SHORT CUTS:
QUANDO ROBERT ALTMAN CONSEGUIU FAZER A VIDA CABER NUM FILME
por Rodrigo de Oliveira para PAPO DE CINEMA
Uma mosca na parede. Era como o diretor Robert Altman queria que os espectadores se sentissem ao acompanhar um de seus filmes. Éramos, afinal de contas, testemunhas de cenas tão particulares, tão corriqueiras e naturalistas, que não raro nos sentíamos intrusos. Como se não pudéssemos estar ali, ao lado de um casal em crise, ou de uma família disfuncional, sem chamar a atenção para nossa presença. Este sentimento de imersão em vidas tão próximas da realidade era um dos predicados mais destacáveis da carreira do cineasta norte-americano, conhecido até então por clássicos como o satírico M.A.S.H. (1970) e o múltiplo Nashville (1975). Na década de 1990, o diretor nos brindou com dois de seus melhores trabalhos: o crítico e divertido O Jogador (1992) e o magistral Short Cuts: Cenas da Vida. Ambos são excepcionais, ainda que seja inegável a contribuição maior deste último para o cinema vigente naquela década. Sua estrutura multiplot ressoou fortemente, muito embora já tivesse sido usada pelo próprio diretor anos antes, em Nashville.
A trama é assinada por Altman ao lado de Frank Barhydt, baseada nos contos de Raymond Carver, na qual acompanhamos a vida de mais de 20 personagens em um curto período de tempo. Enquanto aviões com pesticida sobrevoam a cidade em resposta à infestação de moscas de fruta, as vidas de tantas e tantas pessoas se complexifica a cada novo minuto. Stormy (Peter Gallagher) é um dos pilotos destes helicópteros e é o ex-namorado repulsivo de Betty (Frances McDormand), homem que vive a atrapalhando e a perseguindo, usando seu filho como desculpa. Betty tem um caso com o policial casado Gene (Tim Robbins), que dá desculpas cada vez mais furadas para sua esposa, Sherri (Madeleine Stowe). Ela é irmã da artista plástica Marian (Julianne Moore) que, por sua vez, é casada com o doutor Ralph (Matthew Modine). Durante o concerto da violoncelista Zoe (Lori Singer), o casal conhece Stuart (Fred Ward) e Claire (Anne Archer) e, muito espontaneamente, marca um jantar para dali alguns dias. Stuart vai sair para pescar com seus amigos Gordon (Buck Henry) e Vern (Huey Lewis) e prometeu um peixe para a ocasião. No entanto, a pescaria pode não dar muito certo quando eles encontram o corpo de uma mulher no ermo local onde acamparam.
Antes de partir para a viagem, no entanto, o trio faz uma parada obrigatória para um café da manhã na lanchonete onde Doreen (Lily Tomlin) atende como garçonete. Ela é namorada do motorista de limusine Earl (Tom Waits) e os dois vem aos trancos e barrancos com seu relacionamento. A filha deles, Honey (Lily Taylor), e seu namorado Bill (Robert Downey Jr.) ficaram de cuidar da casa dos vizinhos e se aproveitam do espaço para receber seus amigos, o cuidador de piscinas Jerry (Chris Penn) e sua esposa, a atendente de ligações eróticas Lois (Jennifer Jason Leigh). Dentre as piscinas que Jerry cuida está a do casal Anne (Andie McDowell) e Howard (Bruce Davidson), que estão preparando a festa de aniversário de oito anos de seu filho, Casey (Zane Cassidy). No entanto, um acidente grave com o garoto tende a mudar tudo. Até uma reaproximação com o avô da criança, o bonachão Paul (Jack Lemmon), acaba por acontecer. A vizinha do casal, a supracitada Zoe, se preocupa com a condição da criança, embora tenha problemas em sua vida com a desconexão com sua mãe, a cantora de boate Tess (Anne Ross).
Dar conta de todas as pontas da trama de Short Cuts: Cenas da Vida requer uma boa memória ou anotações precisas a respeito da ligação de cada uma dessas figuras. O brilhantismo do trabalho de Robert Altman está na construção desse emaranhado de ligações e nas características muito humanas de seus personagens. Para o diretor, importante é que o espectador enxergue em seu filme situações e pessoas que poderiam muito bem viver entre nós, com problemas mundanos, personalidades tortas e objetivos nada gloriosos. Veja Stormy, por exemplo. Ele é um sujeito que passa a trama toda azucrinando a vida de sua ex-mulher. Quem não conhece alguma história sobre alguém assim? Ou a errática situação de Doreen e Earl, um casal já na meia-idade que não consegue se acertar por conta do ciúme e do vício daquele homem. Ou a relação fria entre mãe e filha que poderá gerar um evento irreversível quando falamos de Zoe e Tess. Relação essa completamente inversa quando vemos na casa ao lado o carinho de Anne pelo seu filho Casey.
