Monday, June 27, 2016

O PORCO (um conto mínimo de Márcio Calafiori)



Por mim, seria inverno o ano todo. Gosto do frio. Se a minha barriga não fosse tão indecente, eu andaria sem camisa na rua só pra sentir o ar gelado me queimando.”

“Se eu fosse você não seria tão vaidoso. Vale mais sentir frio que calor. Tive um sítio nos arredores de Campos do Jordão. Lá fazia frio de verdade, e eu andava sem camisa. Pelas cinco da tarde, eu ia pra frente da casa e ficava sentado na cadeira de balanço e via o sol desaparecer atrás do mato, o rio lá longe, as casinhas com a fumaça saindo pela chaminé, os animais pastando. Parecia uma pintura.”

“Casinhas com chaminé e fumaça? Ainda existe isso?”

“Ah, faz mais de cinquenta anos. O pessoal lá cozinhava no fogão a lenha.”

“Quando criança, até uns onze anos, eu passava as férias de julho no sítio da minha avó. Ela também cozinhava num fogão a lenha.”

“Onde era o sítio?”

“Ficava num distrito de Pelotas chamado Capão do Leão.”

“Capão do Leão. Que nome.”

“Hoje é uma cidade, bem pequena. Nos sonhos estou sempre voltando à casa da minha avó nesse sítio, que não existe mais.”

“Por mim, eu viveria no mato. Mas a minha mulher não aprova. Na região desse sítio que eu tive em Campos do Jordão havia caipiras de verdade.”

“O que é um caipira de verdade?”

“Vou tentar descrever. Certa vez, um domingo de manhã bem cedo, eu estava indo para o armazém quando vi dois homens de terno e chapéu de palha. Um estava de terno cinza e o outro de azul-marinho. Os dois vestiam camisas brancas sem gravata. Iam de pés descalços, carregando os sapatos nas mãos. Parei pra assistir a cena. Eles pareciam o Jeca Tatu.”

“Acho que não existe mais gente assim no interior de São Paulo.”

“Esse sítio que tive em Campos do Jordão pertenceu ao meu avô; depois passou para o meu pai e depois pra mim, pois não tenho irmãos. Como a minha mulher não gostava de ir pra lá, acabei vendendo.”

“Se eu tivesse um sítio eu não venderia.”

“Mas um sítio dá muita despesa. Se você tem dez galinhas, cinco desaparecem.”

“Como assim?”

“Era o que eu dizia ao caseiro: ‘O galinheiro nunca tá completo?’; ‘Os bichos somem’, era a resposta. Eu tinha também umas vacas, uns patos e um porco.”

“O porco, o mais inteligente dos animais.”

“Porco é inteligente?”

“Sabe o livro do Orwell, A Revolução Dos Bichos?”

“Não leio. A leitura me dá sono.”

“Pois nesse livro os porcos é que lideram a revolução dos animais numa fazenda.”

“Que interessante, eu não sabia. Agora que você me contou isso é que começo a perceber. Eu criava o meu porco solto, como um cachorro. Acho que ele entendia as coisas. Esse porco ficou gordo que só vendo, parrudo. Aí começaram a dizer que já estava na hora de sacrificá-lo. Eu não queria.”

“Por quê?”

“Por quê? Eu gostava do porco, ora. Já viu um porco sendo sacrificado?”

“Já. Ou melhor: já ouvi. O porco grita como uma pessoa.”

“Eu estava afeiçoado a ele. Foi aí que percebi que quem mora no mato não se enternece com os animais, não cria vínculos. É um instinto primitivo. O animal está ali, e pronto. Esse é o seu destino.”

“É verdade. A gente do campo tem uma outra visão sobre os animais. No sítio da minha avó no Capão do Leão os cachorros não entravam em casa. No máximo, ficavam parados na porta da cozinha esperando que alguém atirasse alguma coisa pra eles comerem.”

“Mas nós não somos do mato. Então nos afeiçoamos aos animais.” “E você deixou matar o porco?”

“Não se diz matar. Se diz sacrificar. Sacrificar o porco... Acabei concordando. Mandei chamar o caipira que entendia do assunto.”

“Havia um profissional assim?”

“Não era exatamente um profissional. Era só um matuto que sabia sacrificar porcos. É um dom. Não é todo mundo que vive na roça que sabe fazer isso. Esse matuto chegou lá num sábado de manhã e disse: ‘Vou pegar esse provocador pelas orelhas’.” Parecia algo íntimo e pessoal entre ele e o porco.”

“Mas por que provocador?”

“Nunca esqueci isso: provocador. Não sei o que era.”

“Será que o porco desconfiou de alguma coisa?”

“Esse caipira era fingido. Se aproximou dizendo alguma coisa bem baixinho e de repente pegou o bicho pelas orelhas. O porco deu um grito tão humano. Aquilo doeu em mim. Quando o caipira tentou enfiar a faca, a faca não entrou. Sabe o que o caipira disse?”

“O quê?”

“Até me arrepia... Ele disse com autoridade, engrossando a voz: ‘Alguém aqui não quer que eu sacrifique esse provocador?’ Olhou em volta e anunciou: ‘Eu trago um aviso!’ O porco ficou quieto, só ouvindo. ‘Alguém aqui não quer o sacrifício desse provocador?’. A minha mulher me puxou. Tapei os ouvidos, implorando por dentro para que o porco não morresse. Só quando me afastei é que o caipira conseguiu sacrificá-lo. O bicho tava tão gordo que a banha dele encheu quatro latas de dezoito quilos cada.”





Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
LEVA UM CASAQUINHO.


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