Meu pai queria fazer um trato. Ele decidiu comprar uma tevê, e para isso, a partir de agora, meu irmão e eu teríamos de esquecer o cinema; não fosse assim, papai não conseguiria economizar a fim de pagar as prestações do aparelho. Topamos na hora. Era 1966 e só então a cidade de Rio Grande começara a receber regularmente, sem falhas técnicas, a transmissão de TV.
Em Rio Grande, o cinema era a nossa maior diversão. Morávamos em frente ao Cine Glória, mas não perdíamos também as sessões legais do 7 de Setembro e do Carlos Gomes. Aos domingos, no 7 de Setembro, havia programas às dez da manhã. Num desses vimos um filme sobre um pianista milionário que morava numa mansão e se locomovia em uma cadeira de rodas. De repente, alguém empurra a cadeira do alto da escadaria e o homem morre. Dias depois, uma das mãos do cadáver sai do túmulo e começa a estrangular os envolvidos na trama do seu assassinato. Por isso o título: Os Dedos da Morte. Uma das cenas mais impressionantes é a mão tocando piano na penumbra do casarão. Meu irmão e eu ficamos apavorados. Uma mão separada do corpo e ainda por cima tocando piano? Era de arrepiar.
Mas agora o cinema era coisa do passado. Sábado à noite nos reunimos todos na sala pela primeira vez. Na tevê, o cartaz na Sessão Samrig era um filme dos anos 50 sobre um monomotor que faz uma aterrissagem forçada na selva. Ao consertá-lo, o piloto avisa ao grupo que dois não poderão mais seguir viagem; caso contrário, o avião não terá condições de alçar voo. O clima fica tenso. Um velho saca um revólver, ameaça o grupo e avisa: ele é que vai decidir quem vai ou não embarcar. O piloto consegue consertar o aparelho. Chega o dia da partida. Chega a hora. Está tudo pronto. O suspense é insuportável. Enfim, a decisão: o senhor entrega o revólver ao piloto e anuncia que ele e a mulher serão os sacrificados, pois já viveram o bastante, enquanto os demais passageiros, jovens ainda, têm muita vida pela frente. O avião levanta voo. O casal de idosos se abraça na solidão brutal da selva.
Que filme!
Mas domingo à tarde a programação na tevê estava chata demais. Fui à sacada e espiei a rua. A fila para a sessão das quatro do Glória dobrava a esquina. Disposto a cumprir o trato com o meu pai, naquele dia eu nem verificara a programação do cinema.
“Vou ao Glória ver que filme tá passando”, eu disse ao meu irmão.
No cartaz, um homem vestido de preto segurava um revólver. Era um painel imenso, magnífico, que em letras garrafais prometia a mais pura emoção:
HOJE, DJANGO!
Corri de volta pra casa:
“O filme é DJANGO! DJANGO! Não podemos perder esse filme de jeito nenhum.”
“Mas e o trato com o papai?”, meu irmão lembrou.
Fomos até ele:
“Dessa vez vou deixar passar. Mas aprendam de uma vez por todas: os tratos foram feitos para serem cumpridos. Esqueçam o cinema.”
Conseguimos entrar no Cine Glória bem na hora em que estava começando o trailer do filme do próximo domingo: “Pecos”, sobre um pistoleiro que primeiro atira e só depois diz o nome. Enfim, o grande momento. Django surge na tela puxando um caixão de defunto. O Glória vem abaixo. Dentro do caixão há uma metralhadora. Django começa a montá-la. Agora corremos pelas fileiras gritando, a fim de alertá-lo sobre os perigos. Um guri joga os sapatos em direção à tela, tentando acertar os bandidos. Enquanto isso, a metralhadora de Django cospe fogo e balas.
Na saída, digo para o meu irmão:
“Aquele filme de ontem na tevê foi muito bom, mas nem de longe se compara a Django.”
“É mesmo, Django foi demais!”
“Domingo que vem...”
“O quê?”
“...não vou perder o Pecos.”
“Mas e o nosso trato com o papai?”
“O trato com o papai que se foda.”
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor, editor,
secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos
de dedicação exclusiva
ao Jornalismo Impresso.
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