Robert Altman nos dá a oportunidade de acompanhar instantâneos da vida, como se fôssemos testemunhas oculares privilegiadas. Um exemplo perfeito disso são as discussões dos casais. Elas são viscerais, acaloradas, intensas. Em uma delas, Julianne Moore não se dá o trabalho de vestir suas roupas para brigar com seu marido, mostrando que já não existe muita sensualidade naquela relação. Ou a discussão que se dá entre Fred Ward e Anne Archer quando ela descobre a ação de seu marido quando ele encontra o corpo de uma mulher durante sua pescaria. Talvez a conversa pós-sexo menos corriqueira, mas que também mostra uma faceta nada glamorosa de um relacionamento longevo. Altman vai permeando sua história com momentos como estes, nos dando um vislumbre do que poderiam ser tantas e tantas vidas reais.
O elenco de Short Cuts: Cenas da Vida é de fazer inveja a qualquer um. São poucos os diretores que conseguiriam tantos nomes importantes para defender personagens que, em última análise, são pequenos no todo. Não existem protagonistas aqui. O microcosmo criado por Altman é o personagem principal, com cada um daqueles interessantes personagens vivendo naquele ambiente. Claro que existem histórias mais curiosas do que outras e atores mais notáveis. Um bom exemplo disso é a presença de Jack Lemmon, que surge no hospital onde seu neto está internado e mexe com o status quo de tudo. Há muitos anos sem falar com o filho, o comentarista de tevê Howard, Paul encontra naquele momento conturbado uma chance de reatar relações. Ele não vê, mas este está longe de ser um período propício para isso, colocando Howard em uma situação desconfortável, para dizer o mínimo. Outro núcleo destacável é protagonizado por Tim Robbins, como um policial mequetrefe que desejava paz em sua casa. Odiando o cachorro dos filhos, ele dá um jeito de abandoná-lo na rua, apenas para perceber que a ausência do mascote incendiou ainda mais os ânimos em seu lar. Suas ações são terríveis, com Robbins sendo detestável na medida.
Embora possam parecer exageradas, as três horas de duração de Short Cuts: Cenas da Vida passam muito rápido. Ajuda a trama dinâmica, que fragmenta a história nos deixando curiosos pelo desenrolar das situações. Também o elenco de alto nível e os personagens desenhados deliciosamente por Altman e por Frank Barhydt. A trilha sonora cheia de jazz é um atrativo a mais e o terceiro ato guarda surpresas interessantes, como um desastre natural que une ainda mais as tantas pontas da trama – e que Paul Thomas Anderson parece ter se inspirado para construir o igualmente imperdível Magnólia (1999). Depois de ter usado o recurso em Nashville e ter retornado a ele em Short Cuts, Altman trabalharia com multitramas em alguns de seus filmes seguintes como o subestimado Prêt-à-Porter (1994), o premiado Assassinato em Gosford Park (2001) e o derradeiro A Última Noite (2006). Para quem deseja ver um mestre em ação, conseguindo concatenar tantos personagens e histórias, Robert Altman é o nome a ser procurado. E Short Cuts um de seus trabalhos mais festejados.
SHORT CUTS: INUSITADO COMO A VIDA
por Bernardo Brum para CINECAFÉ
Short Cuts é o Uivo (o poema de Allen Ginsberg) do cinema. Sem querer comparar duas artes e mídias totalmente distintas entre si, a proposta, a visceralidade, a importância são bastante similares. Também, não dá para se espera mais nada em uma Los Angeles à beira do apocalipse, passando por pragas de proporções bíblicas. E o ser humano, enquanto isso, anda perdido pelas ruas em meio à pandemias de doenças transmitidas por insetos, cavalarias de helicópteros armadas com remédios e gases suspeitos e terremotos, tentando escapar da mediocridade, do tédio, da solidão, e só querendo ser feliz no meio de tanta loucura.
Não existe dramaturgia fácil, concessões, clímaxes ou redenção no filme. Pois Short Cuts é turbilhão vivo de narrativa fragmentada, de pessoas tristes e comuns sem rumo na vida em um mundo que sempre parece estar com os dias contados. Tudo é uma rotina no filme, as pessoas saindo para trabalhar, o confeteiro de bolo que fica passando trotes, o apresentador de televisão frio como pedra, a moça do telesexo que levanta uma grana mas não deita para uma safadeza com o marido, que é um limpador de piscina, tem a garçonete de meia idade tendo que lidar com o seu marido, um taxista beberrão, tem a palhaça e o seu marido pescador, o policial que trai a mulher toda hora, mulher esta que posa nua para sua amiga, artista plástica que tem um marido neurótico com a infidelidade de sua cônjuge, a cantora de jazz, uma perua velha e amarga, apreciada pelo taxista beberrão que não dá atenção para a sua filha, que joga basquete e toca violino…
É tudo tudo tão comum em certos momentos que parece difícil acreditar, nas nossas mentes sedentas por ilusionismos cinematográficos, que um filme de três horas com mais de 20 personagens desses tipos tão comuns consiga ser interessante. Mas é.
