Oba! Que as organizações de festivais continuem a lembrar de nós, mortais anônimos, aqui na beira-d’água.
Ano passado, foi no Roxy. Esse ano, a associação com a Secult levou a itinerância do festival para o Posto 4. Em que pese, como diria Kant, a forte ‘inclinação’ dessa Mercearia para a ‘Sétima-Arte’, em especial o filme documentário, não tarda e esse humilíssimo estabelecimento comercial acaba se tornando um ambiente próximo do insuportável.
Rolou no final de semana do feriado (21 a 24 de abril) mais um ‘É Tudo Verdade’ (‘It’s All True’), o 21º, que teve casa cheia em boa parte das exibições, contrastando 2015. Nem preciso dizer, ao melhor estilo Zagalo, que o(a) nobre freguês(a) terá de nos aturar nas próximas semanas: documentários, documentários, documentários!
Antes de partir para o filme escolhido nessa quinta, um parenteses que acho razoavelmente pertinente: onde a cidade se agrega.
As tentativas de se obter um padrão de ‘pólos’ culturais na cidade são inúmeras. Alguns casos bem sucedidos, como o Vila do Teatro e suas operações no chamado Centro Histórico, além do mais recente Feijão com Arte, aos sábados, na Praça Mauá (com fortes traços de que chegou para ficar).
Apesar do sucesso de várias ações nessa região da cidade (teatro de rua, Virada Cultural, Quiloa, Carnabonde, Mirada, entre tantos), o santista é da Orla (independente da camada sócio-financeira-cultural dos membros da plateia). A concentração da maioria das atividades somente no chamado Centro Histórico pode não corresponder aos hábitos da público. Santos possui a marca da variabilidade na ocupação de diferentes lugares quando o assunto é a arregimentação de suas manifestações, como no caso dos bazares, por exemplo.
Sem contar com tantas outras iniciativas presentes no conjunto de bairros da Zona Noroeste: do teatro do Sesi ao seu Centro Cultural. É difícil consagrar somente uma região da cidade no intuito de algum ‘renascimento’ ou revitalização. Parece que o pensamento do público (local) vai muito além disso.
As salas cheias no 21º É Tudo Verdade foi mostra disso (em contraste com o verificado em 2015). E parte do sucesso na frequência constatado esse ano se deve ao fator ‘local’: um cinema considerado ‘charmoso’ pelas pessoas de fora da cidade por se tratar de uma sala destinada ao ‘cinema de arte’ que funciona num posto de salvamento nos jardins da praia.
A considerar: a itinerância, esse ano, caiu num tremendo ‘feriadão’ prolongado. A impressão que ficou foi a de que a assistência, por conta do local onde acontecia o festival, meio que funcionou sozinha, num lance bem orgânico. O lugar conta?! Pode ser que sim. O santista é da Orla: curte a vista, o ambiente dos jardins, a praia. Fica a dica...
Posto isso, o encerramento da itinerância esse ano se deu com a segunda exibição de “Atentados: as Faces do Terror”, de Stéphane Bentura, França, pela mostra “O Estado das Coisas” do festival.
Na praça desde 4 de janeiro do corrente ano, ‘Attentats: les Visages de la Terreur’ é um filme ‘puxado’ devido à quantidade de dados jorrada ao longo do filme. Acaba se tornando uma tarefa de vulto para o(a) espectador(a) por manter, de alguma maneira, a tradição do cinema documentário francês, especialmente em sua linguagem.
Quem eventualmente não está acostumado com a tradição dos documentários franceses, pode levar um susto. Ou, como dito há pouco, sentir a ‘jornada puxada’ ao longo de uma hora e meia de filme. Diferente dos ingleses, a mescla da abordagem mais ‘humanística’ do tema com uma apresentação que mais parece uma reportagem especial de TV pode deixar uma platéia como a brasileira em dúvida. Contudo, não se enganem: é um belíssimo documentário no mais alto quilate da tradição francesa nesse tipo de cinematografia.
O filme faz uma análise da trajetória dos irmãos Chérif e Saïd Kouachi, além de Amedy Coulibaly, um anos após os atentados à redação do jornal Charlie Hebdo (protagonizados pelos dois irmãos) e do supermercado frequentado por cidadãos da comunidade judaica, o l’Hyper Cacher (cuja autoria é de Coulibaly).
A linha de investigação de Bentura tem como ponto de partida como três cidadãos franceses involuíram a ponto de se desconectarem completamente dos valores democráticos e humanos que esse país procura transmitir, especialmente no seu sistema educacional.
