Caberia muito bem ao escritor argentino Fogwill a piada sobre Joyce, feita por Tom Stoppard, o irreverente dramaturgo europeu. A piada, tirada da peça Pastiches e citada por Declan Kiberd na excelente introdução à edição de Ulyssses da Penguin-Companhia, registra um homem perguntando a Joyce o que ele fez na Grande Guerra. Joyce, lacônico, responde: “Escrevi o Ulysses. E você?”. Pois de Fogwill se pode dizer que escreveu Os pichicegos (Casa da Palavra, 2007) um romance sobre a infame Guerra das Malvinas promovida pelo ditador Jorge Videla de 2 de abril a 14 de junho de 1982 como forma de tentar a sobrevivência do seu sanguinário regime. A aventura, assim reconhecida pelos argentinos, dada a pífia força militar do país em comparação com o inimigo inglês, comprovou-se um fiasco para os militares ditadores e mais um peso moral e social para o país, arrasado pela matança de inúmeros opositores a ele. O Ulysses de Joyce pode ser lido também como um libelo contra a guerra, na medida em que valoriza a vida comum e suas banalidades em oposição ao heroísmo militaresco, em geral desde sempre patético à visada modernista, e então esvaziado de significação heróica por sua apropriação pelos Estados-Nação em guerras sem sentido que transformaram os homens em meros instrumentos de maquinaria. Pois se na Europa de Joyce o sentido de lutar ganhou ares de abstração provocado pela ressaca do pós Primeira Guerra, até aparecer Hitler e exigir não um heroísmo, mas um posicionamento, lutar em uma guerra nas Malvinas pela causa promovida por um ditadorzeco sanguinário argentino seria, mais que patético, uma farsa. Daí que no romance de Fogwill os pichicegos são heróis apenas da pequenez da sobrevivência, eis que apenas homens de vida simples, trabalhadores em geral, retirados de suas rotinas pela ditadura para cair como alvos de brinquedo da certeira artilharia inglesa. Sua denominação foi inspirada num bicho parente do tatu que, por viver a maior parte do tempo enfiado em buracos na terra, é meio cego. E, tal como esse bicho, um grupo de soldados argentinos, escapando de morrer participando nas operações da caótica aventura de Videla, cavaram um enorme buraco, disfarçaram sua localização e entrada e lá passaram a sobreviver como os tatus, saindo somente à noite enquanto esperavam o fim da guerra. Para eles, enfiados no buraco que cavaram, vivendo cegamente no escuro, caberia a assertiva de Kiberd dada a Joyce: “A pequenez é vista, afinal, como a condição inevitável para sua grandeza. O que alguém faz durante um só dia é infinitesimal, no entanto é infinitamente importante que o faça”. A vida nesse buraco é absurda como a guerra, assim esses soldados se organizam como podem, negociam com os ingleses alvos estratégicos em troca de comida, definem regras de convivência e vão levando em meio a diálogos estapafúrdios enquanto assistem vários soldados morrerem de frio e loucura: “Comeram tarde nessa noite... de vez em quando uma vibração suave do solo dava a ideia de que em algum lugar muito longe alguns estariam bombardeando outros.” “Quantos mortos devem ter feito...!” – disse Manzi, um calado. “Nem tanto... a estas horas estarão todos em abrigos...” “E os abrigos são suficientes?” “Sim, devem ser – quem dizia isso era o Engenheiro.” “Quantos mortos? – perguntou alguém no escuro”. “Cem – apostou um.” “Mil – exagerou outro.” “Dois mil – duplicou o primeiro.” “Trezentos – corrigiram” “Trezentos e cinquenta e seis – cantou uma voz em cordovês.” “Bom número!” “Quantos somos aqui?” “Dizem que dez mil.” “Dez mil... não podem matar todos!” “Não, todos não, a maioria!” “Videla, dizem, matou quinze mil.” “Sim, mandou fuzilar dez mil.” Essa guerra e a ditadura se equivalem em absurdo e Fogwill o demonstra de modo contundente e mais ainda quando, num diálogo, um soldado pichicego fala “Que fome!” e outro responde: “Que vontade de comer um pichicego!” A essa altura do absurdo, a comida tanto poderia ser um tatu quanto o soldado que estava com fome...
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho
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