Quando Marcello Rubini vê o polvo estendido na beira da praia, a cena final de A Doce Vida, no cinema o jovem teve a ingênua certeza de que seria capaz de fazer um filme tão bom quanto aquele. Rubini almeja ser um grande escritor, mas vive enredado num cotidiano medíocre. É um homem entediado e sem saída, personagem-símbolo da Roma moderna e decadente, estampada na tela. Embora apresente essa carga existencial, o filme de Fellini é envolvente, poético e tristemente risonho.
O jovem estava fascinado. A sua vida acabava de ser dividida em antes e depois de A doce vida. Em pouco tempo, viu o filme três vezes. Agora, precisava dividir com alguém a emoção nova e surpreendente. Convenceu então um amigo a acompanhá-lo como se o convidasse para ir ao circo:
“Você não pode perder A Doce Vida. A obra é de 1960, mas está de volta aos cinemas em uma cópia nova, restaurada. Tem cada cena.”
“Fala uma.”
“É difícil descrever as cenas de A doce vida, pois tudo está incorporado a um grande contexto, a um panorama complexo. Não é algo que se pode isolar, certo?”
“Que filme é esse que não se pode contar uma cena?”
“Você nunca viu nada igual.”
“É colorido ou preto e branco?”
“É preto e branco, mas você vai adorar.”
Ao final da sessão, o outro não estava nem um pouco impressionado. Já o jovem continuava perplexo e resoluto:
“Decidi: vou ser cineasta. Vou fazer um filme igual a esse.”
“Você tá louco?”
“Como assim?”
“Esse filme é parado demais, muito chato, não acontece nada, quase dormi no cinema.”
A Doce Vida é uma sucessão de episódios sem muita ligação entre si, a não ser pela presença de Marcello Rubini, interpretado por Marcello Mastroianni. Para o jovem, no entanto, se tratava de um enredo simples, muito simples. Tanto que inspirado pela obra de Fellini começou a escrever a sua própria história, intitulada A Vida Inebriante. Ao concluí-la, pôs mãos à obra. Queria rodar uma cena do “roteiro” que acabara de ficar pronto. Conseguiu uma câmera Super 8, reuniu os amigos, colocou os óculos escuros de diretor de cinema e exclamou:
“Ação!”
A cena exigia que Marcelo Moraga, o personagem principal de A Vida Inebriante, lançasse à câmera um olhar existencial, exatamente como Marcello Rubini, em A Doce Vida. Camelo, que interpretava Marcelo Moraga, se recusou a fazer aquele olhar:
“Essa cena não vai ficar legal.”
“A cena vai ficar legal, sim. Quem é o diretor aqui? Colabora, Camelo, por favor!”
O jovem pegou a câmera e disse de novo:
“Ação!”
“Não vou filmar mais”, disse Camelo.
Atrás dos óculos escuros, o jovem estava exausto, não previra esse tipo de situação. O que o grande Fellini faria em seu lugar? O roteiro de A Vida Inebriante lhe parecia agora uma sucessão precária de cenas frouxas e sem nexo, nada a ver com a narrativa vigorosa de A Doce Vida. Os amigos aguardavam uma decisão. Ele então anunciou:
“Não tem mais filme.”
“Como assim, não tem mais filme?”
“Não tem mais filme...”
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor, editor,
secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos
de dedicação exclusiva
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
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