insistente, me golpeou sem tréguas e não me deixava cochilar. Nos piores momentos, era o que me sustentava. Sozinho, batalhei meu caminho: a vinda pra cidade grande, a faculdade, o escritório. Minha meta era vencer, e só vencer, nunca considerei a possibilidade de fracassar, nunca perdi a fé. E logo fiz meu pé-de-meia.

Voltei. Comprei tudo o que me faltava: meu passado, minha história, a terra que me viu nascer, o esterco que me fez crescer. Comprei de volta o cheiro da noite.

A casa estava lá, como sempre esteve - em minhas lembranças. Mandei rebocá-la e pintá-la, mas não modifiquei sua estrutura. Apenas acrescentei um banheiro na parte lateral. Infelizmente, a vida na cidade me tirou o gosto de tomar banho na bacia, a tranqüilidade de defecar olhando os porcos revirando a bosta lá embaixo. Pena! São as tais raízes de merda: ninguém fica livre delas, mas, também, ninguém suporta as mazelas de antes, a reboque das coisas simples.

Antes, eu fazia parte da terra e disso não duvidava. Ficar olhando as galinhas em volta da velha Catarina era uma coisa natural, necessária. Catarina peneirava arroz separando as coisas que as pessoas simples sabem separar sem complicação: este é bom, aquele é mau; este é bom, a gente aproveita, aquele não serve, a gente bota fora. Bons tempos. Hoje não faço parte de nada. Não separo porra nenhuma.

Como dizia, comprei a terra que bebeu meu primeiro esperma. De volta, os primeiros dramas debaixo do cobertor áspero. Era chover e eu adoecia, mera desculpa pra pular na cama. O cobertor vivia engomado. Depois do almoço, enquanto as velhas cochilavam, eu fofava a galinha predileta da mamãe. Mansinha de dar gosto. O galinheiro tinha cheiro de capim-gordura, cocô e ovo choco. Nos balaios, amarrados no alto, os ninhos ficavam repletos. Eu subia no poleiro e ficava vigiando pintinho nascer. Era uma sensação sempre nova.

Um dia, por uma bobagem qualquer, me surraram com vara de marmelo. Furioso, fui no terreiro e peguei uma galinha. Foi coisa de quatro, cinco vezes, não sei. Acabei mole, pingando suor. A galinha, pingando sangue. Aí, joguei o monte de penas no mato. Não sei quem descobriu. O certo é que no dia seguinte todo mundo apanhou pra caralho e até hoje ninguém sabe o culpado. Era uma galinha de penas avermelhadas, redonda e chatola, coitadinha. Depois, transei cabrito, égua, tudo quanto é bicho. Guardo belas lembranças da minha infância.

Na fazenda, vi meu pai nu pela primeira vez. A porta estava entreaberta quando atravessei o corredor. Espiei. Ele dormia. Sem despregar o olho da cama, retendo a respiração, me esgueirei pra dentro do quarto. Meu pai roncava, de barriga pra cima: o sexo dele era um monte magnífico. Tão magnífico que parei, estarrecido. Sua grandiosidade me esmagava e violenta emoção me dominou. Como podia existir um ser tão belo e tão poderoso? Meu pai era um deus. Poderia eu ser como ele, um dia? A este pensamento, meu corpo tremeu, febril. Seguia sua respiração, a barriga subindo e descendo lentamente. Tinha um perfil patriarcal. A barba dura espetada na cara. O nariz grande e reto. A testa alta. Os cabelos grisalhos e ralos. Fiquei colado à parede, pregado no chão. Quando ouvi barulho, saltei feito grilo. Fechei a porta, disparei numa corrida e enfiei a cabeça na bica. Andei muito tempo em volta do terreiro. Me sentia um verme. Jamais seria como ele, jamais. Eu era um anão e meu pau era uma coisica à toa. Jamais poderia ter uma mulher. Tinha medo do escuro, medo de chuva. As mulheres esfregavam minhas orelhas e desciam minhas calças pra me castigar. Eu era um pirralho que dormia de cabeça coberta. Que tinha um pintinho pelado que não servia pra nada. Só praquele xixizinho morno. Triste, não?

Assim descobri o homem. Depois, já com treze anos, por aí, fui estudar num vilarejo perto da fazenda. E lá me apaixonei pela primeira vez. O nome dela era Tina. Não faço idéia de quantos anos tinha, mas era mais velha, bem mais velha que eu. Andava catando coisas pelo chão, uma latinha imunda debaixo do braço. Era feia e suja, com as pernas cobertas de cicatrizes. Mas era a mulher que eu sabia que dava pra todo mundo. Até pra menino. Tina foi a primeira fêmea que verdadeiramente existiu pra mim. A primeira que eu podia desejar, e ter. Podia tocar, sem que minha mão caísse podre de repente, sem que um raio me atingisse.

Comecei a segui-la. Tina vivia num casebre perto do rio. Levantava cedo e saía pedindo esmola pela rua. Eu, atrás. Gozei muitas vezes vendo-a transar com os outros moleques. Nunca comigo. Jamais comigo.

Eu a desejava de um jeito que até hoje não entendo isso. Uma coisa desesperada, visceral. Cheguei a adoecer, tive uma febre esquisita. Mas ela não dava pra mim. Dava pra todo mundo, menos pra mim. Um dia me escondi no meio do mato, disposto a pegá-la de qualquer jeito. Descasquei a árvore toda, de tanto esperar.

Tina chegou de volta já de tardinha. Pulei na frente dela, assustando-a. Gaguejei pra pedir. Ela disse não. Eu empinei as costas. Ela gritou: cresça e apareça, seu magrelo!

Aí apelei: por que não pra mim, sua fedorenta? Agarrei a saia dela, mas Tina se soltou e correu. Eu atrás. Fomos seguindo o rio. Parecia que o mundo tava pegando fogo, o sol espalhando vermelho no dia que acabava. Eu suava frio e implorava. Implorava e nada. Ela não me ouvia. A areia embaralhava meus passos. Mesmo assim, corremos um bom pedaço, sem parar. Até que cansamos e passamos a andar cada vez mais devagar. Então tirei o pinto pra fora - estava cansado de fazer isso, ela não ligava - e comecei a bater punheta atrás dela, tropeçando nas moitas e chorando. Esporrei pelo caminho e ela não parou. Nunca deu pra mim.

Depois, voltei pra fazenda. Pro meu cobertor engomado. Mas não queria mais transar bicho.

Foi então que meu avô morreu e venderam a fazenda. Fui morar na cidade. Nunca mais achei que viver fosse uma coisa natural. Hoje, quando quero trepar, mando o motorista trazer uma puta.

Branca Maria de Paula,
escritora e fotógrafa,
nasceu em Aimorés MG em 1946.
Estreou na literatura em 1978 ao ser premiada
no 3º Concurso de Contos Eróticos da revista Status.
Desde então, publicou mais de 20 livros,
entre eles A Mulher Proibida (contos, 1980)
O Desfecho da Peça (contos, 1985)
e Intimidades (contos, 2015),
de onde foi extraído Cobertor Engomado.
Tem recebido diversos prêmios pela sua obra literária,
assim como pelas suas fotografias.
Vive em Belo Horizonte, MG.

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