A moça chegou com sapatinho baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira dentição, e falou o senhor me deixa telefonar? de maneira inescapável.
O homem da caixa registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio preguiçosa, sem fixar muito os olhos no que o rapaz do balcão já havia servido aos dois fregueses silenciosos, demorando-os mais no bêbado que balançava-se à porta do botequim ameaçando entrar e afinal parando-os no recheio da blusinha preta sem mangas que estava à sua frente, o que o fez despertar completamente com um e a senhora o que é?
A moça constatou contrariada que havia desperdiçado a primeira carga de charme e mostrou novamente seus pequeninos dentes, agora fazendo a precisadinha urgente, dizendo eu posso telefonar? com ar de quem entrega ao outro todas as esperanças.
O homem falou pois não e levantou a mão meio gorda do teclado da caixa registradora, abaixou-a olhando para o bêbado que subia o degrau da porta, retirou de uma prateleira debaixo da registradora um telefone preto onde ainda estava gravado no meio do disco o selo da antiga Companhia Telefônica Brasileira e empurrou-o para a moça dizendo não demore por favor que já vamos fechar.
A moça tirou o fone do gancho e murmurou baixinho putz, sopesou ostensivamente o aparelho e disse bajuladora pesadinho hein?
O homem sorriu atingido pela seta da lisonja dizendo éééé antigo.
A moça levou o fone ao ouvido e discou 277281 com um dedo bem tratado de unha lilás.
O homem da caixa tirou os olhos do dedo, pegou um lápis enganchado na orelha direita e anotou a milhar explicando é pra o bicho, não se importando se a moça ouvia ou não e devolveu o lápis à orelha enquanto olhava o bêbado que navegava agora à beira do balcão.
A moça falou quer fazer o favor de chamar o Otacílio e ficou esperando.
Um homem chegou ao lado dela cheirando a cigarro, falou para o caixa me dá um miníster, olhou intensamente os olhos dela e imediatamente os seios.
A moça enrubesceu e se tocou rápida procurando o botão aberto que nem havia e protegeu-se expirando o ar com o diafragma e avançando os ombros para disfarçar o volume do peito.
A caixa registradora fez tlin, um carro freou rangendo pneus e uma voz forte gritou filha da puta com um u muito longo.
O homem da caixa deu o troco ao homem que comprara cigarros e falou faz de conta que não ouviu nada menina isso aqui é assim mesmo.
O homem que comprara cigarros afastou-se e foi ver da porta o que estava acontecendo na rua.
A moça voltou-se simpática para o homem da caixa mas parou atenta aos sons do fone, mudou de atenta a decepcionada e falou depois de instantes diz que é a Julinha.
O homem que comprara cigarros parou na porta, abriu o maço de cigarros e acendeu um.
O homem da caixa falou ô José esse aí tem de pagar primeiro e o rapaz do balcão parou de servir a cachaça para o bêbado e falou qualquer coisa com ele enquanto o homem da caixa procurava explicar-se dizendo depois não paga e ainda espanta freguês.
A moça sorriu condescendente.
O homem fumava à porta e olhava as pernas dela.
A moça pôs uma perna na frente da outra defendendo-se cinqüenta por cento e falou de repente alegre oi! demorou hein? E procurando um pouco de privacidade virou-se dizendo ficou com raiva de mim?
O homem da caixa fingia-se distraído mas ouvia o que ela dizia.
Pensei. Não me ligou.
O bêbado navegou contornando arrecifes e chegou ao caixa com uma nota de quinhentos na mão.
Mas não é isso, não é nada disso.
O homem da caixa disse pode servir José.
Não sei… fiquei com medo, só isso.
O bêbado começou o cruzeiro de volta.
Não, não. Não é de você. Acho que é assim mesmo, não é?
A caixa registradora fez tlin marcando quinhentos cruzeiros.
Poxa, Otacílio, pensa. O tanto de coisa que vem na cabeça da gente numa hora dessas. Vocês acham tudo fácil.
A cara do homem da caixa estava um pouco mais desperta e maliciosa.
Claro que é difícil. É só querer ver o lado da gente, pô.
O rapaz do balcão tirou o mesmo copo meio servido e a mesma garrafa e completou a dose do bêbado.
Tá legal. Eu também acho: vamos esquecer o que aconteceu ontem. Falou.
O bêbado olhou atentamente para o copo como se meditasse mas na verdade apenas esperando o momento certo de conjugar o movimento do navio com o de levar o copo à boca e quando o conseguiu bebeu tudo de uma vez com uma careta e um arrepio.
A moça ouviu com ar travesso o que Otacílio dizia e sorriu excitada seus dentes branquinhos.
O homem da caixa olhou para o homem da porta e a cumplicidade masculina brotou nos olhares.