Mas há gritos, música e uma erupção de sentimentos todo o tempo e o tempo todo. Porque é, essencialmente, um filme com uma visão sombria da vida. Apesar de tanta mediocridade imperante, Short Cuts também é caótico. Há atropelamentos, há assassinatos, há defuntos sendo encontrados, há negligência, há reconciliações, há separações, há erros médicos, há muita bebedeira, há muita discussão com pessoas dizendo o que não queriam, enfim, em meio à cidade grande, são tantos que se esforçam para controlar a vida, mas ninguém consegue impedir uma das grandes verdades – que o mundo, além de ser indiferente, é incontrolável. O amor e a dor, a desgraça e a boa nova, tudo acontece ao mesmo tempo, interligando sentimentos, fatos e pessoas, numa cadeia complicadíssima e sempre progredindo, sem teoria que possam regê-la.
Por sua narrativa descontrolada e múltipla, Short Cuts não termina. É um filme cheio de arestas, cheio de perguntas, pontas soltas, confusão aos montes, guiadas por mão de mestre, que nunca fica entediante. A forma como Altman editou essa confusão não faz o espectador ficar atordoado, pelo contrário. Nós somos convidados a participar daquele mundo, acompanhar alegrias, tristezas, decepções, traumas, delitos, desgraças, sorte, azar, dar risada, chorar, sofrer… De forma tão profunda que fica difícil acreditar que, de fato, um filme que tenha uma visão sombria pode ser tão ou mais humano que filmes dito otimistas.
Assistir ao testemunho da vida de Altman é uma divina comédia do desajuste, uma verdadeira Odisséia não-épica. Nós descemos ao inferno várias vezes e sentimos o gosto de enxofre na língua porque, diabos, tantas dores juntas é simplesmente catártico, um verdadeiro delírio coletivo para uma só mente absorver. E não precisa nem de duas ou três telas passando diferentes histórias. É uma alternando com a outra, e de forma tão natural e itensa que quando tudo acaba, nós temos a sensação de termos sido completamente destruídos, atropelados pela energia vital e sensibilidade artística de Robert Altman.
E claro, assistir Short Cuts também é uma experiência de sublimação. Por tudo o que somos e por tudo o que podemos e queremos ser, pelo que poderíamos ter sido, pelo que esperamos da história, dos personagens, das suas frustrações e realizações, e do cinema. Por que, afinal, o que é Short Cuts senão um filme sobre a vida e tudo o que existe dentro dela? Dá para se sentir bêbado com Tom Waits. Dá para sentir Juliane Moore gritando, sem calças, na sua frente. Dá para se irritar com o egoísmo e covardia de Jack Lemmon como se a coisa toda fosse com a gente. Dá para se pintar de palhaço e passar o terromoto dentro de uma piscina de hidromassagem. Nos projetamos ali e sentimos o gosto agridoce de ser humano.
E claro, como não podia deixar de ser, mais do que vida, mais do que reflexão, mais do que inovação, mais do que uma descida sem volta na cabeça de uma (de Altman), duas (dele e do autor do livro que inspirou, Raymond Carver) e várias mentes (deles, dos personagens, da nossa…), também é cinema dos melhores. Aliás, diria eu, dá para dizer que o cinema existe para que obras como Short Cuts venham à luz. Mas, também, dá para dizer que é uma daquelas obras que justificam todo o cinema. Enfim, não dá pra chegar em um consenso ou resposta exata, especialmente afirmações tão subjetivas que nem essa. Ainda não tenho tanta moral assim.
Mas quer saber? Que se dane. É assistir, absorver, beber, chorar, trepar e fazer merda junto com eles. Incomensuravelmente bom. Não dá pra definir nada aqui. Se não assistiu, caia pra dentro.
SHORT CUTS - CENAS DA VIDA
(Short Cuts, 1993, 187 minutos)
Direção
Robert Altman
Roteiro
Robert Altman
Frank Barhydt
Elenco
Andie McDowell
Bruce Davison
Jack Lemmon
Zane Cassidy
Julianne Moore
Matthew Modine
Anne Archer
Lyle Lovett
Fred Ward
Jennifer Jason Leigh
Chris Penn
Robert Downey Jr.
Madeleine Stowe
Tim Robbins
Lily Tomlin
Tom Waits
Frances McDormand
Peter Gallagher
Annie Ross
SHORT CUTS - CENAS DA VIDA
(Short Cuts, 1993, 187 minutos)
Direção
Robert Altman
Roteiro
Robert Altman
Frank Barhydt
Elenco
Andie McDowell
Bruce Davison
Jack Lemmon
Zane Cassidy
Julianne Moore
Matthew Modine
Anne Archer
Lyle Lovett
Fred Ward
Jennifer Jason Leigh
Chris Penn
Robert Downey Jr.
Madeleine Stowe
Tim Robbins
Lily Tomlin
Tom Waits
Frances McDormand
Peter Gallagher
Annie Ross
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