Thursday, June 2, 2016

O JOGO DAS VELHINHAS (por Ademir Demarchi)



Da minha janela no segundo andar comecei a observar uma velhinha de cabelos brancos, magérrima, mas com grande vitalidade, que habitava uma casa no outro lado da rua. Sempre pela manhã bem cedo ela aparecia no portão da casa, colocava a cabeça branca para fora do batente, olhava meio desconfiada para um lado, depois para o outro, fechava o portão e voltava para dentro. Dali a pouco retornava confiante vestindo um avental e com uma vassoura varria primeiro toda a calçada na frente da casa, até o limite com a outra casa, varria o meio-fio, juntava o lixo e olhava satisfeita a limpeza. Às vezes parecia fazer a ousadia de varrer além dos limites, avançando alguns metros para as casas nos lados daquela em que habitava. Era como um relógio, todo dia levantar, tomar café e no mesmo horário olhar pela janela e assistir à velhinha em sua função, de modo que se podia ir à janela uns minutos antes, uns depois que se constatava a varrição em seu andamento em algum desses momentos. O que ela mirava, indagante, quando olhava para os lados na rua antes de sair, não dá para se ter a menor ideia, assim como depois ela olhava satisfeita com o resultado alcançado e sumia para dentro da casa. Um dia dei pela falta dela, que parou de aparecer, dias seguidos. E não espere que eu tenha ido lá saber o que aconteceu, pois aqui os vizinhos são ariscos. Com a curiosidade atiçada, passei a sentir falta daquela varrição diária que me dava um alento combinado com a cafeína que me empurravam para enfrentar a insanidade que é conversar com outras pessoas, trabalhar, realizar ações a rigor e, se indagadas, destituídas de sentido em si mesmas. Conformado com o sumiço da velhinha, já me dava por satisfeito em indagar quem agora limparia aquelas calçadas, mesmo que aparentemente elas nunca parecessem sujas. E foi assim que, café todo dia, janela, nada, até que um dia vislumbrei outra velhinha de avental mais florido varrendo as calçadas. Senti um conforto egoísta de recompor minha rotina, ainda que não tivesse qualquer explicação sobre o fato de onde fora parar aquela primeira velhinha que passou a me chamar a atenção. Até que essa segunda, em menor tempo, também desapareceu. Curiosamente, como funciona um relógio, de forma previsível, as velhinhas foram desaparecendo e sendo substituídas ao longo de um tempo significativo, o que me fez indagar que tipo de lugar seria aquele que parecia botar e desaparecer velhinhas com uma naturalidade terrível. No entanto nunca tive tempo de investigar esse fenômeno até que outro de alguma forma assemelhado começou a ocorrer. Sempre vestidos com os ternos confortáveis das nossas certezas inquestionáveis, eis que nós, colunistas sapientes do jornal mais antigo da paróquia, começamos a receber mensagens questionadoras sobre o que escrevíamos. Analisando o fato, constatamos que vinham de diferentes mulheres, visivelmente idosas pela forma de pensar e de se expressar, porém terríveis no uso de adjetivos, muitas vezes dominando melhor que nós a escolha das palavras, que nos caceteavam como se portassem vassouras em nossos cocurutos. Por pressão institucional de faturamento o redator-mor chefe nos obrigou a responder educadamente aos disparates metralhados contra nós, nos ameaçando afetivamente dizendo que poderiam ser nossas mães ou, pior, nossas avozinhas ainda mais velhinhas que estavam a nos mandar vestir casaquinho antes de sair com as ideias para fora de casa. O fato é que as mensagens chegavam por e-mail e diversas redes sociais nos apavorando com o fato de que elas haviam aprendido rapidamente a dominar esses veículos e tudo indicava que em breve teríamos ameaçados nossos cargos, cedidos tão logo elas demonstrasse sua capacidade de escrita para além daquele torpedeamento de adjetivos grosseiros. Em meu caso, já começava a acreditar que aquelas que desapareciam na minha rua estavam indo para algum Vale do Silício e em breve eu as leria em blogues se preparando para ocupar nossas colunas com receitas de tricô, bolo, roupas, flores e julgamentos ao nosso machismo, como esse de acreditar que elas falem somente de tricô, bolo, roupas e flores...


Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho









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