Não, sábado não dá. Aí já passou. Ora, como. Passou do dia, Ota, não dá. Não dá pra explicar aqui. Você não entende? Tem dia que dá e tem dia que não dá, pô.
O homem da caixa piscou para o homem que fumava na porta como quem diz você que tava certo.
Uai, só daqui a uns quinze dias. Lógico que eu me informei.
A moça viu o olhar do homem da porta e virou-lhe as costas.
Hoje!? Tá louco?
O homem que fumava ficou olhando-a por trás.
Papai não vai deixar. Só se… Só se eu falar com a mamãe e ela falar com ele.
Alguém chegou e falou cobra duas cervejas e me dá um drops desse aqui ó hortelã.
Ora, que que eu vou falar. Não sei, pô. Eu dou um jeito. Pode deixar que eu me viro.
A caixa fez tlin e o homem foi embora sem que ela o visse.
Não, eu vou. De qualquer jeito eu vou. Agora eu que tou querendo.
A moça olhou para o homem da caixa e fugiu depressa daquela cara agora debochada.
Então me espera. Eu vou aí. Chau.
A moça desligou e ficou uns instantes com o olhar baixo tomando coragem e depois falou para o homem posso ligar só mais unzinho?
O homem da caixa falou pode alongando o o muito liberal e olhando fixamente de cima a sugestão do decote.
A moça procurou um ponto neutro para olhar e achou o rapaz que lavava copos atrás do balcão, enquanto esperava o sinal do telefone, depois discou 474729 e ficou olhando o ambiente.
Uma armadilha azul fluorescente de eletrocutar moscas aguardava vítimas.
O rapaz do balcão olhava-a furtivamente e murmurou gostosa, de dentes trincados.
O bêbado esperava o melhor momento de descer do degrau para a rua com um pé no chão e outro no ar, como alguém inseguro que se prepara para descer de um bonde andando.
O homem da porta juntou os cinco dedos da mão direita e levou-os à boca num beijinho transmitindo ao homem da caixa sua opinião sobre ela.
O homem da caixa respondeu segurando a pontinha da orelha direita como quem diz é uma delícia.
A moça murmurou será que saíram? explicando-se para ninguém.
Os dois homens silenciosos que bebiam cerveja encostados no balcão não estavam mais lá.
A moça ficou de lado e o homem da caixa fez um galeio para ver um pouco mais de peitinho pelo vão lateral da blusinha sem mangas.
A moça emitiu um ah de alívio, puxou o fio até onde dava e meio abaixou-se de costas para dizer mamãe? é Júlia com uma voz abafada por braços e mãos e concentrada no que ia dizer.
O homem da porta, o rapaz do balcão e o homem da caixa se olharam rapidamente.
Olha, eu jantei aqui na cidade com a Marilda. Ora, mamãe, a senhora conhece a Marilda, até já dormiu aí em casa. É, é essa. Olha: agora a gente vai ao cinema, viu? Que tarde, mamãe, tem uma sessão às dez e meia. Se ficar muito tarde eu vou dormir na casa dela. É só porque é mais perto, mamãe, senão a gente ia praí. Não tem. A senhora sabe que não tem. A senhora fala com papai pra mim? Não, eu não vou falar. Tá bom. Eu ligo depois do cinema. Só pra confirmar, hein, porque o mais certo é a gente ir pra lá. Um beijo. Bota a gatinha pra dentro, viu? Chau.
A moça ergueu-se, desligou o telefone e perguntou quanto é.
O homem da caixa não estava mais lá e falou pra você não é nada gostosa, atrás dela.
A moça se voltou rápida e viu que todas as portas do bar estavam fechadas.
Os três homens, narinas dilatadas, formavam um meio círculo em torno dela.
O texto acima, publicado em “A Face Horrível”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1986, consta também do livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 434
Ivan Angelo nasceu em Barbacena MG
em 4 de Fevereiro de 1936.
Jornalista, cronista,
romancista e contista,
escreveu seus primeiros contos
em meados dos anos 50
e desde então nunca mais parou.
Fez carreira como jornalista em São Paulo,
trabalhando por muitos anos no Jornal da Tarde.
Já aposentado das redações, hoje escreve
crônicas quinzenais para a revista VEJA SP.
É autor do genial romance "A Festa" (1965)
e de várias coleções de contos e crônicas.
em meados dos anos 50
e desde então nunca mais parou.
Fez carreira como jornalista em São Paulo,
trabalhando por muitos anos no Jornal da Tarde.
Já aposentado das redações, hoje escreve
crônicas quinzenais para a revista VEJA SP.
É autor do genial romance "A Festa" (1965)
e de várias coleções de contos e crônicas.
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