Sunday, June 19, 2016

AS PENAS DO OFÍCIO (uma Bofetada do Passado de Sérgio Augusto)

(publicado originalmente na saudosa revista BRAVO! em Junho de 2002)


Revendo há pouco Ligações Perigosas, na versão que lhe deu Stephen Frears, de novo me encantei com a maneira como o cineasta inglês recriou em imagens uma intriga eminentemente epistolar, movida a garranchos e outros combustíveis caligráficos. Uma vez mais também me admirei de como na França do século 18 os aristocratas gostavam de escrever cartas. Era assim, aliás, em toda a Europa, vale dizer em qualquer parte onde houvesse gente letrada, inclusive, portanto, na América. Nunca entendi direito a razão da grafomania de quem viveu antes da invenção da caneta-tinteiro e da máquina de escrever; e suspeito que, para aqueles que nunca se viram diante de um teclado sem a tecla Enter, encher de letras uma folha de papel, com o auxílio exclusivo de uma pena de ganso, pareça um feito tão ou mais árduo que a tarefa eterna a que Sísifo foi condenado.

Tenho para mim que a luz de vela e do lampião não limitavam tanto o ato de escrever quanto o seu instrumental básico: a pena. Quantas palavras cada mergulho da pena no tinteiro podia render? Duas? Três? Meia dúzia? E o que se fazia para melhor ajustar o ritmo veloz do pensamento ao restringente compasso do vaivém das mãos: papel, tinteiro, papel, tinteiro? O óbvio: usar o papel menos absorvente possível. Não tenha dúvida: o ato de escrever era infinitamente mais complicado (e sobretudo mais moroso) antigamente. O que não impediu que alguns praticantes lhe acrescentassem novos estorvos – que, para eles, deduzo, não eram propriamente estorvos; antes, um estimulante. Assim como o visconde de Valmont, o libertino personagem de Choderlos de Laclos, seu contemporâneo Voltaire, por exemplo, adorava redigir cartas e escritos menos íntimos sobre as costas nuas de suas amantes. Tão singular mesa de trabalho não lhe afetou a criatividade. Nem a saúde; muito pelo contrário: Voltaire produziu bastante e chegou aos 84 anos.

É de se presumir que, ao rabiscar palavras sobre o dorso desnudo de uma dama, Voltaire vez por outra também estivesse como Deus o criou. Nisso não foi um inovador. Alguns gregos da Antiguidade já haviam feito a mesma coisa, não raro apoiando-se (e inspirando-se) na região glútea de um efebo. “Com a bunda de fora, eu nem sequer anoto um número de telefone”, revelou Truman Capote, que, apesar de tudo, não gostava de misturar os canais. Para ele, havia a hora de deitar com os efebos e a hora de deitar para escrever. “Sou um escritor completamente horizontal”, definiu-se, numa entrevista, citando Mark Twain e Robert Louis Stevenson como companheiros de preferência pela criação em decúbito dorsal.

Twain, Stevenson e Capote gostavam de escrever deitados, porém vestidos. Victor Hugo preferia o inverso: escrever sentado, mas nu em pêlo. Ficar sem roupa foi o método mais eficaz que o autor de Os Miseráveis encontrou para disciplinar seu trabalho. Antes de iniciá-lo, Hugo chamava o criado, entregava-lhe todas as suas roupas e lhe recomendava que só as trouxesse de volta dali a tantas horas. Trabalhar pelado era um dos prazeres de Benjamin Franklin, que no entanto o fazia dentro de uma banheira, por sinal a primeira que a América viu. Edmond Rostand também transformou sua banheira em mesa de trabalho. Não tencionava dar uma lição de asseio corporal a seus patrícios, que bem a mereciam e merecem, mas apenas escapar das interrupções dos amigos. Justamente o oposto do que almejava o poeta Vinícius de Moraes, que montou em sua banheira um misto de Parnaso, escritório e bar.

Entre aqueles que preferiam escrever vestidos da cabeça aos pés, o mais idiossincrático era Disraeli. Antes de sentar-se para escrever seus romances, o grande artífice do imperialismo vitoriano se enfarpelava como se estivesse indo a um banquete no palácio de Buckingham. Para Disraeli, na faina criativa, a gala tinha a mesma importância da inspiração, até porque, a seu ver, uma dependia da outra.