Surge, assim, a primeira grande falha francesa: não saber lidar com o passivo econômico que o país causou em suas ex-colônias. Uma leva gigantesca de imigrantes chegou à França na busca de melhores oportunidades, com destaque aos argelinos e demais oriundos das repúblicas africanas. O que parece é que os franceses não tinham uma espécie de ‘plano b’ para lidar com os desafios provocados pelo aumento da presença de tantos estrangeiros.
Um traço comum entre as famílias de Amedy Coulibaly e dos irmãos Kouachi é o da desagregação como resultado de um esgarçamento social típico em países onde dinheiro e condições econômicas não são para todos. Há uma ‘segunda classe’ na França em que pese isso não ser exclusividade sua: parte dos países europeus, com destaque aos ‘desenvolvidos’, destinam esse tratamento ‘classe econômica’ para aqueles que não são brancos nativos ‘quatrocentões’ locais.
É claro que tal destinação não é uma regra, fechada: há inúmeros casos de estrangeiros que foram para a Europa e hoje estão totalmente integrados às classes média e alta desses países. Porém, não foi uma ‘política-de-massas’ e as oportunidades rarearam feito às probabilidades matemáticas de um espermatozóide, entre milhões, fecundar o óvulo. Os ‘desenvolvidos’ nesse continente, em grande parte, se viram num ‘pererê’ daqueles quando perceberam que precisavam de bem mais em termos materiais para inserir uma quantidade gigantesca de gente dentro de uma realidade de bem-estar social.
As duas famílias e as comunidades argelina e malinesa reprovam a ação de seus jovens (os irmãos Kouachi e Amedy Coulibaly, respectivamente), entendendo que se sentem acolhidas e integradas ao país ainda que tal interação seja visivelmente bem ‘meia-boca’. Coulibaly passou boa parte da vida em prisões pela França, e Chérif (o mais novo), com seu irmão mais velho Saïd, esteve em internatos para menores em Treignac boa parte da infância e adolescência.
Houve tentativas, algumas até mesmo bem sucedidas no caso dos irmãos Kouachi, de ‘guiá-los pelo bom caminho’. Tudo parecia funcionar a contento, até que os três se depararam com uma tremenda falta de perspectiva e tudo, pouco a pouco, começou a naufragar. Os três empreenderam, dentro da medida do possível, mas suas condições financeiras e étnicas não permitiam nada além de um ‘vôo de galinha’ em termos de uma continuidade que alimentasse a perseverança.
Surge, assim, a segunda falha francesa: país bom de políticas sociais, mas que não permite em escala industrial que essa política tenha alcance e permanência. Ao contrário, o processo faz com que a plateia conceba tais expedientes muito mais pelo viés do ‘auxílio’ (e consequentemente de uma eterna ‘dependencia’) ao invés de uma democracia definitivamente cidadã.
Como diziam os antigos, “quem não tem competência, abre concorrência”. Assim, apresenta-se a terceira falha francesa: facções religiosas no lugar de uma democracia cidadã. Entram em campo os ‘salafistas’: segmento do islamismo ortodoxo ultraconservador sunita cuja principal distorção é considerar pecado todos os modos de vida ‘seculares’, em especial os oferecidos por civilizações de diferentes religiões. Tudo pode ser considerado ‘sujo’, ou ‘infiel’, até mesmo segmentos mais progressistas do islamismo. Façam as contas: advinhem como enxergam o modo de vida francês?
Logo, esses jovens são desligados de sua terral natal (no caso dos irmãos Kouachi e de Amedy Coulibaly, a própria França). Entram numa espiral descendente em relação ao mundo de onde vieram e qualquer coisa pode ser considerada extremamente ofensiva. O resto da história e de como tudo se processa já sabemos: dor, perdas e ondas crescentes de ódio e incompreensão.
“Atentados: as Faces do Terror” pode ser um ‘tour-de-force’ para quem não está acostumado com a tradição do documentário francês, mas é uma perfeita análise da crise humana que se abateu sobre a Terra, uma autópsia de como políticos, partidos, organizações, dispositivos e sistemas não conseguem enxergar o óbvio. O pior disso tudo: perdendo espaço de tal modo que parece não existir mais uma solução, um caminho de volta. A humanidade se esmera a cada dia em amplificar suas piores abjeções.
ATENTADOS: AS FACES DO TERROR
(Attentats: les Visages de la Terreur)
França/2016
95 minutos
Produção: Tony Comiti
Produção Associada: France Télévisions
Direção: Stéphane Bentura
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
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