Wednesday, June 29, 2016

PEQUENAS FRAQUEZAS DA NATUREZA HUMANA (por Carlão Bittencourt)


“O supérfluo é uma coisa extremamente necessária”. (Voltaire)



Você pode até duvidar, mas o episódio é verdadeiro e aconteceu numa grande agência de São Paulo, no começo dos anos 70.

Como era hábito na época, de vez em quando eles deslocavam uma ou mais duplas de criação para trabalhar na filial do Rio de Janeiro. Bastava que a equipe local não acertasse a mão na campanha de um cliente importante e pronto: lá iam os paulistas pela Ponte Aérea.

A tática sempre dava certo. Primeiro porque só tinha fera no escritório de Sampa. Depois, porque os paulistas adoravam desembarcar na Cidade Maravilhosa para resolver os jobs que os cariocas não conseguiam. Era uma mistura fina de bairrismo e competência, com uma boa pitada de vaidade. Normal nos criativos.

Certo dia, mais uma vez, a Criação desembarcou na velha Capital da República, levada pelas asas seguras de um avião Caravelle. Sua missão: criar a campanha de lançamento de mais um mega empreendimento da construtora Gomes de Almeida, Fernandes.

Os quatro criativos hospedaram-se num hotel de Ipanema, de frente para um deslumbrante oceano de tangas, e de costas para os insuperáveis botecos do mítico bairro. Melhor impossível. Tinham toda uma semana para começar e concluir a tarefa, prazo mais do que suficiente. Afinal, ali estavam duas das duplas mais competentes (e premiadas) da agência. Mãos à obra.

Em três dias a campanha estava pronta e aprovada pelos diretores da conta. Em seguida, os roughs das peças foram encaminhados para o estúdio, que prometeu os layouts para segunda-feira pela manhã.

Assim, a apresentação para o cliente foi marcada para o começo da tarde. Resultado: docemente constrangidos, eles se viram obrigados a passar o final de semana no Rio. Meteram o pé na jaca!

Não é preciso dizer que o cliente adorou o trabalho. E que o aprovou a campanha na íntegra. Não houve sequer um ajuste. Acertaram na mosca. Um sucesso.

De volta ao hotel, fizeram as malas, fecharam a conta e foram voando para o Santos Dumont. Às dez da noite, estavam de volta a São Paulo.

Corta para o dia seguinte, na sede da agência. O rapaz da Contabilidade, a quem os viajantes tinham entregado as notas fiscais e faturas da viagem, não compreendeu nada. Resolveu falar com o chefe.

"Seu Wilson, eu não estou entendendo esta despesa"

O outro se aproximou:

"Que despesa, Daniel?"

O jovem contador, então, exibiu uma nota fiscal com todo o jeito de ser fria, pois não passava de um desses recibos que se vende em qualquer papelaria:

"Esta aqui, ó?"

O chefe pegou a nota, leu, fechou a cara e saiu porta afora, carregando a pequena folha de papel, sem dizer uma palavra.

O Presidente de Criação e sócio majoritário da agência, o legendário Alex Periscinotto, estava em plena reunião quando bateram na porta. Mandou entrar. Era o Chefe da Contabilidade. Brincando, perguntou o que ele queria:

"Wilson, a que devo a honra?"

O contador se aproximou da mesa, mostrou o recibo e falou, meio sem graça:

"É esse recibo aqui, Seu Alex. Eu não sei o que fazer com ele. Não sei se pago ou se devolvo... Acho melhor o senhor decidir."



Alex era Diretor de Arte de ofício. Conhecia bem e gostava daquela gente da criação. Viu a nota e quase caiu da cadeira de tanto rir. Vermelho, não parava de gargalhar.

Os outros diretores da agência ficaram se olhando, sem entender nada. Até que um deles, mais curioso, pediu a nota para ver do que se tratava. No recibo, mais frio do que a bunda de um pingüim, estava descriminada a despesa em Cruzeiros, a moeda da época:

1 garrafa de uísque Old Parr: Cr$ 18.000,00 (dezoito mil cruzeiros)
4 porções queijo milaneza: Cr$ 4.000,00 (quatro mil cruzeiros)
4 couverts artísticos: Cr$ 2.000,00 (dois mil cruzeiros)

E aí vinha uma legítima “pérola” da malandragem, que explicava tanto a desconfiança da Contabilidade, quanto o riso do dono da agência. No item 4, estava escrito:

Pequenas fraquezas da natureza humana: Cr$ 80.000,00 (oitenta mil cruzeiros)

Em tempo: Alex não só mandou pagar toda a despesa, como ainda pendurou a notinha na parede da sala. Como exemplo de criatividade, de coragem... e da mais legítima cara de pau!




Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.






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