“Eu não sei escrever sem estar bem composta”, confessou-me há tempos a elegante Nélida Piñon. Além de dispensar a pompa de Disraeli (“não precisa ser uma roupa formal para se ir a um jantar”), faz poucas concessões: “O máximo que concedo é usar tênis, assim mesmo com meia”. De pijama ou camisola, nem palavras cruzadas ela faz. Já seu colega da Academia, João Ubaldo Ribeiro, só consegue escrever de bermudas e sem camisa. Até no inverno berlinense, ligava a calefação de seu pequeno gabinete e tirava a camisa. Seu colega de profissão e fraterno amigo Rubem Fonseca não liga para o que veste enquanto experimenta as vastas emoções do vídeo em branco. Mas antes de encarar o computador, faz exatamente aquilo que Thomas Wolfe, Willa Cather e Antonio Callado faziam, antes de encarar a máquina de escrever, e dezenas de escritores recomendam como a mais saudável das musas inspiradoras: caminhar. Rubem é capaz de andar até oito quilômetros atrás de novas idéias e soluções originais. Para não as perder, sai sempre com caneta e papel no bolso.

Mais exigente, Nélida só faz anotações em blocos especiais que compra, em estoque, na Europa. Não a tentam fetiches tais como escrever em pé (a posição preferida de Lewis Carroll, Virginia Woolf e Ernest Hemingway), pôr um gato no ombro (como Edgar Allan Poe), deixar ao alcance das narinas o odor de uma maçã (como Schiller) ou usar algum texto alheio como uma espécie de espoleta ou diapasão (Willa Cather passava os olhos em trechos da Bíblia e Stendhal lia duas ou três páginas do Código Civil, antes de encarar um novo capítulo de A Cartuxa de Parma). João Ubaldo prefere não ler livro algum, “com medo de plagiar inconscientemente.” Possui, contudo, um bom sortimento de rituais. Dificilmente começa um romance em dia que não seja segunda-feira. Não costuma escrever em fins de semana e feriados. Nem depois do almoço. “Fico burro e deprimido à tarde e geralmente durmo”, explica-se. Nunca, porém, se perguntou por que não suporta escrever na presença de ninguém (a não ser de Berenice, sua mulher), nem por que segue uma ordem rígida de trabalho: primeiro o título, depois a dedicatória, a epígrafe – sempre de sua própria autoria – e, finalmente, o texto. Caneta, nem pensar. Nem quando a única opção era a máquina de escrever. Tipo de papel? Tanto faz.

Nesse ponto também é o oposto de Nélida, que usa o papel mais caro existente no mercado e recusa-se a empunhar uma Bic. Não por ser fiel ao teclado, como João Ubaldo e Rubem Fonseca, mas por achar que seus refinados papéis merecem, no mínimo, uma Montblanc. Exigência que Hemingway, por exemplo, dispensava, pois, como tantos contemporâneos seus, preferia escrever a lápis.

As palavras, para os adeptos do manuscrito, não são apenas sons, mas desenhos mágicos. E prazer tátil. Nelson Algren considerava-se um artesão da palavra, lato sensu: “Tenho necessidade de trabalhar com minhas próprias mãos. Gostaria de cinzelar meus romances em pedaços de madeira.” Hemingway atribuía a seus dedos tamanha parcela de suas idéias, que receou ter de abandonar a literatura quando ameaçado de perder o uso do braço direito, após um acidente de automóvel. James Thurber era outro que só sabia pensar com os dedos. Conforme foi perdendo a visão, trocou a máquina de escrever por folhas de papel amarelo, nas quais não escrevia mais do que vinte palavras por página, com o grafite mais negro disponível no mercado. Depois aprenderia a compor contos mentalmente e a ditá-los a uma estenógrafa.

Ainda mais exigente do que Nélida Piñon era o inglês Rudyard Kipling, que se recusava a escrever com qualquer tinta. “Quanto mais preta, melhor”, recomendava. Só mesmo em preto conseguia gravar suas palavras nas folhas de papel azul com margens brancas que volta e meia utilizava. O fetiche da cor do papel já levou vários escritores a bloqueios insuportáveis. Truman Capote sentia-se uma toupeira quando desprovido de suas folhas de papel amarelas. O Alexandre Dumas de Os Três Mosqueteiros também era chegado ao amarelo, mas em folhas dessa cor escrevia exclusivamente poesias. Para os romances, preferia o azul. E para obras de não-ficção, o rosa.

Embora ameaçado de extinção (ou obsolescência) pelos áugures da informática, o papel continua sendo um parceiro fidelíssimo do computador e o suporte favorito de todos os escritores. Pois até aqueles que só operam com um desktop e enviam seus originais para a editora por e-mail ou em disquete gostam mesmo é de ver sua obra impressa no velho e bom papel. Mas uma coisa é certa: o Valmont do futuro terá de optar por um notebook, para não martirizar as costas de sua amada.


Sérgio Augusto (Rio de Janeiro, 1942)
é um jornalista e escritor brasileiro.
Começou sua carreira como crítico de cinema
na Tribuna da Imprensa, em 1960.
Trabalhou também no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha,
e nas revistas O Cruzeiro,
Fatos & Fotos, Veja, IstoÉ e Bravo!,
além dos semanários O Pasquim, Opinião e Bundas.
Desde 1996, ele escreve para o Estadão.

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